Por Rodrigo Machado Vilani, Philip Martin Feanrside e Carlos José Saldanha Machado
Como a governança climática pode ser promovida no contexto político atual? O governo Lula enfrenta dois desafios centrais na implementação de uma agenda climática compatível com os compromissos internacionais e o novo compromisso nacionalmente determinado (NDC) do país definido em 2023.
Em primeiro lugar, o cenário político: os governos estaduais e municipais da Amazônia promovem uma agenda neoliberal [1], e uma legislatura federal conservadora foi eleita para o período de 2023-2026, incluindo 66 deputados federais e 12 senadores que apoiam o ex-presidente Bolsonaro [2]. Esses grupos também apoiam o desmantelamento de políticas indígenas e ambientais e apoiam a mineração e o desmatamento ilegais na Amazônia, e o negacionismo das mudanças climáticas [1, 2]. Em setembro de 2024, o governo de Lula era composto por 38 ministérios, com ministros de 11 partidos diferentes, com uma maioria de ministros de centro-esquerda (40%) e direita (25%).
Esta coligação multipartidária, combinada com o presidencialismo, o federalismo e um sistema eleitoral proporcional, é conhecida como “presidencialismo de coalizão” [3]. Isto descreve a dinâmica do sistema político brasileiro, caracterizado por uma presidência forte que muitas vezes leva a conflitos entre o Executivo e o Legislativo, onde o presidente detém amplos poderes. No entanto, a fragmentação partidária e a falta de uma base de apoio sólida no Congresso geram tensões e dificuldades para governar, criando um cenário em que o Poder Executivo deve negociar constantemente com vários partidos, muitas vezes resultando em instabilidade política e crises na governabilidade. Assim, esse conceito destaca os desafios de implementar efetivamente políticas públicas porque a relação entre os poderes do governo é marcada por rivalidades e disputas ao invés de colaboração harmoniosa.
Os três governos presidenciais de Lula se basearam nesse modelo. No entanto, o bloco ruralista, apoiado por outros setores conservadores (incluindo votos de partidos com cadeiras ministeriais), aprovou o critério do Marco Temporal para reconhecimento dos direitos territoriais indígenas em outubro de 2023 (Lei Federal 14.701), derrubando os vetos do presidente Lula, ignorando o Ministério dos Povos Indígenas e desconsiderando a revisão em andamento da sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal.
Em segundo lugar, há a agenda de desenvolvimento “pragmática” de Lula, e em seus governos passados ele defendeu grandes hidrelétricas como Santo Antônio, Jirau e Belo Monte com impactos significativos sobre povos indígenas, comunidades ribeirinhas, clima e biodiversidade [4-8]. Naquela época, quando Marina Silva ainda era Ministra do Meio Ambiente e estava em conflito com a ex-Ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, Lula decidiu apoiar Dilma Rousseff. Hoje, a situação é ainda mais complicada, mas quando Lula teve que escolher, ele escolheu “desenvolvimento” [9].
Na mesma linha, apesar do parecer desfavorável do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Lula apoia publicamente a altamente controversa perfuração de petróleo na foz do Rio Amazonas [10]. A reconstrução da BR-319 – uma estrada que liga uma das áreas de floresta mais preservadas da Amazônia central ao infame “arco do desmatamento” no sul da Amazônia [11] – aumentaria a mineração e a exploração madeireira ilegais, ameaçaria os povos indígenas [12] e aumentaria os riscos de uma nova pandemia [11]. Ambos os megaprojetos são de interesse dos governos locais e estaduais eleitos em 2022.
Ciente desse cenário político e de uma disputa interna entre o MMA e a Casa Civil, Lula decidiu adiar o diálogo com o Congresso Nacional para o primeiro trimestre de 2025, após a eleição de um novo presidente da Câmara dos Deputados [13]. Em 2025, após essa eleição, as presidências das duas casas do Congresso Nacional continuam sendo controladas pelo centrão, e, no caso do Senado, o novo presidente é um senador do Amapá com forte interesse eleitoral no projeto de exploração de petróleo na foz do rio Amazonas.
Considerações finais
Internamente, a administração Lula pode usar o Fundo Amazônia (estabelecido para receber doações em apoio à conservação na Amazônia, que teve grande apoio da Noruega e da Alemanha) para “reconstruir a cidadania do povo amazônico em favor da conservação da floresta” [1]. Só podemos esperar que as eleições futuras favoreçam candidatos comprometidos com a conservação da floresta.
Concessões feitas a partidos de direita têm se mostrado ineficazes na promoção da proteção ambiental e dos direitos indígenas, e Lula deve reconhecer essa realidade e buscar apoio externo. Embora interromper a perda da floresta amazônica seja muito do interesse nacional do Brasil [14], outros países têm um papel a desempenhar ao se conformarem às diretrizes internacionais aplicáveis às commodities brasileiras, como aquelas do Regulamento de Desmatamento da União Europeia (EUDR), particularmente aquelas provenientes da Amazônia [15]. Zonas livres de mineração precisam ser definidas na Amazônia em colaboração com os povos indígenas [16], e o Ministério dos Povos Indígenas e a implementação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) precisam ser fortalecidos, garantindo a participação indígena nas decisões relativas a seus territórios e projetos de infraestrutura na Amazônia. Embora os povos indígenas e as terras indígenas tenham benefícios significativos para o meio ambiente amazônico [17, 18], os direitos indígenas precisam ser respeitados independentemente desses papéis, porque são direitos humanos.
