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Indígenas não abrem mão de um ministério

Indígenas não abrem mão de um ministério
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O Grupo Técnico (GT) de Povos Originários já levantou 11 itens que servirão como “alertas” para o futuro governo de Lula, e todos eles giram em torno da necessidade de se criar uma pasta ministerial inédita na História do País. Na imagem acima, o presidente Lula recebe demandas de lideranças indígenas, durante o ATL 22, ocorrido em abril de 2022, em Brasília-DF (Foto: Reprodução/Mídia NINJA)


Brasília (DF) – Fazer alertas ao futuro governo Lula. Os povos indígenas, que ouviram ser esse um dos principais objetivos dos Grupos Técnicos (GT) do governo de transição, não perderam tempo e já destacaram 11 itens para Luiz Inácio Lula da Silva, que em 1º de janeiro de 2023 assume pela terceira vez a Presidência da República. O foco gira em torno da criação do Ministério dos Povos Originários. Ou Ministério dos Povos Indígenas (MPI), denominação preferida pela maioria dos presentes nas discussões desse GT. No balão de ensaios e especulações que é comum na formação de um novo governo, Lula já aventou a possibilidade de a própria pasta virar uma secretaria, o que seria a primeira quebra de uma promessa sua de campanha. Em abril deste ano, durante o Acampamento Terra Livre, ele garantiu aos indígenas que criaria esse ministério.

A necessidade das demarcações de territórios tradicionais, que sempre foi a principal urgência dos povos indígenas, é o primeiro dos 11 alertas. Sem a garantia das terras, os indígenas sequer podem pensar na sua sobrevivência física e cultural. Nos quatro últimos anos, Jair Bolsonaro fez questão de não demarcar terras indígenas, abandonando os povos originários a todo tipo de ameaça. E isso se conecta ao segundo alerta: a proteção dos povos isolados e de recente contato, que sofrem graves violações nas florestas, atacados e mortos até mesmo sem que essas informações sejam conhecidas. O terceiro é a criação de programas permanentes para a defesa não apenas de indígenas, mas também de não-indígenas defensores das questões ambientais e de direitos humanos.

A deputada federal eleita Juliana Cardoso (PT-SP), indígena do povo Terena que integra o GT de Povos Originários, afirma que essas urgências gritam alto. “Os indígenas são brutalmente atacados por garimpos. Há uma imensa violência a mulheres e meninas, que sofrem constantes estupros, principalmente as Yanomami. Os povos isolados e de recente contato são cada vez mais ameaçados. Houve desestruturação do Estado, de tudo o que se tinha para a proteção das florestas e das pessoas”, relata. 

O quarto alerta discutido pelo GT de Povos Originários é a saúde indígena, cuja secretaria especial (Sesai) foi sucateada e aparelhada pelo governo Bolsonaro. Os povos originários defendem uma melhor integração com os estados e a organização de um novo desenho para o sistema. A questão da segurança em relação à exploração ilegal de recursos naturais, como garimpo e madeira, é um quinto item. Também em relação à segurança se criou um sexto alerta, com atenção especial para as regiões fronteiriças, como a do Vale do Javari, onde o crime organizado na tríplice fronteira foi local do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phiilips, mortos em uma emboscada de ribeirinhos locais em junho.

Nas conversas debatidas no GT, foi levada a experiência da  Equipe de Vigilância da Univaja (EVU), criada em 2021 e organizada pelos próprios indígenas para investigações a respeito dos movimentos das quadrilhas e realização de operações de fiscalização no território do Vale do Javari. Graças a integrantes da EVU, que estiveram acompanhando Bruno e Dom até os seus minutos finais, a polícia conseguiu prender os prováveis assassinos.

Educação indígena

O professor Raimundo Kambeba na sala de aula da Escola Kanata T-Ykua (Foto: Reprodução Facebook)

O sétimo alerta é sobre a necessidade de atenção à educação pelo futuro ministério, sem o risco de se sobrepor às funções da pasta da Educação. O MEC já investe na educação escolar específica para os povos indígenas, mas para os integrantes do GT é preciso um olhar mais próximo das demandas de cada povo. 

