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Jornalismo para quê? - Amazônia Real

Jornalismo para quê? – Amazônia Real


De um lado, instituições públicas da república, como a justiça e o Ministério Público, impondo censura prévia ou posterior para impedir que a imprensa trate de certos temas, ou o que é pior, de certos homens públicos, entronizados na condição odiosa de entes acima de qualquer suspeita.

De outro lado, empresas jornalísticas ou mesmo jornalistas individualmente atrelado o que publicam e escrevem a interesses pessoais, de grupos de pressão, de partidos políticos ou ideológicos. Incapazes de colocar em prática o mais elementar princípio jornalístico: de que o jornalismo não briga com os fatos. Abundam versões ou especulações, diminuem os fatos e crescem as polarizações. Em plena democracia, que pressupõe a liberdade de pensamento e de expressão como a joia da coroa, o cidadão está mal informado ou deformado por histórias viciadas ou tendenciosas, inclusive – e, às vezes, principalmente – sobre a Amazônia.

Nesse contexto, decidi reproduzir parte do texto que escrevi na 1ª quinzena de setembro de 1989, quando meu Jornal Pessoal completou dois anos (chegou ao fim em dezembro de 2019).
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No início da década de 1970 havia 2.200 repórteres baseados em Washington. Apenas 14 deles acompanharam o “escândalo de Watergate”, o mais importante episódio da vida pública dos Estados Unidos nos últimos anos. Quando dois desses repórteres, Bob Woodward e Carl Bernstein, do Washington Post, começaram a rastrear o que havia por trás da invasão do hotel onde funcionava o comitê eleitoral do Partido Democrata, a opinião pública estava predisposta mais a favor do presidente Richard Nixon do que da imprensa. Mas em agosto de 1974 Nixon foi obrigado a renunciar para não ser afastado do cargo. A imprensa mostrou que ele comandava a mais nefasta das equipes governamentais que já haviam passado pela Casa Branca.

A renúncia de Nixon completou 15 anos no mês passado. A data foi praticamente ignorada pela imprensa brasileira. Mas é a ela que retorno quando o Jornal Pessoal chega a dois anos de vida. Watergate registra um dos momentos mais nobres da imprensa, ou, como evidencia a estatística de Ben Bagdkian, de um pequeno grupo de competentes jornalistas. É possível que nem mesmo a direção dos jornais nos quais eles trabalhavam acreditassem num significado mais profundo do episódio. Mas bastou aplicar um eterno princípio do jornalismo para colocar na mira de todos a mais grave crise da república americana.

O princípio é o de que a investigação jornalística, uma vez iniciada, deve ir às suas últimas conseqüências. O produto desse trabalho deve ser integralmente repassado à opinião pública, a quem cabe – diretamente ou por seus representantes, entre os quais os próprios jornalistas estão incluídos – aplicar juízos de valor aos fatos. Um jornal pode ou não fazer essas análises, trazendo para dentro de si a sociedade. Assumindo essa função, se enriquece, adquire densidade social e legitimidade. Indescartável, no entanto, é sua missão de apurar os fatos relevantes, as questões controversas, os pontos obscuros e transformar essas informações em patrimônio de todos – ou ao menos daqueles que podem ter acesso a textos escritos e a seus ecos orais.
Um jornal que agride os fatos – silenciando sobre eles, os descaracterizando ou os manipulando – condena-se à morte. Primeiro ela é moral; depois, é física. Também esta é uma regra eterna do jornalismo, que pode tardar, dependendo da eficiência da maquilagem, mas não falha.

Repórteres do jornal Sunday Times, de Londres, que escreveram um livro pouco citado sobre Watergate (mas melhor, como esforço de compreensão, do que a bem documentada série da dupla Woodward-Bernstein, presa ao estilo minudente e historicista do jornalismo americano), mostraram como a imprensa, geralmente funcionando conforme decisões muito verticalizadas, pode ser impulsionada por seus jornalistas quando eles compreendem sua função.

“A função que justifica uma imprensa livre está na sua capacidade de procurar e revelar. Por vezes ela revela assuntos que seria melhor o público desconhecer, mas, se ela cessa de ter essa função, passa a existir o risco de ela não ser mais que um instrumento de propaganda”, observam os jornalistas ingleses. A propósito da polêmica que então se travava nos EUA, completam: “A questão central do debate sobre a imprensa não estava na luta entre ‘conservadorismo’ e ‘liberalismo’, mas no conflito entre aqueles que desejam uma ‘realidade’ organizada e arrumada e aqueles que têm a capacidade de encontrar e de apresentar a tediosa complexidade do fato real”.

A “tediosa complexidade do fato real” a que os repórteres do Sunday Times se referem, com britânica ironia, é a bússola do jornalismo. Às vezes até gostaríamos que a realidade fosse mais esquemática e rígida, um pouco mais inclinada a favorecer pessoas ou grupo simpáticos a nós, ou que pelo menos não envolvesse tantas complicações, mas essa complexidade obriga um jornal a ziguezaguear, colidindo ora com a onda, ora com um banco de areia ou uma rocha.

Também pode atropelar amizades ou, inversamente, suscitar poderosas inimizades. Paciência: um jornal que enfrentar essas adversidades, próprias da complexidade do fato real, estará deixando de ser apenas um balcão mercantil de negócios, a que, infelizmente, parte da grande imprensa se reduziu, ornada das lantejoulas e balacobacos que o marketing pode lhe oferecer.

O descrédito de grande parte da população pela imprensa, como mostram diversas pesquisas de opinião, dá um tom de temeridade a essa afirmativa.

Se havia pedras no meio do caminho do grande poeta Carlos Drummond de Andrade, um simples jornalista comprometido com seu tempo há de esperar por uma monumental pedreira. Resta-lhe a segurança de suas convicções e o descortino de sua visão do mundo. Assim, irá em frente, apesar das matilhas de aluguel, despejem balas assassinas ou palavras de encomenda.

“Num país em que tanta gente passa a vida em cima do muro, sem ousar tomar atitudes, formo, com orgulho, entre aqueles que topam a briga. Mas há uma sutil diferença. Nunca vou à briga pela briga. Acho isso brega. Só polemizo para defender posições ideológicas”, escreveu o embaixador José Guilherme Merquior, num artigo para O Globo.

Não tenho a menor empatia por O Globo, cuja coerência governista é um circense desafio à pluralidade de poder, que constitui a essência do liberalismo, que o jornal julga defender (e outros só conseguem introduzir no nome, e nada mais). Mas desejo vida longa a todos os jornais para que eles tenham lampejos de positividade, como na frase de Merquior, que também não entra na minha galeria de heróis, muito pelo contrário, mas em quem reconheço as ideias próprias, pessoais, virtualmente suprimidas em nossa sociedade de massa, de cultura xerográfica.

Merquior constata, no mesmo artigo, a “triste verdade” de que “a maioria dos nossos jornalistas da atualidade, salvo raras exceções, são analfabetos culturais”. Merquior pára aí, sem detalhar, mas certamente está se referindo à acumulação de informações que não soma, não produz síntese, não gera uma visão de mundo. A cultura não é rótulo nem etiqueta: ela é um produto da criação pessoal. Mas o que pode fazer aquele que só tem o embrulho? Embrulhar a cultura alheia, claro.


A imagem que abre este artigo foi feita em Brasília, DF durante coletiva de imprensa no Palácio do Planalto.( Foto: Isac Nóbrega/PR/03/05/2021).


Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.

valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da do .

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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