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O futuro incerto dos botos da Amazônia no meio de uma seca histórica

O futuro incerto dos botos da Amazônia no meio de uma seca histórica

Boto-cor-de-rosa é encontrado morto em rio da Amazônia. Foto: Sea Shepherd

“Moro neste flutuante há 40 anos, e essa é a maior seca que eu já vi na minha vida. Dá para ver que a água baixou muito mais do que em 2023”, conta Carlos Magno, enquanto aponta para o ponto onde a água chegou no ano passado.

Carlos é mecânico de barcos e vive em um flutuante – uma casa sobre a água, construída geralmente de madeira ou metal – à margem do Lago Tefé, no município de mesmo nome, no coração do estado do Amazonas. Apaixonado pela vida junto ao lago, cercado pelas águas, floresta e animais, ele e sua família agora consideram se mudar para terra firme diante das secas cada vez mais severas.

“O flutuante já está todo em terra. Dê uma olhada aqui para ver o quanto a água desceu. Esta seca está quase 30 dias atrasada, não costuma chegar nesse ponto”, diz ele, preocupado. A água precisa subir para Carlos poder retomar o trabalho: com o baixo nível dos rios e lagos, as embarcações deixam de trafegar e ele perde clientes. Já está há dois meses sem trabalho.

O Lago Tefé, uma formação lagunar do Rio Tefé próxima ao encontro com o Rio Solimões, vem vivendo uma seca histórica este ano, atingindo o nível de apenas 4,54 metros – 13,5 metros abaixo de junho, no início da estiagem, quando chegou a 18 metros (veja gráfico abaixo). Além da drástica redução, a água restante registrou temperaturas altíssimas, chegando a 40,3 ºC – o mesmo patamar de 2023, conforme dados do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM).

Em toda a Amazônia, 69% dos municípios vêm registrando índices de seca ainda mais intensos que os de 2023 – um aumento de 56% em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo o Índice Integrado de Seca (IIS). No Amazonas, o Boletim Estiagem 2024, divulgado pelo governo do estado, indica que mais 850 mil pessoas foram impactadas pela descida das águas, e todos os 62 municípios estão em estado de emergência. Segundo o Serviço Geológico Brasileiro (SGB), a estiagem pode se agravar ainda mais até o mês de dezembro.

“Nas últimas décadas, temos observado uma intensificação dos eventos hidrológicos extremos, com cheias e secas recordes ano após ano”, diz Ayan Fleischmann, pesquisador titular do Grupo de Pesquisa em Geociências e Dinâmicas Ambientais na Amazônia, do Instituto Mamirauá.

Outro monitoramento realizado por uma plataforma desenvolvida pela World Wildlife Fund Brasil (WWF-Brasil) e pelo MapBiomas, que acompanha 23 dos mais de 60 lagos da Bacia Amazônica, revelou que, desde agosto, as águas dos lagos conectados aos rios também têm atingido temperaturas mais altas.

Em 2024, doze desses lagos já estavam com temperaturas acima das registradas em 2023. Os dados também mostraram que esses lagos acumulam de cinco a nove meses com temperaturas médias superiores às do ano anterior, o que ressalta o estresse fisiológico dos seres vivos expostos repetidamente às altas temperaturas e baixos níveis de água.

É o caso dos botos.

A seca histórica no Rio Solimões reduziu drasticamente o nível do Lago Tefé, que atingiu apenas 4,54 metros em outubro. Foto: Alessandro Falco/ICMBio

No Lago Tefé, em setembro e outubro de 2023, foram recolhidas 209 carcaças de tucuxis (Sotalia fluviatilis) e botos-cor-de-rosa (Inia geoffrensis), segundo pesquisadores do Instituto Mamirauá. Apenas no dia 28 de setembro, 70 carcaças foram encontradas na região, um evento de mortalidade sem precedentes para essas espécies. Naquele ano, a maioria das mortes foi relacionada ao superaquecimento das águas, que alcançaram temperaturas superiores a 40 ºC.