“Indígenas em contexto urbano são tidos como não-aldeados, o que significa não ter nenhum direito”, afirma a Guarani Kaiowá, Luciane Gallo, que também participou dos debates online. Em sala de aula na zona urbana de Naviraí (MS), onde é coordenadora da Educação Indígena Municipal, ela se deparou em um dos momentos de descoberta da invisibilidade e a exclusão que afetam crianças de seu povo. “Eles não se comunicavam, pois só falam Guarani em casa. Eram apenas corpos presentes na escola. Eu vi que se cometia ali um crime pedagógico”. O próprio cargo que ocupa hoje é resultado da luta que começou naquele dia, em 2017.

A violação dos direitos humanos e impactos derivados de grandes empreendimentos é o oitavo alerta. Foi o caso da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, que os movimentos indígena e ambientalista conseguiram postergar nos anos 1980 e 1990, mas se tornou real durante o governo de Dilma Rousseff (PT). Embora seus principais opositores ou pelo menos os mais visíveis, os Kayapó, tenham apoiado a eleição de Lula, esse é um grande alerta. No terceiro mandato de Lula, eles já avisaram que não vão admitir ou farão muito barulho se houver ameaças de prejuízos como os sofridos por grandes obras.

No nono alerta estão questões relacionadas à melhoria de informações dos censos populacionais. Esse item envolve, por exemplo, a questão dos indígenas aldeados e não-aldeados, com diferenças de tratamento recebidos por eles, como ocorreu durante a pandemia de Covid-19.

“Crianças Xavante até hoje não receberam a primeira dose da vacina. Acredito que apenas foram vacinadas aquelas que estiveram com os pais nas cidades. E muitos medicamentos, antes disponíveis no posto de saúde que atende as aldeias, hoje não têm mais”, denunciou Isabel Bakairi a respeito da vulnerabilidade de meninos e meninas de 6 a 12 anos da população do maior povo indígena de Mato Grosso. Isabel participou de uma das escutas promovidas pela deputada eleita Juliana Cardoso.

A destruição das florestas não tem apenas reflexos no clima. Como afirma Isabel Bakairi, as crianças Xavante sofrem de desnutrição grave por causa da devastação do ambiente natural. Ela é diretora da Escola Estadual Indígena Adão Toptiro, na Terra Indígena Sangradouro, em Mato Grosso, onde mora com os Xavante, por vínculo de casamento.

São 15 mil pessoas segundo a Fundação Nacional de Saúde, mas a educadora acredita que sejam pelo menos 20 mil. Nesta população, ela não sabe quantas crianças e adolescentes estão vulneráveis à Covid-19, mas sabe que em sua escola nenhum dos cerca de 70 alunos entre 6 e 12 anos foi imunizado. “Um ou outro pode estar vacinado, como o meu filho que recebeu a única dose em Cuiabá porque levei”. A TI se localiza próxima à BR-070, a 270 quilômetros da capital.

Militarização da Funai

Desmatamento e queimadas registradas na Terra Indígena Karipuna, região do Rio Formoso, no município de Nova Mamoré, Rondônia (Foto: Christian Braga/Greenpeace/2022)

O décimo alerta é o enfrentamento às deficiências da atual Funai, cujos servidores não contam com planos de carreira e os concursos realizados não puderam preencher as faltas de recursos humanos. Juliana Cardoso cita que um dos principais prejuízos causados pela administração Bolsonaro foi a militarização da Funai.

Práticas de Bolsonaro já foram denunciadas como genocidas, inclusive em instituições como o Congresso e o Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia (Holanda). Em junho, um dossiê da entidade dos servidores da Funai Indigenistas Associados (INA) e do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), de 172 páginas, mostrou o desmanche e a militarização do comando da Funai com o propósito de favorecer ações de garimpeiros, madeireiros, ruralistas, caçadores, pescadores e até mesmo narcotraficantes.

O décimo primeiro e último alerta é a revogação imediata de inúmeras normativas e decretos apresentados por Bolsonaro, além do enfrentamento às propostas legislativas anti-indígenas que tramitam no Congresso. No chamado “revogaço”, que outros GTs do governo de transição também já apontaram como crucial, são citados projetos de lei (PLs) como o 490. Aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, esse PL pretende inviabilizar demarcações e abrir territórios tradicionais a empreendimentos como garimpos, estradas e grandes hidrelétricas. Também se refere aos PLs 191 (abertura à mineração), 2633 (grilagem) e 2159 (da Boiada), que anistia invasores de terras públicas e afrouxa o licenciamento ambiental, respectivamente. A tramitação desses projetos só foi possível por se tratar de uma bandeira de Bolsonaro e da bancada ruralista.

