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Justiça Federal suspende licença para obra do ‘trecho do meio’ da BR-319

Justiça Federal suspende licença para obra do ‘trecho do meio’ da BR-319

Ação aponta falhas e contradições do processo emissão da licença. Mesmo afirmando que a rodovia, sem ações de governança, vai causar explosão de desmatamento, órgão federal autorizou a obra. Na imagem acima trecho da 319 em Realidade, no Amazonas (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).


Manaus (AM)  – A 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas determinou a suspensão  da Licença Prévia nº 672/2022, que autorizava a reconstrução e asfaltamento do chamado “trecho do meio” da BR-319 [estrada que liga Manaus a Porto Velho], compreendido entre os quilômetros 250,7 e 656,4. A decisão da juíza Mara Elisa Andrade desta quinta-feira (25) atendeu ação civil pública movida pela organização Observatório do Clima contra o Instituto Brasileiro do e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). A licença prévia havia sido concedida em julho de 2022, no governo de Jair Bolsonaro (PL).

O Observatório do Clima contestou a decisão do Ibama de licenciar, mesmo com todos os alertas para os riscos de aumento de explosão de desmatamento e outros impactos ambientais que o próprio órgão ambiental federal apresenta em seu documento autorizando a obra. A organização também apontou na ação a ausência de consulta aos povos indígenas de territórios impactados pela rodovia, como os Apurinã e os Mura. Desde que o projeto da obra foi retomado, o governo brasileiro não realizou o Estudo de Componente Indígena (ECI).

Na sua ação, reproduzida na decisão judicial, o Observatório do Clima denuncia que “desde o simples anúncio da pavimentação, houve expressivo aumento do desmatamento no entorno da rodovia, o que corrobora a tese de dano grave e atual a ser imediatamente contido, razão pela qual a anulação e sobrestamento dos efeitos da Licença Prévia n°672/2022 seria imprescindível para evitar a consolidação de graves e irreversíveis danos ao meio ambiente.”

A juíza Mara Elisa Andrade considerou necessário suspender a licença para evitar danos ambientais irreversíveis. A magistrada destacou que a reconstrução e pavimentação do trecho do meio da BR-319 poderiam contribuir para um aumento significativo no desmatamento e outras formas de degradação ambiental.

“Se a destruição da Floresta Amazônica não pode ser evitada, a menos que previamente estabelecidas e efetivadas políticas públicas de controle, fiscalização, prevenção e repressão às infrações e crimes ambientais associados ao desmatamento e grilagem de terras públicas; não estamos a tratar de outra questão senão inviabilidade ambiental do empreendimento da BR-319, independentemente de quem seja responsável por tais políticas públicas de controle e prevenção do desmatamento. Logo, não se trata de ‘pré-condicionantes’ ao licenciamento, mas de verdadeira inviabilidade ambiental da obra, até que o cenário de governança ambiental e fundiária seja drasticamente fortalecido por diferentes atores públicos”, escreveu a magistrada.

Ela destacou que sua decisão levou em conta a necessidade de preservar o meio ambiente e proteger as comunidades afetadas, cumprindo assim o dever constitucional de garantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

A coordenadora executiva da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), Mariazinha Baré, disse que a decisão da Justiça vai impactar o relatório do GT produzido pelo Ministério dos Transportes, e o próprio licenciamento da obra.

“Essa decisão, essa liminar, já gerou um impacto, já mexeu com as instituições, já mexeu com o relatório, já mexeu com muitas questões ilegais, muitas questões que o próprio Estado brasileiro trouxe como condicionante e não cumpriu. [Isso] cria um impacto na questão do próprio licenciamento da obra. Fica muito claro que existe muita irregularidade neste processo de licenciamento desde o início”, declarou Mariazinha, em entrevista à Amazônia Real nesta quinta-feira (25), logo após ter conhecidomento sobre a decisão judicial.

Para Mariazinha Baré, é importante a população entender que as próprias autoridades públicas criam as condicionantes para a obra e não as cumpre. “Se a gente está recorrendo às instituições é porque está faltando muita coisa. Não cumprem com o que é recomendado [não cumprem] com as próprias recomendações”, pontua.

Ela também ressaltou que o licenciamento prévio deixava de considerar muitas questões como o diálogo com as organizações indígenas. “É o resultado de todo um trabalho mal feito”, finaliza.

Com a suspensão da Licença Prévia, as obras de pavimentação do trecho do meio da BR-319 ficarão paralisadas até que haja uma decisão final sobre o mérito da ação.

Falta de estudo indígena

Aldeia São Francisco, na Terra Indígena Igarapé Tauá Mirim, no município de Tapauá (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

Para o advogado Nauê Azevedo, que é especialista em Litigância Estratégica do Observatório do Clima, uma decisão da justiça que venha a suspender a licença ao analisar todo o processo e dizer que há problemas, há nulidades no meio do processo que justificam essa suspensão, dá um forte indicativo de que a licença pode vir a ser anulada no final do processo. 

“Os órgãos responsáveis deixaram passar detalhes que não deveriam ter passado e que eram exigidos pela lei dentro do processo de licenciamento, as condicionantes no caso. Então há impacto sim, e vai ser necessário que o GT explique muito bem como contornar isso ou volte atrás e cumpra as condicionantes conforme exige a lei”, disse Azevedo, à Amazônia Real.

