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Mulheres trans são premiadas no Festival de Teatro da Amazônia

Mulheres trans são premiadas no Festival de Teatro da Amazônia

Na sua 18º edição, essa é a primeira vez em que um número expressivo de artistas  travestis, transexuais e não binárias participam e ganham os prêmios de Melhor Atriz, para Correnteza Braga (na fotografia) do espetáculo “Lágrimas Negras, e Melhor Figurino, para Wendy Lady Oha (peça A Doente Hereditária), no maior evento cultural da classe artística. (Foto de Hamyle Nobre/Fetam)


Manaus (AM)- Marcado por arte e cultura, o XVIII Festival de Teatro da Amazônia (Fat) começa, depois de 20 anos desde sua criação, a ser um espaço de maior inclusão e diversidade para as pessoas LGBTQIAPN+. No último dia 13, no encerramento do festival, foram reveladas entre as vencedoras, artistas travestis, transexuais e não binárias, um marco histórico no palco do Teatro Amazonas. O festival aconteceu entre os dias 1º e 13 de outubro, em diferentes espaços culturais de Manaus.

A atriz Correnteza Braba, do espetáculo “Lágrimas Negras”, ganhou o prêmio de Melhor Atuação. O prêmio de Melhor Figurino foi para Wendy Lady Oha, responsável pelo figurino, styling e maquiagem do espetáculo “A Doente Hereditária”.

A peça “Lágrimas Negras” é sobre a revolta da Chibata, um movimento de marinheiros negros que lutaram por direitos em 1910 no Rio de Janeiro. Correnteza Braba, de 23 anos, que é produtora cultural, professora de teatro e pesquisadora em educação, diz que a premiação “é, acima de tudo, uma conquista política primeiramente, por ser uma pessoa trans, não-binária, afroindígena da zona leste de Manaus, que faz, produz, promove fomento de arte principalmente das artes cênicas na minha cidade, no meu território, pensando em educação, pensando em formação de público”.

Para a artista, a premiação é também uma valorização do que vem executando junto ao Café Preto Produções, que tem levado com responsabilidade a preservação da ancestralidade, racialidade e identidade periférica. “Naquela noite [da premiação], ter e perceber tantas pessoas comemorando ao nosso lado e principalmente pessoas racializadas, pessoas de sexo e gênero dissidentes é tão importante quanto receber o prêmio”,

“Para mim é uma satisfação pelo o caminho que a gente tem construído e cada grito, cada aplauso, cada elogio, cada conversa, cada olhar são uma confirmação do que a gente tem feito e um reforço da força que nós precisamos continuar fazendo nos caminhos que se sucedem”, afirma Correnteza Braba.

Wendy Lady Oha, de 42 anos, diz que esperou longos 11 anos para ser chamada pela primeira vez para trabalhar remunerada na sua área, desde que se formou em Design de Moda. “Essa premiação, para além da competência, tem um gosto de ‘é possível’”, diz ela à reportagem.

“É muito recente pra mim ver corpos como o meu ocupando a cena artística no Amazonas. No teatro mais recente ainda, creio que as ‘pioneiras’ no teatro são as travestis aqui. Nosso espetáculo é o primeiro com 100% de pessoas trans no elenco, isso é de muita grandeza em poder chegar pela primeira vez a este lugar”, conclui Wendy Oha.

Sem fetichismo 

Cena de Huma, com Ly Scantbelruy (Foto: Robert Coelho).

Ly Scantbelruy, de 29 anos, é atriz, dançarina e produtora cultural, além de gestora. Ela foi indicada ao prêmio de melhor atriz no festival pela peça “Huma” e marcou presença no palco do teatro durante a premiação de Melhor Direção, de Francisco Rider, também produtor e dramaturgo do espetáculo.

A obra, que faz referência a uma gama de vírus que existem na sociedade como o machismo, além da própria Covid-19, também contou com a mediação de Melissa Maia, travesti premiada em edições anteriores do festival e com a preparação de Koia Refkalefsky.

