Invisíveis em parte do ano, quando seus ovos ficam enterrados no solo à espera das chuvas, os peixes das nuvens estão entre os animais mais ameaçados do mundo. No Brasil, país que abriga a maior diversidade deles, pesquisadores correm contra o tempo para encontrar esses pequenos peixes com um ciclo de vida tão particular para garantir que eles sejam vistos – e protegidos. Dessa corrida, emerge agora aos olhos da ciência uma nova espécie: o Hypsolebias lulai, em nome que homenageia o presidente Luiz Inácio Lula da Silva por seu trabalho em restabelecer a preservação e valorização socioambiental, assim como a retomada do incentivo à ciência, “fortemente atacadas no governo anterior”, destacam os pesquisadores. A homenagem também visa dar mais visibilidade aos tão ameaçados peixes das nuvens.
O peixe presidencial foi encontrado em uma poça temporária no município de Lagoa Salgada, na zona rural do Rio Grande do Norte. Nativa da bacia do rio Trairi, a espécie é endêmica, ou seja, ocorre apenas na Caatinga potiguar.
Até o momento, a espécie foi identificada em apenas três corpos d’água, sendo dois artificiais – os reservatórios de duas pequenas represas, Malhadas e Quixabeira – e o terceiro uma poça temporária, conhecida como Capim Grosso. De janeiro a junho, período das chuvas na região, a água forma uma pequena lagoa, que chega a ter até 2 metros de profundidade.
A descoberta começou de uma forma inusitada. A foto do peixe circulou entre aquariofilistas e nas redes sociais, e chegaram até Telton Ramos, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenador do Instituto Peixes da Caatinga. “Quando eu vi a foto, eu vi que era uma espécie diferente das que a gente conhece aqui na região e pensei que era uma possível espécie nova”, conta o pesquisador, um dos cinco autores que assina o artigo, publicado naesta sexta-feira (20), na revista científica Neotropical Ichthyology.
A partir da foto, Telton começou uma investigação para descobrir a origem do registro, feito por um pescador curioso, que também não reconheceu o peixe. Com o destino traçado, foi montada uma expedição, bancada pelos próprios apoiadores do Instituto Peixes da Caatinga.
“Nós fomos acompanhadas do senhor que fez a foto, para procurar a espécie. Ele nos levou até o local onde ele tinha pescado, que era uma correnteza de rio, o que eu achei estranho porque esses peixes vivem só em água parada, em lagoa. E ele estava lá porque a poça transbordou”, lembra Telton Ramos sobre a viagem, feita em agosto de 2022.
Devido às fortes chuvas em 2022, essa poça temporária transbordou, resultando num fluxo de água dentro dos dois reservatórios artificiais abaixo, num efeito cascata. “Entretanto, a localização natural da nova espécie é provavelmente apenas a lagoa Capim Grosso”, explicam os pesquisadores.
Uma das particularidades da espécie é a aparência distinta de machos e fêmeas, característica chamada de dimorfismo sexual. Os machos apresentam um padrão de listras de um brilho azul metálico, que contrastam com faixas pretas. Já as fêmeas possuem uma coloração castanho-avermelhada, com manchas pretas e esbranquiçadas. Com cerca de cinco centímetros, este pequeno peixe cabe na palma de uma mão.
Parte da família conhecida pelos cientistas como rivulídeos, este grupo de peixes possui uma vida singular e o recém-descrito H. lulai não é exceção. De forma acelerada, estes peixes nascem, crescem e se reproduzem no curto período de tempo – questão de meses – em que as chuvas formam estas poças temporárias. Antes delas secarem totalmente, o peixe enterra seus ovos no fundo da poça, onde sobrevivem sem água à espera da próxima temporada chuvosa.
Essa vida sazonal – que rende os nomes de peixe das nuvens ou peixes anuais – é um dos principais motivos que invisibilizam estes animais, extremamente vulneráveis à perda de habitat.
“Dentre os peixes, os rivulídeos fazem parte da família mais ameaçada de extinção do Brasil”, alerta o especialista Fabio Origuela, outro autor do artigo sobre a nova espécie. São cerca de 130 espécies de rivulídeos ameaçadas de extinção no país, sendo quatro já consideradas como provavelmente extintas na natureza.
Apenas na Caatinga há 63 espécies conhecidas, sendo 34 delas classificadas em algum nível de ameaça de extinção. Nas últimas três décadas, a desertificação tem avançado no bioma, que já perdeu 8,4% da sua cobertura de água.
A conversão de áreas de Caatinga para pastagens e a construção de represas em áreas úmidas naturais são os principais fatores que ameaçam a qualidade e integridade do habitat da espécie. Essas ameaças são potencializadas pela ocorrência extremamente restrita da espécie.
“O local onde o peixe ocorre é um assentamento onde a agricultura é muito forte, existem muitas plantações ao redor da lagoa onde o bicho vive. Ou seja, grande parte da região é desmatada e os impactos são muito grandes”, alerta Telton.
A área de ocorrência do peixe-das-nuvens potiguar é de menos de 1km². “A espécie está limitada a três locais, todos interconectados, em uma área fortemente ocupada e modificada”, alertam em trecho do artigo.
Por isso, os pesquisadores sugerem que a espécie seja classificada como Criticamente Em Perigo de extinção, o grau mais alto de risco de desaparecer.
Nos reservatórios em que a espécie também foi encontrada, ela divide espaço ainda com a tilápia-do-nilo (Oreochromis niloticus), uma espécie exótica, oriunda da África, que pode se alimentar dos ovos e peixes menores, como o H. lulai.
Diversidade e ameaça
O Brasil tem a maior diversidade de rivulídeos do mundo, com 327 espécies até o momento, incluindo a recém-descrita Hypsolebias lulai. Os peixes das nuvens estão presentes em todos os biomas e estados do país. Essa riqueza, entretanto, está ameaçada pela invisibilidade destes pequenos peixes frente ao apetite de empreendimentos e projetos de infraestrutura. O aterramento, drenagem e loteamento dos brejos em que eles vivem são uma sentença de morte para eles.
“A maior ameaça, na minha opinião, é o desenvolvimento a qualquer custo”, sentencia Fabio Origuela, que também faz parte do Instituto Peixes da Caatinga. “Por exemplo, a construção de rodovias, ferrovias, de empreendimentos de geração de energia, hidrelétricas principalmente, sem os estudos ambientais necessários. Ou seja, o maior problema é o licenciamento ambiental que não é feito de forma correta”, continua.
Por se tratarem de animais com áreas de ocorrência muito restritas, o impacto de um empreendimento desses – feito sem o devido cuidado ambiental e sem o olhar de um especialista em peixes das nuvens – pode ser irreversível.
“Quando você pensa em uma hidrelétrica, por exemplo, que vai alagar uma área gigantesca, a probabilidade de extinguir uma espécie é real. Porque eles são super endêmicos, são espécies que vivem em alguns poucos brejos, às vezes apenas um. E muitas vezes os estudos [ambientais] são feitos sem um especialista em rivulídeos, e por isso acabam ignorando as áreas alagadas temporárias”, completa o pesquisador, que enxerga os rivulídeos como verdadeiros guardiões das áreas úmidas.
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