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ToggleManaus (AM) – “Hoje, essa sentença não representa uma vitória. Pelo contrário, é uma cortina de fumaça que tenta encobrir o verdadeiro crime cometido contra Julieta: feminicídio”, desabafa Sophía Hernández, irmã da artista circense torturada e violentada em um assassinato brutal ocorrido em dezembro de 2023. Em entrevista à Amazônia Real, ela protestou contra a decisão da Justiça do Amazonas de condenar o casal Thiago Agles da Silva e Deliomara dos Anjos Santos pelos crimes de latrocínio (roubo seguido de morte) e ocultação de cadáver. “O que tentam nos tirar é a verdade, a justiça e a nossa dignidade. Mas não conseguirão. Não ficaremos de braços cruzados.”
Na última quinta-feira (16), a juíza Tamiris Gualberto, da Vara Única da comarca de Presidente Figueiredo, seguiu recomendação do Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM), que denunciou os réus pelos crimes de latrocínio, estupro e ocultação de cadáver. Mas, pela sentença, o casal foi absolvido do crime de estupro por insuficiência de provas. A alegação foi a de que o laudo de exame de corpo de delito não era conclusivo quanto à violência e também não houve “prova testemunhal idônea nos autos capaz de suprir a ausência da prova técnica pericial, que é indispensável em crimes que deixam vestígios”, segundo a Justiça do Amazonas.
Mas a própria Deliomara Santos, em depoimentos ao delegado Valdinei Silva, relatou a sequência da violência de gênero contra Julieta Hernández, como revelou à agência Amazônia Real na época. “Depois que a Deliomara amarrou os pés da Julieta, o Thiago arrastou a Julieta, que estava desacordada, para dentro da casa e apagou as luzes. Deliomara ligou a luz e, segundo ela, se deparou com a cena do estupro. Ela disse que ficou com ciúmes. Em seguida, pegou álcool e jogou nos dois e ateou fogo. O Thiago saiu de casa e foi para o Hospital Geral Eraldo Neves Falcão, em Presidente Figueiredo, pois teve o tronco e os braços queimados. Deliomara contou que amarrou a corda no pescoço da Julieta e a matou”.
Segundo as investigações da polícia, Julieta Hernández foi torturada e violentada em um assassinato brutal no município de Presidente Figueiredo, a 107 quilômetros de Manaus. Seu corpo foi encontrado 14 dias depois e o crime desencadeou uma série de manifestações de artistas circenses, ciclistas, feministas e movimentos sociais em várias cidades do Brasil e do exterior, exigindo justiça. O sepultamento do corpo da artista foi em 12 de janeiro de 2024 em Puerto Ordaz, na Venezuela.
Sophía afirma estar profundamente abalada e indignada com a sentença. E que a investigação foi conduzida de forma superficial, sem interrogatórios, sem ouvir possíveis testemunhas. Embora o casal tenha sido condenado por latrocínio, não foram encontradas provas que comprovassem o suposto roubo, já que o celular da vítima, apontado como motivo do crime, permanece com a família. O aparelho nunca foi utilizado nem periciado. “Nada foi roubado da minha irmã”, disse Sophía.
Deliomara dos Anjos Santos foi condenada a 37 anos, 11 meses e 10 dias de reclusão, além de 264 dias-multa. Já Thiago Agles da Silva a 41 anos e 3 meses de reclusão, mais 220 dias-multa. O casal de criminosos, que vivia na pousada Centro Cultural Mestre Gato com cinco filhos, local no qual Julieta se hospedou durante sua passagem pela cidade, confessou o crime em 5 de janeiro de 2024 e desde então permanece preso pela Polícia Civil do Amazonas.
A juíza Tamiris Gualberto decidiu que os condenados continuarão presos enquanto aguardam o fim do processo. Na prática, isso significa que eles vão começar a cumprir a pena imediatamente, mesmo que ainda caibam recursos na Justiça.
Sophía Hernández relatou que a condenação foi emitida sem um julgamento formal, como o caso exige. Embora o processo tramitasse sob segredo de Justiça, a imprensa teve acesso imediato à sentença, antes mesmo da família e dos advogados. “Esse padrão lamentavelmente se repete, como ocorreu quando o corpo da minha irmã foi encontrado. A imprensa sabia antes de nós”, lamentou. O Tribunal de Justiça divulgou a sentença em sua página na internet.
