Foto: Piratá Waurá
Na cosmogonia da etnia Wauja, em Mato Grosso, a lenda de Kamukuwaká conta que ele teve a casa transformada em pedra por Kamo (o Sol), pois este invejava sua força e beleza. Essa lenda reforça a importância cultural e histórica de povos indígenas que já viram parte de seus registros serem destruídos.
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Isso porque a gruta de Kamukuwaká existe e abriga rituais e a história dos povos que vivem no Alto Xingu por meio de gravuras rupestres milenares. Trata-se de um local considerado sagrado por 11 etnias indígenas – tombado como Patrimônio Cultural do Brasil desde 2010 -, localizado no município de Paranatinga, que está, ironicamente, fora do Território Indígena do Xingu.
A gruta fica dentro de uma área particular, o que dificulta o acesso e conservação pelos povos indígenas. Em 2018 parte das pinturas rupestres na gruta foram alvo de depredação em função da falta de demarcação apropriada no local, prejudicando a preservação histórica dos Wauja.
A gruta é considerada a morada atemporal do guerreiro Kamukuwaká. Ele é o líder ancestral que deixou como herança aos povos do Alto do Xingu o ritual da furação de orelha, que inicia jovens lideranças nas comunidades.
Em um especial para o Nonada Jornalismo, Erika Artmann esmiuçou a lenda durante conversas com o fotógrafo e professor da aldeia, Piratá Waurá:
Kamukuaká: história que acompanha o curso do rio
“Na história de Kamukuaká, a gruta servia como casa na aldeia antiga de Tupapuihu, que significa Lugar da Pedra. A beleza do líder e as músicas do povo despertaram a inveja de Kamo, Sol, que vivia do lado direito do rio. O povo dos pássaros havia descido do céu, onde estava a aldeia deles, para a terra. Kamukuaká, ao encontrá-los, perguntou o que estavam fazendo ali. As aves explicaram que iriam furar a orelha de um dos seus jovens, quando o líder do povo que habitava Tupapuihu se interessou e pediu para que também furassem a sua orelha. Os pássaros foram embora e disseram que voltariam.
Tempos depois, todos vieram para o ritual: Kamukuaká, seu povo, os pássaros e Kamo. O líder decidiu que usaria a própria flecha para fazer o furo. Foi quando Kamo pegou o objeto e fingiu que furaria a orelha de Kamukuaká mas, no meio da festa, mirou na cabeça porque queria mesmo era matá-lo. Quando percebeu, Kamukuaká se virou e o objeto furou uma orelha. Depois Kamo lançou uma segunda flecha que acertou a outra orelha. Depois, as flechas continuaram sendo atiradas até que furaram, uma por uma, as orelhas dos jovens do povo de Kamukuaká. Kamo não conseguiu matar ninguém. A história conta o início do ritual de furação de orelha, que ocorre até hoje entre os Wauja.
Na aldeia Topepeweke, uma das nove do povo Wauja – onde atualmente mora Piratá Waurá -, a última vez que o ritual aconteceu foi em 2009. Naquele ano, uma pessoa foi escolhida para ser treinada como líder na aldeia. “Então, [o ritual] acontece quando o cacique escolhe seu novo sucessor, que poderá substituir futuramente”. A escolha se dá entre os jovens com idade de 10 a 17 anos.
Mas em Tupapuihu, no tempo de Kamukuaká, após o ritual de Furação de Orelha, os jovens foram aprisionados na gruta-casa, de onde eram controlados e vigiados por Kamo. Por mais que tentassem sair, as paredes rígidas da rocha impediam. Kamo enviou algumas aves com dentes para o lugar e mandou que os matassem, mas Kamukuaká e seus parentes deram comida e fizeram amizade com os animais, que de seus inimigos passaram a ser amigos e estar do lado do povo.
Kamo estava insatisfeito. Não conseguiu matar Kamukuaká nem com as flechas na furação de orelha, nem com as aves comedoras de gente. Por isso, mandou uma cobra gigante à gruta para comer os jovens que estavam lá em reclusão. Quando o animal chegou, os homens usaram a mesma estratégia que tiveram com os pássaros: mantê-la alimentada para que não os comessem. O professor Piratá Waurá conta que, quando acabou todo o alimento dentro da gruta, eles precisaram entregar uma pessoa: “Seguraram o homem e jogaram na boca da cobra grande, que ficou satisfeita e voltou a dormir”. Precisavam encontrar um jeito de sair dali.
