O “Bem-Viver” é um saber viver e um saber conviver: com os outros, com a comunidade, com a divindade, com a Mãe Terra, com suas energias presentes nas montanhas, nas águas, nas florestas, no sol, na lua, no fogo e em cada Ser. (Neide Regina, Entre xales, cachimbos, mulheres e xamãs. 2016)
Era 30 de junho de 2021. A covid-19 contaminava o Planeta e denunciava a fragilidade do sistema desenvolvimentista, a inutilidade de poderes, de bens materiais no enfrentamento a virulências devastadoras fruto de barbáries à Mãe Terra. Eu e meu companheiro, Floriano Lins, apoiados nas Sabedorias Popular/Tradicionais, passo a passo, superávamos as sequelas virais, enquanto vislumbrávamos redirecionamentos de nossa jornada político militante até então em recesso.
Em situações dessa natureza, o diálogo com a Sabedoria Cósmica sempre nos traz respostas “inéditas e viáveis”*. E então?… Que rumos seguir?… A situação nos exigia recolhimento. A nebulosidade sobre perspectivas ativistas interventivas opacizava horizontes e esperançamentos. Até que a resposta chega em forma de desafio. Naquela manhã, um Agricultor do interior de Parintins/AM, nos surpreende com uma caixa de papelão, tamanho médio, com furos variados: ali, diante de nossos olhos perplexos, um filhote de Arara Vermelha (Ara chloropterus).
A princípio, relutamos acolhê-La. Esbarravam limitações de saúde, exigências da legislação ambiental (Lei 14.064/2020), além da falta de experiências para os devidos cuidados e respectiva garantia à sobrevivência digna daquele Ser que pedia socorro.
Conforme relatos do Agricultor, a Bebê fora encontrada, dia 22 de abril, num roçado, sem penas, muito debilitada: provavelmente ação de algum predador. O Agricultor alegava impossibilidades de continuar assumindo os cuidados para com o filhote, por conta de viagem para cuidar da própria saúde também abalada pelo vírus.
Lembrou-se de nós, considerando a agrofloresta urbana onde moramos e o jeito respeitoso de nossas relações com os biomas e respectivas espécies.
Concentramo-nos por uns momentos naquele vulnerável Ser, tentando entender o “recado cósmico” daquele Bebê até nós: o volume de violências às vidas selvagens; a insensibilidade dos ditos racionais e até mesmo o silêncio de determinadas instituições… Sem vislumbrar outras saídas, assumimos o desafio.
Aquela Vida precisava de um nome. E agora?… Após várias problematizações sobre a realidade biodiversa, concluímos: tudo na vida tem um sentido. Sentimos as vibrações da “Mãe Terra, Gaia, a Deusa Primordial”*, provocando-nos acolher Aquele Ser como uma Mensageira dos apelos de todas as vidas selvagens violentadas, ameaçadas de extinção. Daí, o “Cóio das Utopias”* a consagrou como Gaia – “Mensageira de Bem-Viver”. Coincidência ou não, o Agricultor, intermediário entre a Deusa Primordial e nós, relatou que Gaia fora encontrada dia 22 de abril, justo no Dia Internacional da Terra, data em que a humanidade é convidada a orar pela paz e pelos cuidados com os ambientes naturais.
Durante os primeiros meses, intensificamos os cuidados: da alimentação à proteção a predadores e depredadores (considerados os mais cruéis!).
Em novembro daquele ano, Gaia ensaia o primeiro voo sobre a florestinha do Bairro Tonzinho Saunier. Grande aflição e surpresa geral na área. Aproveitamos para construir diálogos sensibilizantes e, assim, a cada voo alto ou raso, Gaia conquistava o respeito dos moradores do bairro, tornando-se, assim, referência de Vida Selvagem livre e autônoma.
Houveram momentos em que Gaia saía pela manhã e não voltava ao poleiro. Mobilizações nas redes sociais intensificavam-se. Quando menos se esperava, ouvíamos seus acordes quebrando silêncios, despertando valores de cuidados, ritmando acolhimento nas folhagens das árvores. Era só festa na agroflorestinha!
Em sintonia com a segurança de Gaia, o ex-Secretário Municipal de Meio Ambiente, Alzenilson Santos de Aquino, o Zico, Mestre em Gestão de Áreas Protegidas da Amazônia, somara com nossos compromissos ambientais e agilizou forças na própria Secretária para protegê-La de possíveis ameaças ao direito de viver e voar com autonomia e liberdade.
A jornada de Gaia sob nossos cuidados caminha há três anos. A cada experiência, grandes aprendizados: canta com a chuva, relaxa sob carícias musicais, corre atrás de bolas com as crianças do bairro, acompanha trilhas matinais na área da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), assiste do alto de um “taperebazeiro”* o futebol de jovens da periferia e, quando nervosa, repete as lições aprendidas durante os jogos: póóórra! krrááálho!
Também bota moral sobre a cachorrada: Paaara!