“É um prêmio individual, mas ele [Rider] fez questão de que eu e a Koia subíssemos ao palco. Então, nós acompanhamos ele nesse momento e no discurso ele dedicou o prêmio para nós, agradeceu e tudo, mas eu não fui premiada, fui indicada, mas fiquei e estou muito feliz em ter sido indicada a melhor atriz com tantas atrizes maravilhosas incríveis”, conta Ly. 

Ly explica que a presença trans sempre existiu, porém há uma ascensão sendo colocada e raízes fortalecidas, o que pode ser visto nesta edição do festival com a sensibilidade da curadoria na seleção dos trabalhos. Ela diz que isso é importante para a saúde mental na carreira como artista. 

Para Scantbelruy, um dos próximos passos é fazer com que espaços de premiações com pessoas não-cis não sejam algo inédito e fora do comum. 

“Estamos no jogo, na vida e precisamos ocupar realmente esses espaços e acima de tudo esses espaços devem ser reconhecidos, mas também naturalizados né gente? Eu não quero sempre no festival ter que dizer: ‘aí é espetáculo trans’, não. É o espetáculo, feito por artistas, se vivemos numa sociedade que você pensa em inclusão vai ter, claro, pessoas trans na parte técnica, nas criações, mas isso também não pode ser  fetichizado”, afirma Ly Scantbelruy.

Roger Barbosa, premiado no festival na categoria de “Melhor Dramaturgia” pelo espetáculo “O Fio da Memória”, conta que atua há 26 anos na produção cultural e ensino da arte e que só mais recentemente conseguiu se autodenominar sem culpa como gay.

“Embora sempre tenha sido um tema, se identificar como LGBTQIAPN+ só era possível e respeitado dentro dos guetos. A sociedade em geral reprimia ou ‘aceitava’ no papel de fazer rir. Logo era mais comum e producente se manter dentro do armário”, explica Roger, da Interarte Produções.

Ele ressalta que conquistas constitucionais como a definição de crime para a homofobia em 2019, a discussão sobre identidade de gênero iniciada timidamente em 2013, as cotas nos editais de cultura, universidades e concursos estão aos poucos fazendo reparos históricos, principalmente às pessoas trans. 

“Na produção cultural, a visibilidade e oportunidade de fala não seria possível sem essas ações. A nova geração tem mais ferramentas para se colocar nesse cenário do que a minha.  Isso é muito bonito de se ver e me emociona profundamente, como fazedor de cultura e educador, aos poucos, tenho me apropriado dessas conquistas e isso tem reverberado em minhas criações”, diz Roger Barbosa. 

O protagonismo da diversidade

Festival de Teatro da Amazônia no Teatro Gebes Medeiros (Foto: Hamyle Nobre- Fetam).

Cleber Ferreira, coordenador e diretor artístico do Festival de Teatro da Amazônia (FAT) e presidente da Federação de Teatro do Amazonas (Fetam) , destacou o ineditismo das participações de artistas trans no evento desde ano, uma média de 16 pessoas. 

“Pela primeira vez o festival tem duas pessoas trans premiadas e uma série de indicações de atores e atrizes trans.  Nesses 20 anos de festival é nítido um crescimento da comunidade LGBTQIAPN+,  mais particularmente da comunidade trans dentro do teatro no Amazonas, com dramaturgias tendo um protagonismo bem interessante nesse processo”, afirma Ferreira. 

O presidente da Fetam explica que o festival ainda não consegue abranger dentro da curadoria todos os universos de minorias necessários, mas que há a existência de debates para ampliar a presença de outros corpos dentro do festival e dar maior protagonismo às populações que foram colocadas à margem. 

“Um ponto importante é que nós precisamos romper com uma homogeneidade que há de uma cultura hétero, de uma cultura machista, da presença de apenas de hétero cis, tanto homens como mulheres nesses espaços”, ressalta. 

Cleber Ferreira em noite de premiação do Festival de Teatro da Amazônia (Foto: Alonso Júnior – Fetam).

“A gente tem muito orgulho e estamos muito felizes porque nessa edição dos 20 anos tivemos uma participação tão maciça, tão afetiva e tão calorosa da comunidade trans e de toda a comunidade LGBTQIAPN+ no festival”, complementa Cleber Ferreira.

