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ToggleEm um meio rural ainda marcado por valores conservadores, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) avança no debate sobre direitos da comunidade dentro de suas bases (Foto cedida por Ícaro Matos).
Belém (PA) – Na noite de 13 de abril, cerca de 200 pessoas se reuniram no Acampamento Pedagógico da Juventude Sem-Terra, em Eldorado dos Carajás, sudeste do Pará, para acompanhar a primeira exibição do documentário Caminhos da Liberdade – As Cores da Resistência no MST. O local era simbólico: a Curva do S, onde em abril de 1996, duas dezenas de sem-terra foram assassinados pela Polícia Militar no episódio que ficou mundialmente conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás. O filme, dirigido por Vanda Carvalho, mostra, em seus 24 minutos, as narrativas sobre a vivência LGBTQIAPN+ dentro da luta pela terra e reforma agrária encampada pelo MST, com uma diversidade de olhares e perspectivas para garantir mais direitos para essa coletividade que vive no campo. A obra audiovisual mostra que esse é um tema que definitivamente entrou na pauta do MST.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) também tem abraçado, com crescente vigor, a bandeira da diversidade sexual e de gênero. Em um País onde o campo ainda é associado a tradições conservadoras e estruturas de poder patriarcais, a construção de uma identidade LGBTQIAPN+ entre os sem-terra é uma ação política transformadora.
“O MST, criado em 1984, sempre se concentrou na luta por reforma agrária, terra e transformação social. Porém, com os anos, a compreensão do movimento foi se ampliando. Em 2014, no VI Congresso Nacional, o MST aprovou um Programa de Reforma Agrária Popular, um projeto que não só propõe a distribuição de terras, mas também a reconfiguração das relações sociais e de trabalho no campo, levando em consideração os direitos humanos de todas as pessoas que ali habitam. E isso inclui a diversidade sexual”, afirma à Amazônia Real Pablo Neri, diretor-nacional do MST no Pará. Neri tem um lugar de fala especial para tratar do tema. É um dirigente gay e casado. Sua cerimônia de casamento, em pleno assentamento de reforma agrária, é uma das cenas finais do documentário dirigido por Vanda Carvalho, sua mãe.
O professor universitário Evaldo Gomes é casado com Pablo Neri. Ele afirma que a relação é um compromisso pessoal, mas também político. “Quando começamos a ficar juntos e querer casar, fomos morar em um assentamento de reforma agrária e entre municípios onde há sempre a chegada de pessoas para trabalhar na mineração e na pecuária. Ainda que existam pessoas com preconceito, a gente se faz respeitar pela força de nosso projeto, aquilo que nós construímos, e que é relevante para a sociedade. Tudo foi e é um processo de aprendizado cotidiano de ética em relação a esse compromisso social permanente”, detalha.
Histórias de superação

Fotos do casamento de Evaldo e Pablo e d Isabel Carvalho e Lúcia Ferreira (Foto: acervo pessoal e Ícaro Matos).
“Em 2014, houve o seminário sobre a diversidade sexual e se discutiu isso como um debate revolucionário, nessa iniciativa do MST. O seminário fez o MST redirecionar seus princípios, assumindo o compromisso de combater a violência e incluir as pautas da diversidade sexual”, afirma Neri. Com o fortalecimento do Coletivo LGBTQI+ Sem Terra, o movimento começou a incorporar as pautas da diversidade sexual e de gênero, entendendo que a luta pela terra não pode ser dissociada da luta pela liberdade de identidade e pelo fim das opressões que ainda permeiam os espaços rurais. “A militância e a organização dessas pessoas representam um passo importante na busca por uma sociedade mais inclusiva, onde a reforma agrária não seja apenas sobre propriedade, mas sobre dignidade e respeito a todas as formas de ser e existir”, afirmou Pablo Neri.
“Este avanço é particularmente significativo em um contexto de crescente avanço de uma direita ultraconservadora no País, que alimenta discursos de ódio e marginalização de pessoas LGBTQI+, especialmente de travestis e transexuais. Na sociedade brasileira, marcada pelo machismo e pela heteronormatividade, essa população enfrenta diariamente violências físicas e psicológicas, sendo excluída de espaços essenciais como saúde, educação e segurança”, afirmou Léo Borges, 40 anos, membro da direção estadual de gênero do movimento. “A luta do MST não se restringe ao campo da terra. Ela se estende para o campo das relações humanas, buscando criar um espaço onde a liberdade de ser, amar e existir seja respeitada e celebrada.”
