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Novela gráfica retrata infância abalada pela ditadura argentina

Novela gráfica retrata infância abalada pela ditadura argentina
Por Portal Vermelho

Nas pinceladas e sombras da novela gráfica de María Giuffra, a história pode ser percebida. A do país atravessado pela violência estatal imposta pela ditadura de 1976 e a sua intimidade. Seu pai foi sequestrado por um comando do exército em 24 de fevereiro de 1977. Ele desapareceu e, graças à equipe de antropologia forense, ela soube alguns detalhes de seu destino final.

Esta
história, que constitui uma parte central de sua identidade, também está
representada em La niña comunista y el niño guerrillero. É uma história em
quadrinhos que retrata dez crianças abaladas pelo desaparecimento de seus pais,
irmãos e pessoas próximas a eles.

Em 1984, Laura Bonaparte (Madres, Linha Fundadora) realizou a primeira escavação de valas comuns no cemitério de Avellaneda, procurando identificar os restos mortais dos desaparecidos. Ilustração de María Giuffra

É
uma abordagem diferente e original para a tragédia do processo militar. Com
seus desenhos e sua clara intenção de dar espaço às vítimas, que são as
crianças dos desaparecidos, ele consegue não só tornar estas histórias
visíveis, mas também preenchê-las com significado e transcendência em favor da
memória.

O livro acaba de ser traduzido e publicado aqui no Brasil como A Menina Comunista e o Menino Guerrilheiro, encontrando-se em pré-venda na plataforma Catarse (https://catarse.me/meninacomunista). E será publicado em mais países em breve.

Separados
pela tragédia pessoal do sequestro de seu pai e marido, mãe e filha conseguiram
se exilar no Brasil. Eles voltaram quando María tinha 8 anos de idade, e, anos
mais tarde, se formaria no mundo da arte. María é artista plástica, estudou na
Escuela Técnica Fernando Fader e completou seus estudos na Escuela Nacional de
Bellas Artes Prilidiano Pueyrredón.

Posteriormente, estudou Filosofia na Universidade de Buenos Aires por quatro anos antes de finalmente entrar na Arquitetura, onde se formou. Ela já havia tido essa última carreira como sua primeira escolha, mas algo profundo a deteve: seu pai havia sido um estudante de arquitetura no momento de seu desaparecimento. Em 1995, María entrou para o grupo Hijos.

María Giuffra, artista plástica, arquiteta e autora de A Menina Comunista e o Menino Guerrilheiro

Ela
viajou pelo país

Giuffra
continuou a estudar com artistas como Juan Doffo, Marcia Schvartz e Felipe Yuyo
Noé; depois ganhou uma bolsa da Fundación Antorchas para fazer uma série de
pinturas intituladas: Los niños del Proceso (Os Filhos do Processo). Com outro
subsídio, desta vez do Fondo Nacional de las Artes (FNA), ela fez um
documentário sobre o desaparecimento de seu pai.

María
viajou por Buenos Aires, Tucumán, Entre Ríos, Santa Fé, entrevistando os filhos
dos desaparecidos que relataram casos de parentes menores mortos em
procedimentos pelas forças de segurança nos anos 70.

“A
primeira história que escolhi foi a de Karina Zárate, porque é um caso muito
terrível, o massacre de Villa Corina, onde, além de matar seus pais, o que era
bastante comum entre nós, mataram seu irmão de nove anos de idade, Carlitos. E
essa história sempre teve um grande impacto sobre mim, sempre senti que não se
tinha falado o suficiente sobre Carlitos”, explica o artista.

O
livro traz histórias de Alba Camargo, Alejandra Santucho, Daniela Gómez,
Gabriela Gillie, Gastón Mena, Hugo Saidón (ou Ginzberg), Karina Zárate Manfil,
Rolando González Medina, Valeria Silva e da própria autora.

Introdução do livro de María Giuffra

Clarín – Quando você percebeu que poderia contar estas histórias através de um formato incomum para estes assuntos, uma história em quadrinhos?

María – A primeira pessoa que me chamou
a atenção foi Yuyo Noé, em um de seus Seminários sobre crítica de arte, entre
2003 e 2007. Com sua intuição característica, conhecimento e experiência, ele
colocou em palavras algo que “já havia sido dito” (foi o que ele me
disse).

E
o que foi dito foi que eu sempre exibi a série “As Crianças do
Processo” em forma de quadrinhos, ou seja, não uma pintura ao lado da
outra, respeitando seu “ar”, mas toda a série amontoada. Então eu
esbocei coisas que não me agradaram. Eu senti que sim, eu tinha que fazer isso,
mas não encontrei o caminho.

Em
2010, mais ou menos, eu me candidatei às bolsas da FNA com este projeto, La
niña comunista. Eles não me deram o subsídio, achei que não era importante o
que eu tinha a dizer. Entretanto, todas as histórias que eu vinha ouvindo de
meus colegas desde 1995 nunca deixaram de assombrar minha cabeça.

Em
2018, recebi a chamada para inscrições por e-mail e me candidatei sem nenhuma
expectativa. Quando anunciaram que eu havia ganho a bolsa de estudos, tive que
começar a trabalhar e acreditar em meu projeto. Foi só então que percebi que
estava procurando uma aprovação que realmente tinha que estar dentro de mim.

Clarín– O livro tem um ponto de vista que propõe um olhar sobre os anos 70, a ditadura argentina e os desaparecidos de uma forma que dá lugar àqueles que nem sempre foram considerados vítimas. Você pensa assim? Ou seja, são aquelas crianças, como você, com meses ou alguns anos de idade, que testemunharam ou sofreram aquela violência que, talvez, eles não tenham entendido na época, e que com o tempo passaram a ter isso bastante claro?