Anos até o palco

Wendy Lady Oha é a primeira pessoa do Amazonas especializada em produção de moda e styling e, mesmo assim, enfrenta muitos desafios para se manter. Em 2023, teve sua contada pela Amazônia Real, relatando os desafios de se inserir no mercado de trabalho. Ela levou décadas para conseguir subir a um palco como o do Teatro Amazonas.

“Depois de anos formada, muitas vezes pensando na ‘ralação’ para pagar os anos de estudo, fazendo até faxina para alcançar o objetivo de vencer pelos estudos, e nunca ter conseguido um emprego na área, parti para a construção coletiva com a oportunidade que a Mariellen me proporcionou de somar com todos esses corpos. Eu sou parte da engrenagem de todo Traveacado, principalmente das que vieram antes e tombaram para que fosse possível chegar aqui. O prêmio representa vitória coletiva”, afirma a designer. 

“A Doente Hereditária” tem dramaturgia do ator e diretor Dimas Mendonça e é dirigida pela atriz, diretora e professora de yoga Mariellen Kuma. O elenco e a equipe técnica do evento é composto por 9 pessoas trans e travestis. 

Segundo a visão de Wendy, o espetáculo fala de maneira irreverente sobre os atravessamentos dos corpos trans, travestis e não-bináries, abordando a comédia para falar de si mesmos sem ter que mostrar dor como sempre é o esperado. Ela conta como pensou nos figurinos, que culminou no prêmio.

“A construção das personagens nos figurinos surgiu a partir de conversas com Dimas e Mariellen, e também assistindo os ensaios, sentindo as e os personagens em cena, valeu muito a pena. Os figurinos tem a proposta de sair do óbvio e do esperado por quem produz para o teatro, construído nos estudos enquanto uma criadora de moda, figurinos, que culminou na aceitação dos jurados e na premiação”, explica.

Amazônida, afro e indígena, Wendy Lady Oha também é cantora e este ano conquistou  seu primeiro prêmio na área de melhor canção no Eco Music Festival da Canção. 

Ela reflete sobre sua trajetória, que seria diferente sem transfobia, racismo e preconceito que viveu e segue enfrentando. No último domingo, antes da premiação, ela foi à Missa e orou por todas que a antecederam para que ela pudesse agora conquistar espaços.

“Creio que na minha trajetória até ontem, o que me impediu de chegar ao lugar de trabalhar com moda foi sim a transfobia. Lembro bem das entrevistas de emprego, os olhares de espanto quando liam meu currículo, eu passava em todas as provas de seleção, e depois ia para casa esperar, e não era eu a escolhida, não foi fácil”, diz. 

Demarcar espaços e ser política

A Doente Hereditária (Foto: Ana Júlia Amaral/ Fetam)

A função da “A Doente Hereditária”, conforme Wendy, é justamente mostrar que as vivências trans terão que ser contadas por elas eles e elus, como reparação histórica também contando histórias de corpos cis, que sempre tiveram privilégios de vetar a presença dos corpos não-cis.

“A nossa presença na arte em geral, e no teatro de maneira específica, ajuda nos humanizar na sociedade brasileira a qual é a que mais nos mata no mundo, levando a sociedade o olhar de desconstrução do ódio gratuito a corpos trans, para o respeito e reconhecimento de nossas vidas como parte da construção da sociedade, a história para bem ou para mal está sendo escrita por nós também, mesmo que nos silenciem ou nos apaguem outras nascerão e contarão por nós”, enfatiza a artista.

Para Correnteza Braba, que recebeu o prêmio de Melhor Atuação do festival, conquistar e estar em espaços assim também é ser política. Segundo ela, não há sombra de dúvidas de que a própria comunidade trans é quem cria espaços para a existência desse fazer artístico.

“O que a gente vê chegar no palco do teatro Amazonas e dos outros teatros que receberam, corpos, sexos, gêneros dissidentes e suas narrativas é um esforço do nosso trabalho realizado muitas vezes de maneira independente ou de maneira a partir de incentivos públicos ou privados, mas é um esforço nosso nesses diversos polos que nós temos produzido e proporcionado espaços seguros e nutritivos para nós”, explica Correnteza. 