Na abertura da 79ª sessãoda Assembleia Geral da ONU em setembro de 2024, Lula criticou o mundo em geral por suas promessas não cumpridas de mitigação climática. Agora Lula tem que decidir qual caminho tomará na questão climática. A proposta da Autoridade Climática visa genuinamente promover a governança climática ou é apenas um meio de legitimar a dinâmica econômica que avança na Amazônia? Adiar a decisão deixa duas sérias incertezas pendentes: a conservação da Amazônia brasileira pode se dar ao luxo de esperar por um momento favorável no sistema presidencialista de coalizão e como a realização dessa esperança é complicada pela discrepância entre o ritmo lento da política e a aceleração das mudanças climáticas e eventos extremos?
Uma certeza parece indiscutível neste momento. Após dois anos de sua atual administração, deve estar claro para Lula que uma coalizão interna para lidar com a mudança climática é inatingível. [19]
A imagem que abre este artigo mostra o presidente Lula durante reunião de relançamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial – CNDI no Palácio do Planalto (Foto: Cláudio Kbene/PR-2023).
Notas
[1] Vilani RM, Ferrante L, Fearnside PM (2023) Os primeiros atos de Lula. Amazônia Real.
[2] Fernandes AS, Teixeira MA, Zuccolotto R, do Nascimento ABFM, Bonelli F (2024) Dismantling and reconstruction of public policies in Brazil: From Bolsonaro’s destruction to the possibilities of union to rebuild. Administração Pública e Gestão Social 16(2): 1-24.
[3] Bielschowsky R (2020) The birth of Brazilian presidentialism (1889-1902): Origins, governism, and first coalitions. Giornale di Storia Costituzionale 40(II): 191-211.
[4] Fearnside PM (2014) Barragens do Rio Madeira- Revés para a política. Amazônia Real
[5] Fearnside PM. (2014) Barragens do Rio Madeira-Impactos. Amazônia Real
[6] Fearnside PM (2016a). Tropical dams: To build or not to build? Science 351: 456-457.
[7] Fearnside PM (2015) Impactos ambientais e sociais de barragens hidrelétricas na Amazônia brasileira: As implicações para a indústria de alumínio. pp. 261-288. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 2. Editora do INPA, Manaus. 297 pp.
[8] Fearnside, P.M. 2019. Emissões de gases de efeito estufa das represas hidrelétricas da Amazônia brasileira. pp. 87-90. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 3. Editora do INPA, Manaus. 148 p.
[9] Fearnside PM (2023) Lula e as hidrelétricas na Amazônia. Amazônia Real.
[10] Vieceli L, Nogueira I (2024) Lula volta a defender exploração de petróleo na margem equatorial. Folha de São Paulo, 12 de junho de 2024.
[11] Ferrante L (2024) A road to the next pandemic: The consequences of Amazon highway BR-319 for planetary health. Lancet Planet Health 8(8), e524-e525.
[12] Fearnside PM (2024b) Impactos da rodovia BR-319. Amazônia Real. https://philip.inpa.gov.br/publ_livres/2024/Fearnside-2024-Impactos_da_BR-319-Serie_completa.pdf
[13] Bergamasco D, Mega I, Falcão T (2024) Autoridade Climática racha governo Lula. CNN, 23 de setembro de 2024.
[14] Fearnside PM, Silva RA (2023) A seca na Amazônia em 2023 indica um futuro desastroso para a floresta tropical e seu povo. The Conversation, 06 de novembro de 2023.
[15] Ferrante L, Fearnside PM (2022) Países devem boicotar o Brasil por causa do desmatamento impulsionado pela exportação. Amazônia Real, 16 de fevereiro de 2022.
[16] Vilani RM, Ferrante L, Fearnside PM (2022) Amazônia ameaçada pela agenda de mineração do presidente Bolsonaro. Amazônia Real, 06 de dezembro de 2022.
[17] Fearnside PM, Ferraz J (2022) Uma análise de lacunas de conservação da vegetação da Amazônia. p. 193-211. In: Fearnside, P.M. (ed.) Destruição e Conservação da Floresta Amazônica. Editora do INPA, Manaus. 356 p.
[18] Nepstad DC, Schwartzman S, Bamberger B, Santilli M, Ray D, Schlesinger P, Lefebvre R, Alencar A, Prinz E, Fiske G, Rolla A (2006) I
[19] Esta série traduz Vilani, R.M., P.M. Fearnside, C.J.S. Machado. 2025. Brazilian president Lula’s Climate Authority challenge: Pragmatism versus coalition politics. Environmental Conservation.
Os Autores
Rodrigo Machado Vilani Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2000) e em Direito pela Faculdade Vianna Júnior (2003). Possui mestrado em Direito (2006) e doutorado em Meio Ambiente (2010) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Realizou pós-doutorado no Programa de Biodiversidade e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (2014). É professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde ingressou em 2014. Suas áreas de interesse são: Direito Ambiental; Política Ambiental; Áreas protegidas; Conflitos Ambientais; Ecoturismo.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador 1A de CNPq. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 800 publicações científicas e mais de 750 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui: http://philip.inpa.gov.br.
Carlos José Saldanha Machado é Graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Política de Ciência e Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em Antropologia Social pela Universidade de Paris V (Sciences Sociales Sorbonne). Atualmente é pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, no Laboratório de Informação Científica e Tecnológica em Saúde (LICTS/Icict). É professor colaborador de Programas de Pós-Graduação da Fiocruz (Informação e Comunicação em Saúde – PPGICS/Icict, em Biodiversidade e Saúde – PPGBS/IOC), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Doutorado em Meio Ambiente – PPG-MA/UERJ) e do Mestrado Profissional em Rede Nacional em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos (PROFÁGUA / UNESP / USP / UERJ / UFRGS / UFPE / UEA / UFES).
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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