De acordo com estimativas do Instituto Mamirauá, o Lago Tefé abriga uma população de aproximadamente 900 botos-cor-de-rosa e 500 tucuxis. Com uma taxa de reposição anual de apenas 5%, a perda de mais de 200 animais em 2023 representou um impacto significativo para essas populações. Cerca de 80% dos animais mortos naquele ano eram botos-cor-de-rosa.

Ambas as espécies de golfinhos de água doce da Amazônia estão na lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN). O boto-cor-de-rosa e o tucuxi são classificados como “em perigo” de extinção, o que significa que a espécie provavelmente será extinta em um futuro próximo. Esse é o segundo nível mais grave de ameaça na classificação da IUCN.

Em 2024, o ICMBio e o Instituto Mamirauá decidiram se antecipar à tragédia. “A seca foi tão intensa no ano passado que o rio nunca recuperou seu nível. Já começamos com déficit de água. A expectativa era de que a tragédia iria se repetir”, diz Miriam Marmontel, líder do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá. “Nós estávamos preparados para uma nova emergência, com monitoramento mais intenso, capacitação de equipe e aquisição de equipamentos específicos.”

Diante do alto número de animais mortos, o Instituto Chico Mendes de Conservação da (ICMBio) instaurou em 2023 a Emergência Botos Tefé, com apoio técnico do Instituto Mamirauá e parceria com diversas instituições, para averiguar a situação. O mesmo instituto também lançou, em setembro, a Emergência Fauna Aquática 2024, a fim de intensificar o monitoramento dos animais na região e evitar novas mortes. Mais de 50 profissionais ficaram responsáveis por monitorar as condições de água e o comportamento dos animais duas vezes ao dia.

Entretanto, a mortandade de botos não foi como o esperado. “Este ano secou mais, está uma quentura e a gente não viu boto morrer. Ficamos sem entender”, comenta Carlos, que em 2023 ajudou a recolher e transportar carcaças que, muitas vezes, encalhavam no seu quintal de casa.

Valdinei Lemos Lopes, que trabalha com botos há mais de 20 anos e já colaborou com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o Instituto Mamirauá, acredita que os animais, prevendo uma estiagem ainda mais severa, se deslocaram para locais mais seguros. “Os bichos sabem mais que a gente; eles vivem lá. Ano passado, a seca chegou rápido e eles não tiveram tempo de sair do lago. Este ano, eles cuidaram de sair logo”, explica.

Segundo o pesquisador Ayan Fleischmann, o que evitou uma repetição da tragédia de 2023 foi a menor incidência de radiação solar. Este ano, houve menos dias seguidos de sol intenso e maior presença de chuva e nebulosidade, o que impediu que o lago se mantivesse a 40 ºC por longos períodos.

Resumindo: em 2024, não foram registradas mortes de botos relacionadas ao estresse térmico. No entanto, o ICMBio contabilizou 14 mortes de animais, incluindo oito botos-cor-de-rosa, quatro tucuxis e dois peixes-boi, todos com sinais de interação humana, como pesca, caça ou colisões. As carcaças desses animais estão sendo analisadas para determinar as causas exatas das mortes.

Mas o fator por trás das mortes desses animais continua sendo a seca. A questão é que, com o baixo volume das águas, mamíferos aquáticos ficam mais vulneráveis e expostos a interações negativas com humanos, como pesca, caça e atropelamentos por barcos.

Em Coari, cidade próxima a Tefé, a organização Sea Shepherd, que monitora a fauna local, contabilizou 37 carcaças na região, sendo 22 tucuxis, cinco botos-cor-de-rosa, dois golfinhos não identificados, quatro peixes-boi e outros quatro pedaços de peixe-boi. Embora alguns animais já estivessem em estágio avançado de decomposição, todos tinham indícios de ação antrópica. “Encontramos os animais com marcas de rede de pesca e facadas”, diz Nathalie Gil, diretora executiva da Sea Shepherd.