María – Não tinha pensado assim até que
Valeria Silva (retratado no livro), na apresentação do livro em Santa Fé, o
disse. Eu não tinha pensado racionalmente sobre isso, como tantas coisas que
surgiram depois que o livro foi publicado, e mesmo assim eles estavam lá.

Penso
que dentro daquela intuição que eu sustentava há tantos anos, aquela ideia
estava em algum lugar fazendo uma rachadura. Daniela Gómez e Gabriela Gillie
também o disseram (suas histórias também estão no livro). A ideia de que era
sempre a voz de outra pessoa, e que de alguma forma nada tinha realmente
acontecido conosco, foi obviamente a que também me fez duvidar de mim mesmo.

Por
outro lado, demorou muito tempo, muitos anos, até que pudéssemos conversar um
com o outro, contar um ao outro o que estava acontecendo conosco. Somente
então, quando o colocamos em palavras, podemos entender o que está acontecendo
conosco. Para entender que mesmo que queiramos esquecer essa dor, a marca foi
deixada no corpo, ela deixou sua marca e de alguma forma ela sai. Sai no corpo
na forma de medo, na forma de múltiplas doenças, das quais ninguém fala nos
testemunhos.

Peço-lhes
que falem de sua infância e estas doenças surgem, são uma consequência desta
infância. Nós não falamos de nossas doenças. Não é conhecido. Comecei a notar
que algumas patologias são raras, mas coincidentes entre nós. A maioria delas
são doenças auto-imunes. Outros são psicológicas, e muitos são psiquiátricas. E
ainda não se fala sobre elas.

Gabriela Gillie em ilustração de María Giuffra no seu livro

Clarín – Você tinha total liberdade para desenhar, para reconstruir estas histórias? Você sentiu que tinha que manter uma linha de respeito, de homenagem permanente?

María – Liberdade total era o slogan
principal que eu tinha. Eu nunca pensei nos quadrinhos em termos de respeito ou
homenagem, não sei por quê, mas nunca pensei nisso. As principais ideias que eu
tinha como premissa eram fazer com que os leitores quisessem continuar lendo
página após página. E para meus depoimentos, tratei suas histórias como se fossem
minhas próprias.

Meu
objetivo era de alguma forma fazer com que todas as coisas terríveis contadas
no texto tivessem um contraponto na imagem, para que os desenhos fossem
“bonitos” e atraíssem visualmente a atenção do leitor e os fizessem
querer ler o livro.

Clarín – Você se reconhece como tendo algum tipo de influência sobre o que está fazendo, existem artistas que o influenciaram de alguma forma e estão presentes em seu trabalho?

María – Alguns estão indiretamente e outros muito diretamente. Fiz algumas homenagens a pintores e artistas que eu gosto. Por exemplo, a cena em que a mãe de Valeria Silva é morta, em Santa Fé, quando ela estava me descrevendo, pensei na pintura de Goya “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, era a mesma cena.

Ela
me disse que a eletricidade estava cortada em toda a vizinhança e que a única
casa que tinha eletricidade era a dela porque tinham colocado um holofote. Ela
tinha quatro anos de idade e se lembra que sua mãe saiu com as mãos no ar e
eles a mataram ali mesmo. Em sua história, Gaby me conta que sua mãe ficou a
cargo dos seis filhos e que tudo o que eles comiam era polenta. Polenta com
queijo, polenta com tomate, polenta doce, polenta salgada.

Fiz as salas de jantar da pintura de Brueghel “O prato de Polenta”. Em minha história também tenho uma homenagem a história em quadrinhos Maus. O pai de Art Spiegelman (autor de Maus) apontou para seu filho a importância das fotos, pois lhes restavam algumas. Tenho algumas fotos do meu velho, mas apenas algumas porque nossa casa foi saqueada e não sobrou nada. Tenho alguns do casamento e das férias que foram deixados na casa da minha avó.

Alejandra Santucho retratada no livro de María Giuffra

Clarín – Você está trabalhando em um segundo volume, em que consiste e quando ele vai ser publicado?

María – Fiz uma viagem para receber
testemunhos de Jujuy, Salta, Catamarca, Santiago del Estero, Chaco e
Corrientes. Infelizmente, o dinheiro da FNA só poderia cobrir isso. Ainda tenho
que colher os testemunhos de Mendoza e San Luis, o que farei em breve. Então,
infelizmente, eu não tenho dinheiro para viajar para Formosa e Misiones, que eu
gostaria de ter incluído.

As
outras províncias não serão incluídas por razões econômicas, pois não tenho
dinheiro para viajar para as que faltam. Haverá também dois testemunhos de
camaradas cujas histórias eu quero incluir. E, é claro, a continuação de minha
própria infância. Não posso dizer quando será publicado porque infelizmente não
depende de mim, mas da editora, mas minha ideia é terminar os desenhos,
desenhos e layout até o final deste ano.

Clarín – Que comentários as pessoas retratadas, familiares, pessoas dos movimentos de direitos humanos fizeram a você?

María – Desde o início houve muita
emoção, mas também muita gratidão por falar sobre estas questões. Eu não tive
comentários negativos nem nada parecido. Muita emoção, muita surpresa também
porque a maioria de nós não estávamos cientes de todas essas coisas, inclusive
eu mesma.

Na
semana passada eu estava na escola Lola Mora, fui convidada para dar uma
palestra sobre o livro no contexto do aniversário de 24 de março. Havia muitas
crianças e elas não sabiam quase nada sobre o que havia acontecido.

Matéria publicada em 24 de março de 2022 no Jornal Clarín da Argentina, dia que teve início a ditadura militar daquele país. Autoria original do jornalista Hector Pavon, tradução e adaptação de Thiago Modenesi.

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