Decidiram, então, mandar as aves de dentes afiados comerem as paredes de pedra. Deste modo, teriam uma passagem para fugir da gruta. “ Os animais vão comendo, quebrando os dentes, até que os parentes dos periquitos, mas aqueles de dentes afiados, conseguem furar três saídas para o céu”. Assim que isso acontece, uma liderança do povo de Kamukuaká lança sua flecha. As demais pessoas que estavam na reclusão repetem o movimento, que logo dá origem a uma corda. Assim o povo de Kamukuaká conseguiu fugir à noite, enquanto Kamo e a cobra ainda dormiam.
Quando eles estavam no meio da fuga, Kamo acordou e mandou que a cobra gigante subisse atrás deles. Mas uma das irmãs de Kamukuaká, que havia ficado escondida na gruta e guardava uma ferramenta de corte consigo, conseguiu impedir que a cobra fosse atrás deles. Com o objeto, ela corta a cobra do rabo à cabeça.
Enquanto isso, as pessoas que subiram para o céu precisaram escolher para onde ir porque lá havia a aldeia dos pássaros, mas também as de outros seres. Ao escolherem o caminho e chegarem à primeira comunidade, descobriram que erraram o trajeto e estavam na aldeia das onças, um território perigoso. Ainda assim, por estarem com fome, decidiram que um deles deveria verificar o que tinha na oca e porque o lugar estava tão silencioso. Perceberam que quase todas as onças tinham saído para caçar mas, quando um deles entrou em uma das casas, ouviu-se um rugido. A única onça que não foi à caçada estava ali dentro. Nisso, todas as onças voltaram para o céu e atacaram o povo de Kamukuaká.
Quando já não restava quase ninguém, Kamukuaká lutou com as onças e abriu espaço para fugirem novamente. Ao saírem, finalmente encontraram a aldeia dos pássaros e conseguiram a ajuda necessária para voltar para a terra. As aves trouxeram o povo de Kamukuaká de volta para casa. Piratá conta que “foram descendo aqui no rio Tamitatoala, o rio Batovi. E por isso todo o rio, cada lugar, tem uma história referente às histórias de Kamukuaká”.
Em 2020, o antropólogo Walter Coutinho escreveu um relatório sobre a gruta a pedido do Ministério Público do Mato Grosso. Ali, Coutinho explica que a história contada pelos Wauja sobre Kamukuwaká está inscrita na paisagem do rio Batovi. “Diversos pontos ou formações dessa paisagem são interpretados pelos Wauja como uma expressão tangível da narrativa mitológica. Além das formações geográficas diretamente relacionadas ao mito, eles também reconhecem outras áreas de significado cultural, mormente relacionadas a atividades econômicas desenvolvidas pelos indígenas que ali habitaram no passado”.”
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Os desenhos rupestres vandalizados em 2018 eram utilizados para ensinar às crianças justamente sobre as suas origens e cultura. Para os Wauja, alguns dos grafismos também representam a fecundidade feminina, pois acreditam que as mulheres têm o poder de aumentar a fertilidade de tudo o que é vivo.
Os símbolos desenhados na gruta também inspiram as decorações das cerâmicas e cestaria, as pinturas corporais e também as músicas que embalam os rituais de apaziguamento dos espíritos da natureza.
Em 2020, um vídeo feito para o ‘Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade’, do Iphan, apresenta a ação ‘Registro e Conservação da Paisagem Cultural de Kamukuwaká’, explicada por Piratá Waurá:
A ação foi vencedora na categoria ‘Patrimônio Material’, segmento ‘Cooperativas, associações formalizadas ou redes e coletivos não formalizados’.
Mas a luta pela preservação do local segue. Um pedido de revisão e ampliação da demarcação da terra indígena, para abranger a gruta de Kamukuaká foi solicitado e, até 2024, ainda não havia sido validado.
*Com informações do Instituto Homem Brasileiro, PIB/ISA, Iphan e Nonada Jornalismo
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