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ToggleOs migrantes da Venezuela, que vivem em uma ocupação espontânea na periferia de Boa Vista, receberam o prazo até o fim deste mês para deixar o local, onde vai ser construída uma maternidade (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real).
Boa Vista (RR) – Indígenas Warao que vivem em Boa Vista, capital de Roraima, não têm o que comemorar em pleno mês dos povos indígenas no Brasil. O motivo é a ameaça de despejo, porque o governo do Estado mantém a decisão de desocupar a área onde funciona a ocupação espontânea Yakera Ine (“estou bem” em espanhol), localizada no bairro Pintolância, na zona oeste da capital. No local, vivem 100 famílias, um total de 340 pessoas. Os Warao são indígenas das regiões de áreas conhecidas como Delta Amacuro, Monagas e Sucre, na Venezuela, que migraram para o Brasil a partir de 2016, fugindo da crise econômica em seu pais.
Euligio Warao, de 40 anos, é um dos caciques [‘aidamo’, na sua língua nativa] na ocupação. Ele conta que em janeiro deste ano foram informados de que deveriam sair em 40 dias. “Precisamos de um espaço para sairmos deste lugar”, reivindica a liderança. “Se não tem, como vamos sair? Não temos para onde ir. Como migrantes e indígenas, nos sentimos abandonados, porque chegam e só dizem que tem que sair desse lugar.”
O local onde eles vivem já serviu como abrigo oficial do governo brasileiro, mas foi desativado. Muitas famílias foram levadas para outros abrigos, mas outras preferiram permanecer na ocupação para manter sua liberdade, autonomia e direito à sua cultura de modos de vida.
A Amazônia Real visitou a ocupação nos últimos dias e constatou uma estrutura precária. Parte do grupo vive dentro de um ginásio em barracos retangulares divididos com tapumes, MDF e lonas – eles reaproveitaram o redário deixado pela Operação Acolhida. Na parte externa, os barracos são semelhantes, mas há acréscimo de madeiras, pedaços de ferro e forro de PVC para formar as paredes improvisadas. Há água potável em cinco torneiras para toda a comunidade e os 13 banheiros que ainda funcionam – também deixados pela ajuda humanitária do governo federal no que antes era chamado de abrigo Pintolândia. No dia a dia, a água dos jiraus e da chuva escorrem e se acumulam pelo local e, segundo os moradores. Neste período chuvoso, invadem onde os Warao dormem por falta de drenagem no espaço.
“Quando chove bastante tudo aqui se enche [mostra o chão]. Temos que colocar as coisas na rede”, afirma Besania Josefina Hernandez, de 25 anos, mãe de três crianças (de 7, 6 e 4 anos). Ela conta que não está bom no local, mas os venezuelanos não têm para onde ir. A renda do marido não é suficiente. Ele é catador de latinhas durante o dia e limpa quintais na cidade. A família ainda vive do artesanato e recebe Bolsa Família. “A noite não dormimos bem, não estamos muito bem, mas se o governo ajudar nós aceitamos”, suplicou.

A maioria dos migrantes da ocupação Yakera Ine se sustenta com dinheiro vindo do artesanato. O local é estratégico para as vendas dos colares, brincos e pulseiras, já que é uma região comercial e próxima da Praça Germano Augusto Sampaio, local de inúmeros eventos públicos e privados. Maria Baez, de 43 anos, conta que para as artesãs é mais fácil morar na região. “Estou muito triste em sair daqui, porque daqui dou comida para meus filhos. É bom para trabalhar, somos mulheres artesãs, guerreiras, é mais fácil aqui para vender”, explica.
Em março de 2022, a ocupação em Pintolândia começou a ser desativada de forma gradual, como parte do planejamento do Ministério da Cidadania em conjunto com a Força-Tarefa da Operação Acolhida, no contexto da reorganização da resposta humanitária voltada à população indígena migrante em Roraima, foi o que divulgou o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) no Estado. Uma das justificativas era a estrutura precária e insalubre. Mas os Warao decidiram continuar no local por conta própria, resultando em uma ocupação espontânea.