“Quatro anos de boca fechada”

Garimpo ilegal na região do Homoxi, na Terra Indigena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real/2022)

“A expectativa é enorme e se reflete na participação deste momento”, observa a deputada eleita Juliana Cardoso (PT). “As pessoas ficaram quatro anos de boca fechada, com medo de se pronunciar, e estão sedentas para falar.”

Juliana entende que a projeção do governo Lula não é apenas de uma administração que se abre para a participação no Brasil, mas também que cria novas perspectivas internacionais. “É um momento histórico. O mundo está nos olhando para ajudar na discussão climática.” 

Oficialmente, são 33 GTs com 939 participantes, segundo lista divulgada pela equipe de transição de governo na segunda-feira (5), que têm a tarefa de entregar relatório final com informações sobre a realidade nacional e propostas de iniciativas a serem tomadas pelo presidente eleito Lula, especialmente em seus primeiros 100 dias de governo. Mas sabe-se que o universo de colaboradores é muito maior. 

Com crescimento de 60% do desmatamento da Amazônia durante a administração de Bolsonaro, somada ao prestígio do Brasil na conquista do Acordo de Paris sobre Mudança do Clima em 2015, Lula iniciou o mandato de 2023 antes da diplomação e posse, marcado por discurso na Conferência do Clima no Egito (COP27), em 16 de novembro, em defesa da conservação da Amazônia e criminalização dos garimpos ilegais e de outras atividades criminosas.

No GT de Povos Originários, a parlamentar eleita promoveu escutas com cerca de 250 representantes indígenas e não-indígenas. Juliana Cardoso se encarregou de agregar ao debate lideranças que não fazem parte das grandes organizações indígenas e que, assim, puderam se somar aos esforços da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que hoje é a principal força do movimento. Foram criados pela deputada federal eleita também subgrupos que trataram de temas como indígenas que vivem em contextos urbanos, educação, mulheres e saúde.

Em 2018, Luciane Gallo, que também participou de debates online com o GT, foi à prefeitura reivindicar direitos de seu povo, os Guarani Kaiowá, a moradores de áreas urbanas de Naviraí, e foi questionada se poderia provar a etnia. Blefou (disse que sim, mas não tinha como provar). A partir daí passou a ir de casa em casa, anotando nomes, idades, situação. Encontrou 266 famílias, 98% falantes da língua materna, pagando aluguel e enfrentando despejos. Esse censo feito em colaboração entre os indígenas promoveu autoestima e autoridade para sentar na mesa de negociação com o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) de Mato Grosso do Sul. Eles também conquistaram territórios tradicionais retomados, o maior deles a aldeia urbana da avenida Tarumã, em pleno centro da cidade, onde vivem 40 famílias, plantando mandioca e vivendo de acordo com a própria cultura.

Informações como essas que circularam nos debates online promovidos pela deputada eleita devem ser integrados como resumos anexos ao relatório principal a ser entregue no domingo à equipe de Lula, que será diplomado presidente no dia seguinte, segunda-feira (12), às 14 horas, no plenário do Tribunal Superior Eleitoral.

Secretaria da Juventude

Mobilização indígena contra o marco temporal, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em julho de 2021 (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Uma Secretaria da Juventude foi uma das propostas levantadas para o novo ministério, cujo debate não está apenas nas plataformas de reuniões, mas no WhatsApp, como conta Júnior Manchineri, da aldeia Extrema, TI Mamoadate (AC). Ele é acadêmico em ciências sociais na Universidade Federal do Acre e articulador político da Manxinerune Tsihi Pukte Hajene (Matpha), uma pequena organização que funciona em Rio Branco e tem projetos de hortas para garantia de alimentação de indígenas que vivem em Rio Branco. O principal foco dele no governo de transição são sobretudo os assuntos universitários. “Desde o golpe de 2016, temos déficit de bolsas de permanência. Esse é o tema mais citado em nossas conversas”.

