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‘O Chocalheiro’: lenda de Roraima vira filme para proteger lavrado

‘O Chocalheiro’: lenda de Roraima vira filme para proteger lavrado

Produzido com a Lei Paulo Gustavo, o curta-metragem de Vanessa Brandão narra uma história familiar e ancestral para valorizar a cultura e a luta pela preservação de um dos biomas mais invisibilizados da Amazônia. Na imagem acima, bastidores do filme gravado no município de Alto Alegre (RR) (Arquivo Pessoal/Felipe Medeiros).


Rio Branco (AC) – No coração do lavrado roraimense, um som metálico ecoava no imaginário das crianças. Era o tilintar dos chocalhos que denunciava a presença de uma entidade misteriosa, capaz de provocar medo, respeito e silêncio. O Chocalheiro, narrativa que atravessou gerações, deixou de ser apenas lembrança narrada ao pé do fogo para ganhar corpo no cinema, pelas mãos e olhar da diretora Vanessa Brandão.

O curta-metragem O Chocalheiro estreou em 20 de julho de 2025, no Teatro Municipal de Boa Vista, como uma fábula sombria que entrelaça drama familiar, espiritualidade ancestral e memória coletiva. Produzido pelo Instituto Aichan em coprodução com a Platô Filmes, o projeto nasce de um gesto íntimo: transformar lembranças de infância em rito cinematográfico. A um só tempo, a diretora busca descolonizar a ideia folclórica de que essas histórias não existem, quando na verdade fazem parte da cultura e história local.

“Temos uma voz singular, que vive e convive com seres que andam entre as esferas físicas e espirituais. O Chocalheiro era uma dessas presenças em minha vida, de meus irmãos, na vida de toda uma geração de netos. Crescemos ouvindo sobre ele e seus mistérios. Tínhamos medo e, ao mesmo tempo, respeito”, conta Vanessa.

Entidade ronda o lavrado

Frames do filme “O Chocalheiro”, gravado no município de Alto Alegre (RR).

Descrito como um ser mítico que vaga pelas matas brandindo os instrumentos, O Chocalheiro assombra e educa pelo medo. A diretora lembra das histórias dos avós e tios, que falavam dele como entidade protetora dos lavrados, aquele mosaico de campos e savanas amazônicas quase sempre invisibilizado pelas narrativas centradas na floresta densa.

O jornalista e colaborador da Amazônia Real Felipe Medeiros, ator que interpreta Onildo — o pai da família no filme —, reforça esse paralelo. “Se a gente for trazer para um comparativo mais próximo, podemos falar do Curupira. É uma entidade que protege o lavrado roraimense, não só das pessoas que fazem mal à natureza, mas também de quem ameaça a vida comunitária. É como se fosse o guardião desse território, e registrar isso em filme é ajudar a manter a história viva”.

Ao transportar a entidade para a tela, Vanessa e sua família abriram espaço para refletir sobre a dureza da educação de outrora, quando a disciplina era marcada por castigos severos. O Chocalheiro surge, no enredo, como presença que acompanha esse drama, ora justiceiro, ora carrasco.

Cinema feito em família

Felipe Medeiros em cena do filme “O Chocalheiro”, gravado no município de Alto Alegre (RR) (Arquivo Pessoal/Felipe Medeiros).

Com orçamento restrito, a produção nasceu no seio familiar. “Metade do elenco era formado pela própria família. Minha irmã mais velha, meu filho de 10 anos. Só podíamos contratar dois atores. Então pensei no Felipe Medeiros, depois de vê-lo nos palcos na peça Cordel do Amor Sem Fim”, explica Vanessa.

Os nomes dos personagens também são memória: Onildo e Joaquina, os avós da diretora; Domingos e Sebastião, os tios que conviveram com ela na pequena propriedade Nova Cruz. Assim, filmar se tornou também um gesto de homenagem.

Para Felipe, o convite foi mais do que trabalho. “Juntou tudo o que eu gosto: histórias, jornalismo, valorização cultural, respeito às nossas lendas e, claro, arte. Foi um processo feito em família, e me inseri como se fosse parte deles. Gravamos em um feriadão, na fazenda da família em Alto Alegre (85 quilômetros da capital). Era um ambiente muito afetivo, carregado de memórias. Não era só cinema — era quase um rito”.

Com o baixo orçamento, a família ajudou a escrever coletivamente o roteiro, iniciado por Leonardo Brandão (Irmão de Vanessa) e Luiz Fernando, e expandido com a colaboração de profissionais como a diretora de fotografia Yare Perdomo.