A história de Isabel Carvalho e Lúcia Ferreira exemplifica bem isso. As duas se conheceram inseridas na militância há 22 anos. “No assentamento Palmares a gente concretizou nossa vida, entre trabalho e residência. Ter essa vivência do MST nos possibilitou inclusive ser mães de um casal, maternidade que tem sido um desafio, uma delícia com suas particularidades, que é cuidar desses seres humanos, fazer delas boas pessoas. É desafiador, lembra Isabel. Mas o começo foi repleto de superação. “No nosso caso era comum ouvir as piadinhas, pessoas dizendo que ‘era uma fase’, ‘até conhecer um homem que vai resolver isso’. Na época, o MST não tinha isso de se estudar, conhecer essa situação. Hoje em dia esse processo de estudar, ter seminário, ter momentos de roda e falar de LGBT no campo, é importante que as pessoas conheçam. É diferente de 20 anos atrás quando não se levava muito a sério esse debate”, diz.
“A materialização dessa transformação começa no próprio trabalho de base, onde a inclusão de pessoas LGBTQI+ nas atividades do movimento é fundamental. Não basta apenas reivindicar a terra; é necessário também reivindicar a igualdade de direitos, a visibilidade e a participação ativa de todos os grupos sociais que compõem a complexa realidade do campo. A pluralidade de vozes e histórias reafirma a importância dessa luta, que vai além das fronteiras físicas e sociais: ela busca transformar a própria essência do que significa ser camponês e camponesa”, diz Leo.
Ações de visibilidade

A história de Suely Oliveira, militante negra do MST, exemplifica essa transformação. “Foi muito complicada minha descoberta sexual. Meus pais eram muito rígidos. Perdi minha virgindade aos 13 anos com um homem. A dor e o cheiro me incomodaram muito. Depois passei a me sentir mal nas relações com homens. Corria para o banheiro e me esfregava forte. Um dia, em sala de aula, entendi o que minhas colegas falavam a respeito dos meninos. Senti atração olhando para as meninas. Dei meu primeiro beijo no banheiro em uma amiga, mas perdi a amizade dela. Aí depois desse beijo, tive minha primeira noite com uma mulher. Eu tinha 14 anos. Contei em casa. Meu pai não aceitou. E na discussão me deu um tapa muito forte. Levantei revoltada e disse que ele nunca mais iria bater na minha cara. Briguei e saí de casa. Acho que minha mãe já sabia. Passei uns três anos sem dar notícias. Fui morar com essa mulher da primeira noite. Depois de três anos voltei e meu pai ficou muito feliz, mas eu disse que era a mesma, não havia mudado. Ele disse que não importava mais. E eu fui trabalhar com ele (carvoaria) até que ele partiu em 2013. Meu pensamento mudou muito com a militância no MST. Na zona rural ainda enfrentamos algum preconceito, principalmente com pessoas mais velhas, mas o MST é um local de acolhimento”, relata ela.
Esse avanço nas fileiras do movimento é fruto de uma organização autônoma dentro do movimento, promovendo formações, encontros e ações de visibilidade. A compreensão de que a luta pela terra precisa caminhar lado a lado com a luta contra todas as formas de opressão se tornou um eixo fundamental na concepção política do movimento. Mas nem sempre foi assim. É o que relatam militantes não heteronormativos do MST.
Um dos grandes desafios enfrentados pelos militantes LGBTQIAPN+ no MST foi o de romper com a visão tradicional do campo como espaço de normatividade e exclusão. Durante muito tempo, essas pessoas foram invisibilizadas. “Se a gente for pegar a janela da última década, já ocorreram muitos problemas, truncamentos, principalmente no embate entre a geração mais jovem e os militantes mais antigos. Ainda assim, acredito que a nossa região é mais acessível que o Sul, que considero mais conservador”, diz Antônio Marcos Santana, conhecido como Félix.
“Ali na década de 1990 e 2000 se viam apenas umas três ou quatro pessoas que militavam e sofriam muito preconceito na fileira da luta. Nem existia essa discussão e era comum essas pessoas serem alvos de brincadeiras jocosas e ter de levar numa boa. Não havia debate. Era muito mais difícil que hoje”, afirma Félix. Negro e gay, ele afirma que, mesmo agora, nesse ambiente novo, ainda há choque. “Um exemplo foi no Acampamento Terra e Liberdade (ATL), quando o coletivo colocou sua bandeira LGBT. Houve um choque com um grupo evangélico que inclusive usou frases que a gente atribui à direita conservadora, como a que seria uma má influência para as crianças, pastor afirmando que iríamos pro inferno. Essa pauta dos costumes misturada com as coisas da ‘fé’ é complicada. A solução é sempre o debate, o processo de formação”, diz.