Júnior Manchineri afirma que a evasão é grave, mas o pior é a brecha que deixa pra prostituição e ingresso em facções criminosas. “Antes das eleições, nosso coletivo na Ufac estava preparado para ir ao reitor fazer um levantamento sobre bolsas e evasões. Ainda não temos números, mas percebemos que é grande, porque os alunos não têm como se manter na cidade.” A falta de oportunidades coloca mulheres jovens que optam pelo trabalho de diaristas domésticas em situações de reféns da má-fé de assediadores dos mercados do sexo, assim como expõe homens. “As organizações criminosas já estão nas aldeias. Os índices são gigantes.”

O líder Manchineri afirma que esse tipo de debate vem envolvendo 50 jovens de todo o País. “Não representa de fato o Brasil, mas é um meio de se pensar a partir das bases. Gostaríamos de ter uma Secretaria da Juventude que pudesse pensar uma universidade indígena ou mais vestibulares, que são paliativos, mas são importantes”. Segundo ele, os vestibulares especialmente de cursos elitizados como engenharia e medicina ficam restritos a poucas universidades, dificultando o acesso. “Essas propostas também necessitam ser discutidas em GT do MEC.

Refundação da Funai

Manifestação em Manaus, após a confirmação dos homicídios de Bruno Pereira e Dom Phillips. Na foto, a indígena Vanda Witoto (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/2022)

A Apib e os representantes das mais fortes organizações indígenas mantiveram foco nas discussões a respeito da estrutura do ministério a ser criado pelo presidente. Essa também é uma das obrigações dos GTs. Um dos pontos fundamentais que ocuparam os debates que vazam muito pouco para a imprensa foi a disputa pelo nome do futuro ministro. Duas lideranças continuam se sobressaindo: a deputada federal Joênia Wapichana (Rede/RR), que não foi reeleita e advoga desde os anos 1980, e também a deputada federal Sônia Guajajara (Psol/SP), ex-coordenadora da Apib, ou alguém indicado por ela, dada a importância de que se mantenha no trabalho parlamentar, diante tantas ameaças legislativas.

A Apib também criou subgrupos e realizou conversas online. Uma delas, no dia 5 de dezembro, com servidores. Esteve presente o coordenador da INA, Fernando Fedola. Ele considera a criação do novo ministério uma oportunidade histórica, que não deve ter recuo, pois garante status político à questão indígena, importante para as grandes decisões.

Fernando Fedola chamou a atenção para a necessidade de reformulação da Funai. Não apenas com a realização de concurso, mas também com plano de carreira, gratificações como periculosidade e trabalho nas fronteiras e de salários compatíveis com os servidores de outros ministérios em áreas semelhantes como o do Meio Ambiente. Ele afirma que mesmo com a realização de concursos e sem recompensas de carreira e condições de trabalho, o órgão indigenista acaba sempre se esvaziando, pois os profissionais aprovados em pouco tempo acabam migrando para outras carreiras. “Somente fica quem se identifica muito com a causa.”

O debate das demarcações

Autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, do povo Munduruku, na região do médio Tapajós (Foto: Rogério Assis/Greenpeace/2016)

Nas sessões que debateram a Funai foi questionada a sua transferência do Ministério da Justiça para o futuro ministério. Uma das dúvidas foi que isso serviria de argumento para ruralistas de que as demarcações estariam totalmente nas mãos dos indígenas, prejudicando os contraditórios. Um dos especialistas no assunto, membro do GT, e que prefere não se identificar, descarta essa possibilidade. “Os inimigos dos indígenas não precisam de argumentos para judicializar e tentar inviabilizar demarcações. Eles já fazem isso”, diz. 

Ele justifica que as análises são feitas pela Consultoria Jurídica (Conjur) do Ministério da Justiça, consultoria presente em todos os ministérios, inclusive no futuro ministério. Ou seja, não faz diferença se a Funai deve ficar no Ministério da Justiça ou na nova pasta. “Os advogados da Conjur são de carreira da Advocacia Geral da União (AGU), lotados nos ministérios. São eles que analisam os processos e inclusive pedem diligências se necessárias para esclarecimentos. Não são membros da Funai ou indigenistas que fazem isso. É um argumento falso. E se a maioria dos processos é aprovada é porque a Funai tem expertise, conhecimento técnico consolidado para propor processos demarcatórios”, ressalta essa fonte ouvida pela Amazônia Real.


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