Atualmente, os migrantes pedem melhorias no local e não a retirada deles. Mas se a medida for inevitável, eles querem um local seguro para ficar com suas famílias. No local do conflito está prevista a construção de uma nova maternidade estadual.
Pedido de socorro

Desolados e na expectativa de onde vão ficar, principalmente com o início do período chuvoso em Roraima, as lideranças pediram socorro ao Ministério dos Povos Indígenas e ao Ministério Público Federal (MPF). A coordenadora tesoureira da Umiab (União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira), Telma Taurepang, intercedeu na busca de uma solução. Aproveitou a vinda do representante da ministra Sônia Guajajara, o secretário nacional substituto, Uilton Tuxá, que participou do lançamento estadual do 18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS 18), como marco na luta contra as desigualdades históricas nesta quarta-feira (16), em Roraima, para pautar essa urgência dos Warao.
“Pedimos muito para nossa ministra estar aqui, mas você, parente, também nos representa, e queremos que dentro dos objetivos [da ODS 18] vejam esses parentes nesse momento. Leve o documento do nosso parente não só para o Ministério dos Povos Indígenas, mas também para o presidente Lula, porque esses indígenas precisam, de fato, serem ouvidos e terem, de fato, uma terra para morar”, argumentou Telma, no momento em que a comunidade entregava a carta pedindo socorro.
Telma, que também é diretora no Caikd (Centro de Artesanato Indígena Ko”go Damiana no Estado de Roraima), conhece bem as demandas dessa etnia venezuela, que vive em condições desumanas, afrontando um dos fundamentos básicos da Constituição Federal, que é o princípio da dignidade humana.
“Acompanho os Warao desde 2014. Essa ocupação já é desumana porque eles nunca irão ter uma casa como antes, no seu território, onde podiam plantar, colher e viver uma vida saudável. Aqui eles contraem inúmeras doenças. O índice de tuberculose é muito alto. Ontem faleceu mais um jovem naquele lugar, que está poluído. Eles não têm alimentação adequada, água potável, não têm moradia. É uma vida insustentável”, sustentou Telma.
Para a liderança, que já acompanha essa luta há anos, os governantes estão omissos, e quando tiveram a oportunidade de ajudar, humilharam. “Dentro do abrigo, quem era para proteger, não protegia, que foi o Exército. Eles falaram que apanharam. Isso me chamou muito a atenção, e no que depender de mim, vou ajudá-los. A carta também foi entregue ao Ministério Público Federal [MPF]”, enfatizou.
A animosidade provocada pela Operação Acolhida pelas regras impostas motivou os indígenas a não permanecerem no abrigo, sob a custódia dos militares. A cultura e idioma diferentes, e alegando violações aos direitos dos povos indígenas, os Warao preferiram ocupar o ginásio que estava abandonado pelo poder público. A perda do status de “abrigo oficial”, levou ao abandono dos governantes.
Lavito Bacarissa, secretário-executivo da Comissão Nacional dos ODS da Presidência da República, afirmou desconhecer a situação de despejo dos Warao. “Não conheço a situação. O importante é que as autoridades do Estado respondam de maneira humanitária, buscando, obviamente, a solução mais pacífica e melhor para a comunidade indígena que ali está habitando. É importante esse momento para tomar conhecimento da situação e institucionalmente trazer uma resposta”, afirmou.
O lançamento oficial do 18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS 18) – Povos Indígenas, foi sediado pela Assembleia Legislativa de Roraima (ALE-RR), que abraçou a causa, e na ocasião, o presidente da Casa, deputado Soldado Sampaio (Republicanos), ressaltou que os povos indígenas fazem parte da sociedade.
“São os verdadeiros donos dessas terras, ocupadas por eles há milhares de anos. Essa Casa tem respeito, admiração e carinho às lutas diárias dos povos indígenas, que são atuais. Precisamos envolver a bancada federal e chamar a atenção do governo federal, que muito prometeu, mas pouco entregou no decorrer das últimas décadas. E o pouco que entregou foi resultado da luta dos povos indígenas”, disse.