Feminicídio ignorado
“Foi um feminicídio, motivado por ódio de gênero, xenofobia e desprezo pela vida de uma mulher estrangeira. O corpo da minha irmã e seus pertences foram encontrados enterrados no mesmo local onde moravam os assassinos. Acusá-la de ter resistido a um assalto não apenas carece de provas, como também de humanidade”, indignou-se Sophía Hernández. “Exigimos uma justiça real, com transparência, com julgamento público, com perspectiva de gênero e com todas as garantias processuais. Não permitiremos que o caso seja encerrado sem que a verdade seja reconhecida.”
A família da artista decidiu recorrer da decisão da semana passada e apresentou uma denúncia formal ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que o caso de Julieta não possa ser reduzido a um crime patrimonial, como nos casos de latrocínio.
Há mais de um ano a família de Julieta lidera um movimento para pressionar o Poder Judiciário do Amazonas pela reclassificação do crime como feminicídio. A ação foi articulada em parceria com a União Brasileira de Mulheres (UBM) e o Ministério das Mulheres, levando em conta as qualificadoras: violência de gênero, porque a artista foi estuprada, torturada, assassinada e teve o corpo ocultado, atos que reforçam o menosprezo e ódio à sua condição feminina; além de xenofobia, que é preconceito por ser estrangeira.
O advogado Carlos Nicodemos, representante da família de Julieta, explicou que os crimes relacionados à vida como homicídio, aborto, induzimento a suicídio e infanticídio são objetos de Tribunal do Júri, ou seja, devem ser julgados pela sociedade. O feminicídio é uma forma de homicídio. Nicodemos acrescenta que, em comarcas menores como a de Presidente Figueiredo, a mesma vara costuma acumular diferentes tipos de processos, incluindo crimes contra a vida.
“A batalha judicial no caso da Julieta era para que a juíza reconhecesse que foi um feminicídio. Se ela o reconhecesse, teria que remeter o julgamento de mérito para um plenário, no qual sete pessoas da sociedade apreciariam e condenariam ou iriam absolver os acusados. Como ela entendeu que é latrocínio, não tem tribunal do júri, não têm plenário, ela mesmo definiu e condenou a pena que todos já têm conhecimento”, destacou o advogado.
Francy Junior, ecofeminista, historiadora e ativista do Movimento das Mulheres Negras da Floresta – Dandara, avalia que a forma como o caso foi enquadrado pelo MP-AM e pelo Judiciário revela uma escolha jurídica controversa por afastar a hipótese de crime contra a vida. Segundo a ativista, essa opção pode ter sido uma estratégia para garantir uma condenação mais rápida e penas altas, com base nas provas de que a intenção inicial seria o roubo do celular, da bicicleta e de objetos pessoais de Julieta. No entanto, ela observa que a decisão reflete uma lógica institucional que invisibiliza a violência de gênero.
“O júri popular tem uma função social de dar visibilidade pública ao crime e às motivações machistas, racistas e xenofóbicas, o que foi negado nesse caso. Como feminicídio é crime contra a vida, o fato de não ter júri reforça a impressão de que a morte de Julieta foi tratada como um ‘efeito colateral’ de um roubo, e não como violência direcionada a uma mulher em situação de vulnerabilidade”, diz.
Para Francy, a escolha também se insere em um padrão recorrente no Brasil, em que casos de mulheres pobres, negras, indígenas ou migrantes enfrentam resistência em serem reconhecidos como feminicídios. “A ausência de júri popular foi uma escolha política, com forte efeito simbólico. A ausência de júri e a classificação como latrocínio retiraram esse espaço de diálogo com a sociedade. Não sou especialista na área jurídica, mas é com os olhos de mulher negra que falo”, afirma.
Motivação foi patrimonial, diz MP-AM

Em resposta à reportagem da Amazônia Real, o MP-AM afirmou que o conjunto de provas colhidos durante a investigação demonstrou que a intenção dos réus estava voltada à subtração dos bens da vítima (celular, violão e roupas) e não à sua morte em razão de gênero. De acordo com o MP-AM, uma das rés, inclusive, foi fotografada utilizando peças de roupa da vítima, fato registrado nos autos e divulgado por portais de notícia.
“As provas indicaram que a motivação do crime foi patrimonial, sem relação com a condição de gênero da vítima, razão pela qual a tipificação adotada pelo Ministério Público e reconhecida pela Justiça foi a de latrocínio e ocultação de cadáver”, enfatizou o MP-AM.
