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O Brasil que (nos) cansa

O Brasil que (nos) cansa


Belém (PA) – Há dias em que parece que o Brasil insiste em se repetir. A cada ciclo, a mesma sensação de estar preso a um carrossel que gira sempre para o lado errado: PL da devastação, PEC da blindagem, anistia a golpistas, marco temporal, emendas secretas, fundamentalismo religioso travestido de política. É como se o país acordasse todos os dias decidido a sabotar sua própria democracia. O Brasil é aquele amigo imprevisível que você até convida para a festa, mas já sabe que vai beber demais, quebrar a mesa de centro e ainda sair dizendo que fez um favor. Tomemos esses dois últimos exemplos. A PEC da blindagem? Claro que ela surgiria, porque bandido de colarinho branco não pode passar constrangimento. Anistia a golpistas? Óbvio, porque quem tentou incendiar o país merece é um afago, não julgamento. Marco temporal? Presente, para garantir que a história indígena só vale se for conveniente ao agronegócio.

É impressionante a capacidade brasileira de inovar sempre na direção do abismo. Enquanto o mundo discute transição energética, inteligência artificial e futuro, a gente ainda está atolado em arengas parlamentares e projetos contra a democracia. A cada rodada, o Congresso se supera. E não é de hoje. Nossa história tem um vício de origem. Cada avanço democrático é seguido de uma rasteira. No início dos anos 80 as Diretas Já mobilizaram milhões, mas o Congresso nos negou o voto direto para presidente. Quando o país parecia consolidar um ciclo democrático, vimos surgir a UDR, braço armado dos latifundiários contra a reforma agrária, sustentando a violência no campo e blindando privilégios seculares.

Em 2016, mais uma vez um governo eleito foi deposto não pelas urnas, mas por um conluio parlamentar, midiático e jurídico — o golpe contra Dilma que abriu espaço para a erosão que culminaria em 2018. Vestiram a toga, empunharam o microfone, soltaram pato inflável e chamaram de “pedalada”. E, claro, a cereja do bolo veio quando elegemos o ódio e depois ficamos chocados com a conta a se pagar.

Agora, 2025, e cá estamos outra vez. O país que não consegue passar uma década sem ameaçar sua própria democracia. O país que troca futuro por jeitinho, esperança por balcão de negócios, cidadania por fundamentalismo barato. A democracia, quando não é atacada de frente, é corroída pelas beiradas com emendas secretas que sequestram o orçamento público, projetos de lei que naturalizam a devastação ambiental, a anistia como prêmio a quem tentou destruir a República em praça pública. E, como se não bastasse, um Congresso refém do fundamentalismo religioso que dita costumes, impõe dogmas e confunde fé com política.

O que cansa é a reincidência. É o Brasil sempre à beira de uma encruzilhada, e quase sempre escolhendo o caminho que nega o futuro. É ver que cada conquista democrática vem acompanhada da ameaça de ser dilapidada pelo oportunismo de poucos. É viver num país que não aprendeu a respeitar suas próprias instituições — e que parece ter medo de ser, de fato, uma democracia plena. O mais triste? A gente já sabe como essa história acaba. Um retrocesso aqui, outro ali, mais uma “manobra” acolá, e logo estamos de novo no mesmo lugar, de ressaca, exaustos, tentando reconstruir aquilo que nunca deveria ter sido destruído.

O Brasil cansa. Cansa porque viver nele exige paciência com seus retrocessos. Cansa porque, em vez de projetar o amanhã, passamos a vida apagando incêndios, resistindo a golpes, barrando ataques que já deveriam estar superados. O Brasil não é confiável. É o tipo de parceiro que some no dia de pagar a conta, mas aparece de terno novo quando chega verba pública. É o sujeito que grita “família e moral” enquanto espera o pix secreto no gabinete. É a caricatura de si mesmo, só que real.

Repito. O Brasil não é confiável. Nunca foi. E é justamente por isso que cansa tanto: porque poderia ser. Porque já demos provas de que sabemos nos mobilizar, que sabemos ocupar as ruas (não essa ocupada pela direita que pede ditadura), que sabemos dizer não. Mas, ao que parece, seguimos condenados a lutar sempre pelo básico — pelo direito de votar, pelo direito de existir, pelo direito de não retroceder.

O Brasil cansa. Mas cansa daquele jeito tóxico, onde você jura que vai largar, que não vai se deixar enganar de novo. Mas aí vem uma faísca de esperança — uma eleição, um movimento de rua, um lampejo de lucidez — e você acredita outra vez. Só para ver, pouco depois, o país aprontar de novo. O Brasil tem uma habilidade rara, que é de sempre que pode, escolhe piorar. Não importa a chance de avançar, ele encontra um atalho para o retrocesso. Esse país sempre teve medo da democracia. Essa é uma verdade indigesta.

No fundo, somos reféns de um ciclo tão previsível que já virou piada. A diferença é que ninguém ri. O que cansa é a reincidência. É saber que o roteiro está pronto e os atores mudam pouco. Ontem foi Collor, depois FHC comprando reeleição, depois Temer conspirando no Jaburu, depois Bolsonaro brincando de ditador no cercadinho. Hoje é toda essa turma do Congresso, Nikolas da vida , todos posando de salvadores enquanto serram a escada por baixo. E o pior é que a gente já sabe como termina. Não em catástrofe, mas em desgaste. Não em ruptura, mas em erosão. A democracia brasileira não cai de uma vez. Ela apodrece aos poucos, corroída por emendas secretas, anistias generosas e blindagens parlamentares.

Estamos vendo a repetição de um roteiro gasto com ataques à democracia embalados como “projetos de lei”, blindagens vendidas como “ajustes institucionais” e concessões ao golpismo travestidas de “pacificação”. O Congresso se move como se a Constituição fosse um panfleto descartável; o Supremo, dividido, equilibra-se entre conter retrocessos e negociar sobrevivência; o Executivo, acuado, mede cada gesto para não perder sustentação. E assim a democracia brasileira segue corroída por dentro. Não é um golpe militar, com tanques nas ruas — é a erosão lenta, executada no atacado e no varejo, a cada sessão plenária, a cada acordo de bastidor, a cada emenda secreta. A verdade é que nossa democracia nunca esteve consolidada. Ela resiste como pode, mas sempre cercada por interesses que a veem como obstáculo.

E essa repetição histórica, esse ciclo de sabotagem democrática, nos faz viver de sobressaltos. É carregar nos ombros um país que parece não querer se sustentar sozinho. O Brasil cansa porque insiste em nos cansar. É o eterno golpista de si mesmo: quando não nos derruba, nos desgasta; quando não rompe de vez, corrói por dentro. E o resultado é sempre o mesmo, uma exaustão coletiva e a sensação de que o amanhã, por aqui, nunca chega.

Sim, o Brasil nos cansa. Mas não é aquele cansaço de uma maratona. É o cansaço de quem corre em círculos e sempre volta para o mesmo ponto.


A imagem que abre este artigo mostra o plenário da Câmara dos Deputados em Brasília no dia17/09/2025 durante a aprovação do pedido de urgência da PEC da Anistia (Foto: Bruno Spada/Agencia Câmara).


As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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