Diversidade marginalizada



Movimento LGBTQIAPN+ do MST acampamento (Foto Arquivo pessoal).
O campo, historicamente, foi pintado com um único traço: o do homem cisgênero, heterossexual, patriarcal. A narrativa dominante, ao longo do tempo, excluiu as mulheres, as pessoas negras, indígenas, e as diversas identidades de gênero que habitam a terra. Esse campo, no entanto, nunca foi homogêneo. Desde suas origens, a diversidade sempre esteve presente — embora invisibilizada ou marginalizada — e, com o tempo, essa diversidade começou a tomar forma e voz dentro dos processos organizativos da luta pela terra.
Ao falar de sua entrada na militância aos 17 anos, Vanda Carvalho lembra que muita gente que conheceu na época eram pessoas que não podiam assumir a sua identidade dentro do movimento, porque tinham medo do preconceito, não só pelas suas comunidades locais, mas também pelo próprio movimento. “O MST não tinha uma bandeira que defendia isso, ou ainda não tinha se dado conta de que existiam essas pessoas e que elas precisavam ser respeitadas, ser ouvidas e ter seu espaço dentro do movimento”, afirma. “Eu mesma, quando percebi, tive dois filhos gays. Então, uma coisa que eu falei pros meninos foi que eles sempre teriam uma mulher para defendê-los, porque lá fora tá cheio de gente pra jogar pedra, mas aqui a gente vai proteger, a gente vai cuidar de vocês.”
Apesar de o MST ser frequentemente associado a famílias tradicionais, há cada vez mais relatos de militantes LGBTQIAPN+ atuando no movimento, especialmente em áreas como educação, cultura e comunicação. Em 2020, o Coletivo Nacional de Juventude do MST lançou a cartilha Sem Terra, Sem Medo, Sem LGBTQIAPN+fobia, que discute a necessidade de combater o preconceito e garantir acolhimento nos acampamentos e assentamentos. Além disso, o MST tem incluído o tema da diversidade em seus encontros nacionais. O Congresso Nacional de 2022 aprovou uma moção em defesa dos direitos LGBTQI+ e o movimento tem estabelecido aproximações com organizações urbanas, como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), para fortalecer o diálogo sobre a inclusão. Bandeiras da comunidade passaram a ser visivelmente expostas em manifestações do MST, especialmente durante as Jornadas de Lutas de Abril — o mês histórico de mobilizações em memória do Massacre de Eldorado dos Carajás.
“A incorporação da diversidade sexual e de gênero ao projeto da reforma agrária popular não é apenas um gesto de inclusão; é parte da visão estratégica do movimento para construir um Brasil diferente. Segundo o MST, democratizar a terra sem democratizar as relações humanas seria perpetuar antigas estruturas de dominação”, diz Pablo Neri. “Por isso, a formação política e a educação popular têm um papel essencial. Em cursos, seminários e escolas de formação, a discussão sobre diversidade sexual e combate às opressões está integrada aos estudos sobre luta de classes, agroecologia e soberania alimentar. A compreensão é de que a luta por emancipação humana é indivisível”, complementa Léo Borges.
Coletivo LGBTI+ Sem Terra

A partir de 2013, o MST iniciou um processo de organização interna para discutir e promover a inclusão de pessoas LGBTQIAPN+ em suas atividades e espaços de formação. Isso resultou na criação do Coletivo LGBTI+ Sem Terra, que atua na promoção da diversidade sexual e de gênero dentro do movimento.
Um exemplo concreto dessa abordagem é o curso de Agroecologia, Saúde e Diversidade Sexual realizado em junho de 2023 na Escola Latino Americana de Agroecologia, no Paraná. O curso reuniu militantes LGBTQIAPN+ do campo para discutir temas como saúde mental, autocuidado, relações de gênero e agroecologia, visando fortalecer a luta contra a intolerância e a violência no campo. Além disso, o MST tem desenvolvido materiais educativos, como cartilhas e cartazes, para promover a conscientização sobre a diversidade sexual e combater a LGBTQIAPN+fobia nos assentamentos e acampamentos.
“É importante o fato de o MST ser um lugar onde se pode falar e ser ouvido. Isso faz com que a gente avance nesse mar revolto. Eu vislumbro um futuro em que esse debate cresça ainda mais. Precisamos avançar nas discussões e na prática, com respeito”, afirma Santana. Para Léo Borges, a palavra é resistência: “Lembrar que o mundo é estruturalmente racista, misógino, homofóbico. Em qualquer espaço vai ter essa questão. Então é óbvio que o debate no MST existe. Mas no MST temos as ferramentas adequadas para esse debate”.
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