Durante a última campanha eleitoral à presidência da república, em fortalecimento da democracia, logo ao nascer do sol, sobre os galhos da “embaubeira”*, anunciava em alto e bom som a utopia de um outro Brasil possível: Lulaaa!… Lulaaa!…
Com frequência, moradores do Bairro postam fotos, mensagens amorosas, quando de sua visita a seus terrenos. Em cada mensagem, anúncios de carinho, proteção e respeito.
Vislumbrando possibilidades de voos legitimamente libertários, final de 2023, proporcionamos a Gaia ultrapassar os limites do Bairro Tonzinho Saunier, adjacências e alcançar novos céus, novas áreas de floresta nativa, encontrar parcerias e seguir sua história, conforme os anseios de sua legítima natureza. Nessa busca, descobrimos um espaço digno e acolhedor a diversidades indistintas de seres da floresta, na região do Parananema, área suburbana de Parintins: chácara “Bom Princípio”, do casal Gil Gonçalves e Rosana Ferreira Gonçalves (funcionária da CEF).
O encontro entre Gaia e Rosana foi surpreendente e emocionante: Gaia entregou-se ao acolhimento e interagiu sem traumas: até passeou no ombro de Rosana. O fato chamou atenção, tendo em vista que Gaia sempre se mantém arredia com estranhos. A aventura, porém, durou pouco. No quarto dia, Gaia decide voltar ao antigo lar e busca trilhas adversas. Foi capturada sob intenções de comercialização. Após intensa campanha de resgate nas redes sociais e televisão, a SEDEMA (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente) interveio e trouxe Gaia ao lar e ao colo com os quais ainda mantêm vínculos.
Amanhã é outro dia… Esperançamos que Gaia, com autonomia e segurança, crie as próprias trilhas e defina o Cóio das Utopias e a Chácara da Rosana territórios de apoio para continuar espalhando Bem-Viver em terras Parintintin. No mais, Gaia é livre, autônoma, decide os próprios rumos e temos certeza: resiste sobre a proteção da ”Deusa Primordial” e, conforme Leonardo Boff, “em tudo há um propósito no universo”. Logo, reafirmamos: Gaia não chegou até nós por acaso.
Segundo pesquisas, a espécie Ara chloropterus mantém lealdade por toda a vida à parceria escolhida e/ou aos que a acolhem, em casos de adoção, cultivando, porém, a natural androginia.
De volta ao lar, aos poucos, o “Pássaro de Fogo” (assim chamada por amigos que acompanham seus desafios), retoma os rituais experienciados no Bairro Tonzinho Saunier: celebração às chuvas, plateia no campinho de futebol, brincadeira com as crianças, sintonia com músicas diversas, acompanha trilhas e, vez por outra, um palavrãozinho…
Gaia é a autêntica liberdade manifestada nas variações de voos e falares. É símbolo de resistência, instrumento de sensibilização, de educação ambiental e mais, de reinvenção de mundos dignos para biomas e respectivos habitantes.
Há muito a dizer sobre Gaia… Trouxemos apenas gotículas dos mistérios de um Ser vulnerável e ameaçado… Em nossas utopias materializamos o encontro de Gaia com a parceria exata à sua natureza selvagem e o fortalecimento comunitário da espécie. Também esperançamos: cada olhar sobre Ela desperte consciências e aprendizados sobre o direito à Vida com dignidade a todos os seres que se abrigam no ventre de Gaia, a Mãe Terra: todos interligados ao “cordão umbilical energético” – célula mãe da tessitura universal.
No calor do acolhimento Gaia interagiu sem traumas e até passeou no ombro de Rosana. A aventura, porém, durou pouco. (Foto: Rosana Ferreira Gonçalves/ Arquivo)
Falares da Casa
Bem-Viver: Bem-viver significa Sumak = plenitude; Kawsay = viver, dos falares quíchua, idioma tradicional dos Andes. É usada como referência ao modelo de desenvolvimento que se intenta aplicar no Equador, em longo prazo, e implica um conjunto organizado, sustentável e dinâmico dos sistemas econômicos, políticos, socioculturais e ambientais. A constituição do Equador, (2008), reconhece o direito da viver num ambiente são e, ecologicamente, equilibrado que assegure sustentabilidade e o bom-viver, sumak kawsay.
Cóio das Utopias: Agrofloresta situada no Bairro Tonzinho Saunier, área suburbana de Parintins/Am.
Cordão umbilical energético: Mirella Faur (O Anuário da Grande Mãe)
Embaubeira: (Cecropia)
Inéditas e viáveis: Conceito Freireano. “A história, enquanto tempo de possibilidades, não tem rumo predefinido, mas se movimenta entre permanências e rupturas”.(Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 2002).
Mãe Terra, Gaia, a Deusa Primordial: Mirella Faur (O Anuário da Grande Mãe)
Taperebazeiro: (Spondias mombin L.)
A foto que abre este artigo é de autoria de Gustavo Coimbra e Floriano Lins, e tem a seguinte legenda: Cada olhar sobre Ela desperte consciências e aprendizados sobre o direito à Vida com dignidade a todos os seres.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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