100 famílias resistem ao despejo

A ordem de despejo foi dada no dia 11 de fevereiro. O cacique Euligio reforça que para sair do local é necessário que outro espaço seja garantido para as 100 famílias que vivem no local. “Não temos para onde ir, no total somos 340 pessoas”, suplicou. Eles vivem na informalidade, com vendas de artesanato e na reciclagem de lixo. Desde 2021 estão sem apoio do poder público.
“Moro aqui há mais de sete anos, desde quando era abrigo, e essa informação é muito forte para nós, pois não sabemos para onde ir. Estamos desesperados porque já não comemos bem e ainda ficamos desabrigados. Estamos aguardando uma resposta do governo”, disse a cacica Besania, que é encarregada de dez famílias. Ela tem três filhos, além dos demais parentes.
Silvino Jimenez contou que a situação no local já é difícil por conta das condições precárias do ambiente em que eles vivem, mas que a ordem de despejo piorou o que já era ruim. “Queremos este espaço porque aqui formamos comunidade. O que buscamos agora é a melhora do ambiente. Além disso, nossos filhos estudam nas escolas próximas do abrigo”, afirmou.
“Estamos há três anos na resistência. No tempo de chuva, muita goteira, mesmo assim não queremos sair daqui, só se for para um lugar melhor. Fomos muito maltratados física e verbalmente pela Operação Acolhida. Nós perdemos crianças, homens e mulheres, então esse espaço é muito importante para nós”, disse Silvino.
Durante os quase cinco anos em que o local foi mantido como abrigo oficial (2018-2022), Jimenez contou que viu os militares descontrolados. “A cultura, por exemplo, não vale para eles. Tomam decisões sem levar em conta a opinião do nosso cacique, nosso líder. Essa é uma violação de nosso direito porque o cacique, sua máxima autoridade, tem que opinar e decidir também”, argumentou. Segundo ele, um de seus amigos, também cacique, levou uma coronhada na cabeça e adoeceu. “Ele ficou doente, foi para o hospital e morreu. Disseram que ele morreu de malária, mas ele estava bem”, relembrou.
“Solução passa por vários atores”

A secretária de Bem-Estar Social do governo de Roraima, Tânia Soares de Souza, afirmou que existe um grupo de trabalho formado por várias instituições buscando a melhor solução para todas as partes envolvidas. Mas de antemão afirmou que a solução está sendo estudada. Lembrou também que é não é a primeira vez que se tenta retirar os Warao do local.
“Eles precisam estar num determinado local. A solução está sendo buscada de forma realmente coletiva. A solução passa por vários atores”, afirmou a secretária. Ressaltou que no passado já houve um momento de desocupação daquele espaço, quando as pessoas que lá estavam, foram realocadas para os abrigos da Operação Acolhida.
“O grupo que ficou tomou a decisão de não ir. Naquele local será a maternidade da zona oeste. Temos os recursos, tanto federais quanto estaduais, alocados,e no convênio está destinado aquele endereço”, explicou Tânia Soares. Disse que o governo está acompanhando todas as ocupações espontâneas e que conhece o perfil de cada morador. “Todos acessam o Bolsa Família, o BPC, Cesta da Família, as crianças estão nas escolas e que existe atendimento de saúde de forma esporádica”, disse.
O procurador da República em Roraima, Alissom Marugal, respondeu à reportagem informando que o órgão tem “atuado no sentido de mediar o diálogo do Estado com os indígenas, de modo a garantir o direito de consulta livre, prévia, informada e de boa-fé. No momento, as tratativas ocorrem para buscar uma solução de moradia fora dos abrigos da Operação Acolhida, conforme desejam os próprios Warao. Marugal completou que o momento é “uma excelente oportunidade para discutir soluções definitivas para a migração indígena em Roraima, indo além da solução emergencial do abrigamento oferecido pelo governo federal”.A reportagem da Amazônia Real questionou o histórico de violência e racismo dos militares da Operação Acolhida, o que amedronta os indígenas Warao aceitarem ir para os abrigos administrados por eles, mas ainda não teve retorno do Exército brasileiro.
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