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ToggleRepresando afluentes e o rio de mesmo nome, o Lago Paranoá foi pensado no fim do Século 19 e concretizado no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) para amenizar a seca no Cerrado e adornar a capital federal. Nos anos seguintes, recebeu variadas espécies de peixes exóticos para ampliar a pesca. Moradores seguem liberando esse tipo de animal no reservatório.
Poucas remadas bastaram para nos levar algumas dezenas de metros adentro do Lago Paranoá, que atinge 38 metros de profundidade e cobre 48 km2 na capital federal. A área é similar a quase 5 mil campos de futebol ou à metade do território da capital Vitória, do estado do Espírito Santo.
Minutos depois, o sol farto desenhou uma imensa sombra nas águas esverdeadas. Passado o susto, observamos a enigmática figura serpentear e cruzar sob o frágil caiaque. Só quando exibiu cores e formas perto da lâmina d’água identificamos um pirarucu, natural da Bacia Amazônica, a milhares de quilômetros da capital federal.
Maior peixe de escamas de água doce do mundo, um adulto da espécie Arapaima gigas pode chegar a 3 metros e 200 quilos. É um predador voraz de outros animais aquáticos que tem sido introduzido em rios e reservatórios naturais e artificiais do país, usualmente por interessados em pescá-lo bem longe da floresta equatorial.
No Paranoá, a história parece se repetir. Conforme o Instituto Brasília Ambiental (Ibram), o até então solitário espécime deve ter chegado ao lago de forma “acidental ou proposital”. Ou seja, pode ter escapado de algum tanque caseiro ou ter sido solto por algum criador imprudente.
“É comum as pessoas acharem que estão povoando o local ou ajudando a ‘libertar’ o animal do cativeiro. O problema é quando acontece à revelia e sem o conhecimento de que se trata de uma espécie que naturalmente não ocorre na região”, ressalta a autarquia, ligada à Secretaria do Meio Ambiente e Proteção Animal do Distrito Federal (Sema).
Episódios similares ocorrem ao longo dos anos no lago brasiliense. Em 2007, um jacaré-açu (Melanosuchus niger), também natural da Amazônia, foi capturado por agentes policiais e do Ibama. O animal tinha quase 4 metros e pesava cerca de 200 quilos. Na época, foi transferido ao Zoológico de Goiânia (GO). Ao menos outro réptil da mesma espécie foi registrado naquele ano. Mas também há 2 espécies nativas de jacaré na Bacia do Paranoá. “Não necessariamente [outro jacaré que seja avistado] se trata de uma espécie exótica”, descreve a Assessoria de Imprensa do Ibram.
A chegada de espécies como essas à capital federal é um enigma e aumenta as suspeitas de que o transporte e o comércio ilegais alimentam sua dispersão no país. Todavia, governos também foram protagonistas na introdução de animais não-nativos na Bacia do Lago Paranoá.
Solturas oficiais
Peixes exóticos começaram a ganhar as águas do manancial logo após o fechamento de uma barragem e enchimento do lago, em 1960, quando o Distrito Federal foi administrado pelos “prefeitos nomeados” Israel Pinheiro da Silva e Segismundo de Araújo Mello.
Apenas entre março e dezembro daquele ano, o governo local soltou no reservatório 170 mil tilápias-do-congo (Tilapia rendalli), achigã ou “black-bass” (Micropterus salmoides), brema ou “bluegill” (Lepomis macrochirus) e mandi-amarelo (Pimelodus maculatus). As espécies são de outras regiões do Brasil, da África, dos Estados Unidos, Canadá e México.
A ideia era povoar um manancial tido como “pouco piscoso, sem captura para fins comerciais e com uma pesca esportiva incipiente”, conta o livro “Olhares sobre o Lago Paranoá”, publicado em 2001 pelo Governo do Distrito Federal e um dos melhores apanhados sobre a construção e ecologia do Paranoá.
Mais espécies exóticas foram liberadas nas décadas seguintes, como a europeia carpa-comum (Cyprinus carpio), os amazônicos tucunaré (Cichla ocellaris), tambuatá (Callichthys callichthys) e tambaqui (Colossoma macropomum), além da tilápia-do-nilo (Oreochromis niloticus) e camarões. Os alevinos vinham de tanques na Granja Modelo do Ipê, ainda hoje vendendo crias de peixes exóticos.
“Desde a época essas eram espécies comuns à aquicultura e também para a recreação, para a pesca esportiva”, lembra o biólogo Pedro Podestá Uchôa de Aquino, doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB) e parte do Instituto de Ciências Biológicas da instituição federal.