Nathalie relata que, logo na primeira semana de monitoramento, a equipe já observou sinais de caça ilegal à distância. Em uma ação com a Polícia Militar, encontraram uma boia com dois peixes-boi mortos.

“O peixe-boi é alvo de uma caça exacerbada, que é consumida internamente em Coari. Estamos falando de um consumo grande, de 15 a 20 animais caçados por dia”, fala Nathalie. O peixe-boi-amazônico é uma das 1.182 espécies brasileiras ameaçadas de extinção, com o status de “vulnerável” na Lista Oficial de Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção.

A batalha entre botos e pescadores
Embora os botos não sejam alvo direto da caça, eles travam uma batalha contra os pescadores da região. Segundo o pescador Edinei de Lima Ferreira, o boto-cor-de-rosa é “preguiçoso”. O animal espera a malhadeira – uma rede de pesca composta por malhas – encher de peixes para rasgá-la e se alimentar. “O boto rasga a rede e nós perdemos o peixe todinho”, diz ele.

“A gente trabalha com tanto carinho, remenda, bota a rede no rio, mas o bicho vem e rasga tudo. Se pelo menos ele tirasse o peixe com educação, eu não ficaria com raiva”, conta Edinei. “Mas se pudesse mesmo a gente matava todos eles”, fala em tom de brincadeira.

No entanto, andando pela cidade de Tefé ou navegando pelas águas dos rios, é possível perceber que a tensão entre os botos e os pescadores é assunto sério. Valdinei Lemos Lopes, que tem anos de experiência com a espécie, conta que é raro encontrar na região alguém que goste do boto. “Tem gente que acha bonito, mas distante, não próximo. Ainda existe esse receio das lendas de que o boto pode fazer mal”.

No folclore brasileiro, o boto-cor-de-rosa é conhecido por sua mística capacidade de seduzir. A lenda diz que, em noites de lua cheia, o animal emerge dos rios transformado em um homem atraente, capaz de conquistar uma jovem e engravidá-la antes de retornar às águas.

Hoje, sabe-se que a lenda do boto tem forte relação com casos de violência sexual na região. No entanto, por muitos anos, ela alimentou a perseguição a esses animais, que eram mortos por medo de seus supostos poderes de sedução. Também há relatos de que partes do boto eram utilizadas como amuletos e que sua gordura servia para fins medicinais. Embora a lenda já não seja o principal motivo para a caça, a captura retaliatória ainda ocorre em alguns locais.

Na disputa entre pescadores e botos pelos recursos pesqueiros, o ressentimento dos pescadores vem chamando a atenção de pesquisadores. Para evitar conflitos, estão sendo desenvolvidos dispositivos sonoros que mantêm os botos longe das redes de pesca, prevenindo tanto a destruição das malhadeiras quanto retaliações contra os animais.

A WWF-Brasil, em parceria com a Sociedade para a Pesquisa e Proteção do (Sapopema), começou a testar essa tecnologia em junho de 2023, na comunidade Prainha I, localizada no Pará, na Floresta Nacional do Tapajós, onde os conflitos são comuns. Nos primeiros testes, houve uma redução de 40% dos danos às malhadeiras e um aumento de três vezes na quantidade de pescado. Porém, a eficácia diminuiu na segunda fase de testes, quando os botos passaram a se adaptar ao ruído e encontrar novas formas de aproximação.

Karen Lucchini, pesquisadora do Centro de Mamíferos Aquáticos, destaca que os esses dispositivos, chamados pingers, foram originalmente projetados para o ambiente marinho e que sua adaptação para o uso em rios exige ajustes importantes. Além disso, a adoção da tecnologia pelos pescadores é outro desafio. “Enfrentamos resistência dos pescadores, que temem que a pesca diminua com o uso dos dispositivos. Além disso, o custo dos aparelhos é elevado, e adaptar essas tecnologias de forma acessível ainda é difícil”.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Mayala Fernandes

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Portal Amazônia e são de total responsabilidade do autor.
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