A Ação Civil Pública movida pelo Observatório do Clima destacou diversos pontos críticos. A organização diz que a licença foi concedida em desacordo com Grupo de Trabalho e do Comitê Interministerial, que indicavam a necessidade de adoção de medidas de governança ambiental antes da emissão da licença. Também apontou falta de governança ambiental para mitigar impactos ambientais e climáticos. Uma das situações mais graves, que já vem sendo denunciada por outras organizações, é a falta de consulta prévia aos povos indígenas e comunidades tradicionais.

O Observatório do Clima apontou que ao longo do processo administrativo de licenciamento ambiental, o Ibama teria apresentado pareceres e vistorias com alertas para a explosão do desmatamento da região em caso de pavimentação da rodovia, deixando claro o risco concreto de ocupação predatória de seu entorno. 

Ainda assim e a despeito destas constatações, o Ibama teria emitido a Licença atestando a viabilidade ambiental do empreendimento, em violação às normas de Direito Ambiental e Constitucional e contradizendo as suas próprias conclusões técnicas.

Relatório do GT

Indígenas Apurinã da Aldeia São Francisco, na Terra Indígena Igarapé Tauá Mirim, no município de Tapauá, Amazonas (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Em 11 de junho deste ano, o Ministério dos Transportes  chegou a divulgar o relatório do Grupo de Trabalho (GT) informando sobre “viabilidade socioambiental da BR-319 com condicionantes a serem cumpridas para obtenção da Licença de Instalação e de Operação para a obra de pavimentação da rodovia”. O relatório foi produzido entre 17 de novembro de 2023 e 29 de fevereiro de 2024.

A rodovia atravessa várias unidades de conservação e impacta diretamente as terras indígenas: TI Apurinã do Igarapé São João e  Apurinã do Igarapé Tauamirim, do povo Apurinã; TI Lago Capanã e TI Ariramba, do povo Mura; e TI Nove de Janeiro, do povo Parintintin. Lideranças indígenas ouvidas à época por Amazônia Real, contestaram o relatório produzido pelo governo federal. 

À época, Nilcélio Jiahui, que é coordenador executivo da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira (OPIAM), disse que não houve discussão com os povos afetados pelo empreendimento.

“Vamos continuar lutando para que essas consultas saiam e que a gente tenha também o direito de exercer [o sim ou não] para a pavimentação. Porque essa pavimentação prejudica muito os territórios indígenas”, disse o líder indígena do sul do Amazonas, em declaração à Amazônia Real.

Ele afirmou que o diálogo com os órgãos do governo federal não está descartado, mas que ele precisa ser de acordo com os critérios da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), tratado internacional do qual o faz parte.

“Nós exigimos o respeito à consulta livre, prévia e informada. Não vamos aceitar atropelos. Vamos encaminhar mais uma vez uma denúncia ao Ministério Público porque os povos indígenas afetados não estão sendo consultados, não está tendo diálogo com esses povos. Então a gente vai continuar fazendo o que é de nosso direito, que é denunciar esses fatos para as autoridades competentes para que tome as devidas providências”, afirmou Nilcélio.

Pelo fim do Lobby

O pesquisador e biólogo Lucas Ferrante (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

O biólogo e pesquisador Lucas Ferrante, que desenvolve pesquisas sobre os impactos da BR-319, comentou a decisão judicial. “Acho que é excelente o Observatório do Clima ter representado contra essa Licença Prévia que era totalmente descabida e não tinha como acontecer. Eu acho que essa é uma vitória da ciência, da conservação ambiental, da Amazônia e dos povos indígenas. E ela precisa ser respeitada e o Dnit precisa parar de fazer lobby para a rodovia definitivamente”, disse.

Para o pesquisador, é o momento de olhar para os estudos científicos feitos sobre o tema. “É extremamente importante que se destaque que todos os estudos científicos revisados pelos pares apontam que a rodovia é inviável do ponto de vista ambiental, de saúde pública, social e econômico. E ainda é importante frisar que todos os modelos de desmatamento apontam que, se pavimentada, jamais existirá contingente suficiente do IBAMA ou da Polícia Federal para fiscalizar as áreas de grilagem na rodovia”, avisa.

Ferrante criticou ainda a proposta de fiscalização. “Independente do que o Dnit aponte, dois postos de fiscalização chegam a ser uma piada de achar que conteriam o desmatamento. Isso não pode ser tolerado e, de fato, essa via precisa ser revista pelo governo federal”, finalizou.

A reportagem da Amazônia Real procurou o Ibama para comentar a decisão da Justiça Federal. O órgão disse que, até o momento, não foi formalmente intimado da decisão e irá se manifestar oportunamente, após tomar conhecimento da decisão.

Já o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) informou que já foi notificado da liminar da Justiça Federal do Amazonas. “A autarquia está analisando todas as providências a serem tomadas para então se manifestar sobre a decisão. Esclarecemos que seguem em curso os estudos e projetos necessários para a continuidade da licença ambiental, seguindo todos os requisitos prévios para avançar no empreendimento, cumprindo as condicionantes e respeitando as premissas ambientais”, disse por meio de nota.

Uma BR-319 no meio do caminho

Trabalhadores durante manutenção da BR-319 no trecho entre Porto Velho e Humaitá (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

Há um ano, a Amazônia Real participou do consórcio internacional coordenado pela Forbidden Stories, que encabeçou o Projeto Bruno e Dom, que foi formado por mais de 50 jornalistas de 16 organizações de mídia. A agência foi o único veículo da região Norte do Brasil.

Como parte deste projeto, a agência publicou a reportagem  “Uma BR-319 no meio do caminho”, mostrando os bastidores das tentativas de asfaltamento da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho.


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