Sobre a hipótese de o caso viesse a ser julgado pelo Tribunal do Júri, o MP-AM explicou que a pena poderia ser menor. O órgão justificou que o crime de feminicídio, previsto no artigo 121, §2º, inciso VI, do Código Penal, tem pena de 12 a 30 anos de reclusão, enquanto o latrocínio (artigo 157, §3º) prevê punição mais severa, de 20 a 40 anos.
Mas essa justificativa se baseia na redação anterior do Código Penal, antes da sanção da Lei 14.994/2024, em outubro do ano passado, que atualizou a pena para feminicídio para o intervalo de 20 a 40 anos. O feminicídio é o assassinato de mulheres em contexto de violência doméstica ou de gênero. Conforme o “Pacote Antifeminicídio”, sancionado sem vetos pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a pena para os condenados pelo crime de feminicídio passou a ser maior do que a do crime de homicídio qualificado (12 a 30 anos de reclusão). A lei também aumenta as penas para outros crimes, se cometidos em contexto de violência contra a mulher, incluindo lesão corporal e injúria, calúnia e difamação.
Falta de apoio federal

Em nota pública enviada à imprensa, a União Brasileira de Mulheres (UBM) expressou descontentamento com a sentença. A UBM, que acompanha o caso desde o início, considera que a decisão reforça uma Justiça que ainda não enxerga a violência contra a mulher sob a ótica de gênero, como determinam as leis e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a 1º Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e o Protocolo Latino-Americano para Investigação de Mortes Violentas de Mulheres (Feminicídio).
“Ao tratar o caso como um latrocínio, o tribunal reduziu a gravidade do crime a uma questão de roubo seguido de morte, apagando o contexto de violência machista e a dimensão simbólica e social do feminicídio. A condenação se apoiou quase exclusivamente em depoimentos de policiais, em um inquérito no qual diversos documentos se perderam ao longo da investigação. Esses fatores apontam para um julgamento que não observou os parâmetros de direitos humanos nem os protocolos que garantem a análise de crimes de gênero, como deveria ocorrer em casos de violência contra mulheres”, diz um trecho da nota.
O advogado Carlos Nicodemos reforçou que a decisão ignorou o Protocolo com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, ignorando os indícios e relatos de violência sexual e de gênero presentes no processo. De acordo com Nicodemos, uma representação será enviada ao CNJ para que se investigue o Juízo de Presidente Figueiredo sobre o vazamento da sentença, pois o processo corre em segredo de Justiça.
“A família segue no posicionamento de que se trata de um crime de feminicídio e que as questões centrais relacionadas a não abordagem por parte da juíza, especialmente pela falta da aplicação do protocolo da perspectiva de gênero, é gritante quando ela absolve os réus do crime de estupro assumindo uma jurisprudencia que é minoritária na Justiça do Brasil”, destacou Nicodemos.
A irmã de Julieta destacou ainda o descaso do governo federal. Dias antes da segunda audiência do caso, em dezembro do ano passado, ela publicou um vídeo nas redes sociais cobrando Lula e a primeira-dama Janja da Silva a acompanharem o caso de Julieta de maneira “mais contundente”.
“Nós nos sentimos ridicularizadas. Para minha mãe e para mim, ir a Brasília em março foi algo muito custoso, e acreditamos que seria importante. Ver que isso serviu apenas para fotos no Instagram nos causa muita indignação. Como é possível que o governo do Brasil não tenha o mínimo gesto de nos ajudar, depois que em seu país assassinaram cruelmente minha irmã, e, assim como ela, tantas outras mulheres todos os dias?”, questionou Sophía.
O Ministério das Mulheres chegou a manifestar apoio à mobilização para que o crime fosse reconhecido como feminicídio, em uma nota publicada em junho do ano passado. Segundo o comunicado, “o Ministério reconhece a preocupação dos familiares e advogados de Julieta pela ausência do devido tratamento jurídico ao caso como uma grave violação de direitos humanos das mulheres e dos migrantes e reforça a crença nas instituições brasileiras para que este caso e o de todas as mulheres que recorrem à Justiça não fiquem impunes, por suas vidas e pelo direito à memória”. O ministério declarou que iria monitorar e acompanhar o caso no âmbito jurídico e também político.
“Fica claro para nós que a vida das mulheres não importa para eles. Mesmo com o Brasil em números alarmantes de feminicídio, são incapazes de usar o caso da minha irmã como um caso emblemático para fazer valer as leis contra o feminicídio”, disse Sophía Hernández.
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