Rompendo a cisgeneridade

Cenas de Lágrimas Negras, com a melhor atris do FAT, Correnteza Braba (Fotos: Hamyle Nobre). 

Ainda não é “comum” para pessoas do guarda-chuva da transgeneridade se verem em espaços de poder. É, segundo elas, um desafio que ainda encontra percalços e preconceitos muitos maiores do que outras letras do LGBTQIAPN+. Afinal, como levar a narrativa trans para dentro de lugares conservadores e símbolos do colonialismo?

O rompimento da cisgeneridade e o avanço da presença desses corpos não é apenas uma questão artística e política, acaba ganhando também espaço nessa ação de protagonismo.

“Isso vem muito não só da nossa manifestação artística e política de fazer acontecer, mas principalmente de sermos nós as produtoras, produtores dessas ações, dessas manifestações”, revela a atriz Correnteza Braba. 

Sua ambição ainda é muito maior. Ela quer mais corpos, mais prêmios, lugares ainda maiores e não deve parar de lutar por justiça e direitos. “A gente não pode permitir que estar, ter estado nesse lugar tenha sido o topo do que nós podemos ser, do que nós podemos conquistar, do que nós podemos ocupar”, ressalta. 

Ela enxerga, de forma muito evidente, o racismo e a transfobia no cenário artístico manauara, sendo uma problemática estrutural que afeta todos os corpos, o que não se deve negar.  Correnteza Braba tem se unido a coletivos pensados para seu corpo, que a protegem, parcialmente, de vivenciar violência em lugares de uma cultura heteronormativa, hegemônica e branca. 

“No âmbito de concorrer em um edital, é claro que as minhas criações talvez pesem para um avaliador que seja branco. Então, quando eu vou para essas bancas é óbvio que eu tenho que pensar uma, duas vezes, se eu vou escrever que ali eu estou falando sobre uma travesti ou que eu quero um dinheiro público desta secretaria que é obviamente cristã”, explica. 

Ela conclui que, de qualquer forma, enfrenta as dificuldades pois pensa nos seus. “Eu olho para minha trajetória, eu só consigo pensar no orgulho que a gente tem mantido para nós, para os nossos antepassados e para gerações vindouras”, diz Correnteza Braba. 

Sobre o festival 

Noite de premiação do Festival de Teatro da Amazônia (Foto: Alonso Júnior – Fetam).

O Festival de Teatro da Amazônia ocorreu entre os dias 1 e 13 de outubro. Com 30 espetáculos, espaços históricos da cidade como o Teatro Gebes Medeiros, Centro de Tradições Indígenas e Teatro Amazonas foram palco da programação.

A Mostra Competitiva Jurupari premiou as produções em 20 categorias, sendo dez prêmios na categoria adulto e dez na infantil. Na categoria Adulto, destacaram-se os seguintes artistas: 

Melhor Visagismo: Flecha Borboleta – Arte e Fato; Melhor Design de Som:Uphu – Tibihuni; Melhor Figurino: Wendy Lady Oha – Doente Hereditário; Melhor Cenário: Juca di Souza e Felipe Maia Jatobá – Morro do Bode Selvagem; Melhor Iluminação: Douglas Rodrigues – Flecha Borboleta; Melhor Dramaturgia: Marcos Miramar – Provérbios de Burro; Melhor Direção: Francisco Rider – Huma; Melhor Atuação de Atriz ou Artista Não-Binárie: Correnteza Braba – Lágrimas Negras;Melhor Atuação de Ator ou Artista Não-Binárie: Ítalo Rui – Provérbios de Burro; Melhor Espetáculo: Helena – Ateliê 23.

O Festival, que está na 18º edição, é financiado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura pelo Ministério da Cultura, do Governo Federal: União e Reconstrução,  e Nubank, realizado pela Federação de Teatro do Amazonas (Fetam), com apoio da Weg e da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Governo do Amazonas.

Cena de Huma (Foto: Robert Coelho)

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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