De volta à arte

Felipe Medeiros em cena do filme “O Chocalheiro”, gravado no município de Alto Alegre (RR) (Arquivo Pessoal/Felipe Medeiros).

A trajetória de Felipe ajuda a compreender o tom político da produção. Ele começou no teatro aos 14 anos, mas fez pausa para se dedicar ao jornalismo. Foi repórter da Rede Amazônica por quase oito anos, até perceber que a rotina de televisão sufocava o espaço para a arte.

“O teatro que eu fazia nunca foi só para entreter, sempre teve crítica social, sempre foi instrumento de luta. Isso é muito parecido com o jornalismo. Mas, na emissora, você vive para a TV, não sobra tempo para ensaio, para criação. Então dei essa pausa”, lembra.

O retorno veio em 2021, quando integrou o grupo Criarte Teatral no espetáculo Cordel do Amor Sem Fim. O trabalho foi premiado no Festival de Teatro da Amazônia e abriu portas para novos projetos. Foi ali que Vanessa o viu em cena e o convidou para O Chocalheiro.

“Eu me sinto muito honrado porque é uma história genuinamente roraimense. Registrar isso é de fato fazer história, manter cultura e tradições vivas. A Amazônia é plural, cada Estado tem suas lendas, mas muitas estão se perdendo. Esse filme é um gesto de resistência”, afirma ele.

Do fomento ao rito

Cena do filme “O Chocalheiro”, gravado no município de Alto Alegre (RR), tendo o lavrado como personagem (Arquivo Pessoal/Felipe Medeiros).

Pouco retratado pelo cinema, o lavrado de Roraima surge em O Chocalheiro não apenas como cenário, mas como personagem. A vastidão dos campos, os silêncios da noite, o vento cortando as savanas, tudo reforça a atmosfera mítica da narrativa.

Esse gesto tem força política: o lavrado, bioma único no Brasil, é também um dos mais ameaçados pelo avanço do agronegócio e das queimadas. Ao inscrever O Chocalheiro nesse território, o filme recorda que preservar as histórias é também lutar pela preservação da terra.

O curta foi viabilizado pela Lei Paulo Gustavo, que selecionou o projeto na categoria Novos Realizadores e foi orçado em 30 mil reais, por meio da Fundação Municipal de Educação, Turismo, Esporte e Cultura (Fetec) e da Prefeitura de Boa Vista. Em Roraima, a execução dos recursos da Paulo Gustavo foi notável: dos 3,8 bilhões de reais nacionais, o estado aprovou 540 projetos, incluindo 126 audiovisuais com investimentos de 13,5 milhões de reais, de acordo com dados do Governo do estado. Na capital, Boa Vista concentrou 4,6 milhões de reais em repasse. Significa que 70% dos recursos foram direcionados ao audiovisual, uma conquista significativa para o setor.

“Já pensou se não tivesse esse incentivo? Estaríamos em um deserto não só de notícias como grande parte da Amazônia já está , mas também em um deserto artístico e cultural. A cultura é tão importante quanto o jornalismo para manter a democracia de pé. Ela ajuda a formar senso crítico, a conhecer quem somos e respeitar nossa terra”, opina Felipe Medeiros.

Produzir cinema no Norte do país é um desafio. Nenhuma produção audiovisual da região norte foi contemplada no edital Novos Realizadores da Agência Nacional do Cinema (Ancine), de 2023. O País possui 3.416 salas de cinema em funcionamento. Desses, 43,5% se encontram em São Paulo ou no Rio de Janeiro, totalizando 1.485 salas de cinema em apenas dois Estados. No restante, são 1.931 salas de exibição. E de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a região Norte conta com 222 salas de cinema, sendo a região com o menor número do País, o que limita ainda mais o acesso a produções locais.

Como nas histórias contadas à beira do fogo, o curta devolve ao público o murmúrio de uma ancestralidade que ensina, adverte e protege. Mais do que filme, O Chocalheiro é rito de memória um cinema que nasce da terra e do lavrado, mas ecoa além de Roraima, carregando consigo o peso dos silêncios e o encanto dos seres que habitam o invisível.

“Acho muito importante a gente ter registro, manter sempre viva, na memória, em documentos, filmes, livros, porque isso ajuda a entender quem somos, a nos colocar numa posição de mais respeito pela nossa terra, pelas lendas, histórias e personagens que contribuíram para nossa história e da nossa relação com a natureza e a Amazônia”, diz Medeiros.

Cris Brandão em cena do filme “O Chocalheiro”, gravado no município de Alto Alegre (RR) (Arquivo Pessoal/Felipe Medeiros).

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