Não bastando, carpas chinesas escaparam de experimentos da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (CAESB) e também acabaram no lago. O Paranoá recebeu, ainda, peixes ornamentais despejados por aquaristas, como o espadinha (Xiphophorus hellerii e X. maculatus) e o “guppy” (Poecilia reticulata).
Impactos subaquáticos
Muitos peixes se adaptaram e são hoje encontrados em todo o lago, uma salada biológica com espécies exóticas e nativas disputando espaço e alimentos. “Isso afetou diretamente a população de peixes nativos, (…) entre outros fatores que levaram (e levam) à diminuição dos espécimes de peixes nativos do Lago Paranoá e tributários”, ressalta o Ibram.
Além da competição por ambientes e comida entre as atuais 52 espécies nativas e 15 espécies exóticas de peixes no manancial, as primeiras podem ser mais facilmente devoradas por não reconhecerem prontamente as demais como predadoras.
“Espécies exóticas são uma grande causa global de perda de biodiversidade. A introdução da perca-do-nilo [Lates niloticus] em lagos africanos extinguiu mais de 200 espécies nativas”, alerta o biólogo e pesquisador Uchôa de Aquino, da UnB.
Ainda mais preocupante para os animais nativos, estudos mostram que espécies exóticas invadem afluentes do Paranoá desde os anos 1990. O lago é “artificial”, mas seus tributários são naturais. “Nesses locais, as espécies nativas estão sendo substituídas por espécies exóticas”, reconhece o Ibram.
Isso pode impactar inclusive as pescarias amadoras e profissionais na capital federal. Presidente da única colônia de pescadores no Distrito Federal, Marcos Antônio Dias conta que a quantidade capturada tem variado de 10 quilos a 50 quilos por noite. “Em algumas semanas cai bastante a pesca”, diz.
As principais espécies tiradas das águas pelos cerca de 50 homens e mulheres registrados pelo Ministério da Pesca na colônia são cará, tilápia e tucunaré. A grande maioria usa redes e canoas de madeira. O grupo está mobilizado contra uma legislação distrital que, segundo eles, constrange sua atividade.
Outros efeitos são ainda mais amplos. Conforme o plano de manejo da Área de Proteção Ambiental do Lago Paranoá, reserva distrital com 16 mil ha criada em 1989, a pesca no Lago Paranoá é concentrada em espécies exóticas que “afetam negativamente a qualidade da água”. O recurso abastece os brasilienses.
Falta monitorar
Se há seis décadas, quando o Paranoá foi enchido, faltava consciência sobre os prejuízos causados por espécies exóticas invasoras, a realidade vem mudando positivamente. A legislação brasileira criminaliza desde 1998 a introdução de espécies exóticas no país sem permissão de órgãos ambientais.
“A postura global sobre introdução desses animais e plantas mudou desde a Convenção sobre Diversidade Biológica, estabelecida na Rio92”, destaca Aquino de Uchôa, da UnB. O encontro realizado em junho de 1992 no Rio de Janeiro (RJ) reuniu uma centena de países buscando conciliar o crescimento econômico e a conservação ecológica.
Mas as mudanças conceituais precisam refletir em ações do poder público, como acompanhar os impactos das espécies exóticas no Lago Paranoá. “O GDF não possui um programa de manejo dos animais, mas monitora a fim de traçar diretrizes de atuação e de orientação para a população”, diz o Ibram.
Sem referência direta aos peixes exóticos, o órgão citou um trabalho recente que demonstrou não haver uma superpopulação de capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris) na região do Paranoá. A remoção dessa e de outras espécies só pode ocorrer com estudos, autorização oficial e por pessoas capacitadas.
Por isso Aquino de Uchôa, doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB), pede que os efeitos dos peixes exóticos no lago sejam vigiados de perto. “É complicado apontar efeitos da introdução desses animais sem um acompanhamento qualificado e de longo prazo”, destaca o biólogo.
Tal falha é um fenômeno nacional, pondera Michele de Sá Dechoum, professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Segundo ela, as invasões biológicas são a ameaça à biodiversidade mais negligenciada em nossa gestão pública, seja por interesses econômicos ou por falta de estudos.
“Algumas espécies exóticas invasoras oferecem benefícios pontuais a determinados segmentos” e há uma “deficiência de conhecimento técnico, tanto na perspectiva conceitual quanto das medidas de gestão e manejo necessárias”, detalha a pesquisadora em release da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (PBBSE).
Dechoum integra um time de 100 cientistas, colaboradores e revisores que lançou esta semana um estudo inédito apontando prejuízos anuais de até R$ 15 bilhões com a disseminação e falta de controle sobre espécies exóticas invasoras no Brasil.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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