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Indígenas enfrentam ofensiva pelo marco temporal no Senado e no STF

Indígenas enfrentam ofensiva pelo marco temporal no Senado e no STF

Manaus (AM) – Em menos de dois dias, os povos indígenas do Brasil sofreram um ataque duplo e coordenado de dois Poderes da República, mas a resistência e a mobilização se mantêm inabaláveis. Enquanto cerca de 200 lideranças de diferentes povos ocupam Brasília (DF), as decisões no Senado e no Supremo Tribunal Federal (STF) recolocam o “marco temporal” no centro de uma disputa que ameaça os direitos originários garantidos pela Constituição Federal de 1988.

Na terça-feira (9), o Senado aprovou, em dois turnos, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023, conhecida entre organizações indígenas como “PEC da Morte”. A proposta recebeu 54 votos a favor e 14 contra no primeiro turno, e 52 a 15 no segundo. O texto segue agora para análise da Câmara dos Deputados.

A PEC da Morte apresentada pelo senador Dr. Hiran Gonçalves (PP-RR), pretende inserir na Constituição o marco temporal para demarcação de terras indígenas. Essa tese  exige que os povos originários comprovem a ocupação permanente dos seus territórios em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Essa exigência ignora expulsões, deslocamentos forçados e violências históricas sofridas pelas comunidades indígenas, muitos destes episódios impulsionados pela ditadura militar (1964-1988) no Brasil.

A votação foi acelerada após o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), retirar a matéria da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), com aval favorável do senador Esperidião Amin (PP-SC), e levá-la diretamente ao plenário. 

Para a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a proposta é uma agressão jurídica que se soma  a uma série de ataques legislativos contra os povos indígenas. A Coiab alerta que, se aprovada integralmente, a PEC pode impulsionar o avanço de invasores, ampliar conflitos, legítima massacres anunciados e ameaçar o direito à consulta prévia, livre e informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

No STF, o julgamento em aberto

Sessão plenária do STF, em 10/12/2025 – Julgamento do conjunto de quatro ações que discutem a constitucionalidade da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023) para a demarcação de terras indígenas (Foto: Antonio Augusto/STF).

Paralelamente, nesta quarta-feira (10), o STF deu continuidade ao julgamento de quatro (ADIs 7582, 7583 e 7586 e ADC 87) que questionam a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, conhecida como Lei do Marco Temporal. O julgamento estava previsto para ocorrer no plenário virtual no dia 5 de dezembro, mas foi transferido para o plenário físico após a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolar uma manifestação exigindo que o julgamento fosse presencial.

Na sessão desta quarta-feira foram realizadas sustentações orais e a leitura do relatório da lei, com manifestação de 24 amici curiae. O ministro do STF Edson Fachin informou que as sustentações orais do caso serão estendidas até quinta-feira (11). A sessão foi suspensa, e o julgamento deve ser retomado de forma presencial para a conclusão das manifestações das partes. A sessão de votação dos ministros ainda não tem data definida para terminar. 

A Apib foi representada no julgamento pelo coordenador executivo Dinamam Tuxá, pelo advogado Ricardo Terena e pela advogada Maíra de Oliveira, indígena do povo Pankararu, do estado de Pernambuco. 

Os relatos de violência na tribuna

Ricardo Terena Advogado da APIB na Sessão plenária do STF, em 10/12/2025 – Julgamento do conjunto de quatro ações que discutem a constitucionalidade da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023) para a demarcação de terras indígenas (Foto: Antonio Augusto/STF).

Em sua sustentação, Ricardo Terena ressaltou que o período de vigência da lei do marco temporal foi marcado por assassinatos de lideranças indígenas cometidos por milícias armadas, incluindo o assassinato da Pajé Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe. Nega foi assassinada em janeiro de 2024, na Terra Indígena Caramuru-Paraguassu, na Bahia. Outro assassinato cometido durante esse período foi o do jovem Neri Guarani Kaiowá, alvejado a tiros em setembro de 2024, na Terra Indígena Nhanderu Marangatu, no Mato Grosso do Sul.

“Cada um desses cocares que aqui se encontram, representam uma história de 525 anos de resistência e de lutas territoriais. Para nós, povos indígenas, território não é bem, não é mercadoria e nem simples título de propriedade. É a nossa condição de existência física, cultural, espiritual e identitária”, manifestou o advogado.

Auzerina Macuxi, advogada e liderança do povo Macuxi, representou a Coiab, apresentando casos concretos de violações como a situação da TI Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. Ela lembrou que, embora a ADPF 709 do STF tenha determinado a realização de operações de desintrusão, fiscalização e proteção territorial para combater o garimpo, a extração ilegal de madeira e outras atividades criminosas no território, essas ações não foram efetivamente executadas.

A liderança Macuxi relatou uma série de violências nos territórios, incluindo  estupros e incêndios criminosos. Segundo a advogada, as violações são discursivas, simbólicas e estruturantes. “Os povos indígenas, pasmem, vivem em uma terra demarcada e homologada, e até então os invasores ali se encontram. Isso é uma grande violência. Os tratores passam por cima das nossas casas, das nossas malocas, crianças vêm sendo estupradas dentro das terras indígenas”, afirmou a advogada.

O confronto de Poderes

Dinamam Tuxá, advogado na Sessão plenária do STF, em 10/12/2025 – Julgamento do conjunto de quatro ações que discutem a constitucionalidade da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023) para a demarcação de terras indígenas (Foto: Antonio Augusto/STF).

A aprovação da PEC da Morte e a retomada do julgamento da Lei 14.701 confrontam a decisão do próprio STF no Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que em setembro de 2023 definiu a inconstitucionalidade da tese do marco temporal. Logo depois, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou parcialmente o projeto de lei do Congresso, mas os parlamentares derrubaram os vetos em dezembro daquele ano. A ação foi orquestrada por um lobby político do agronegócio e da mineração aliado a partidos de direita como Partido Liberal (PL), Partido Progressistas (PP) e o Republicanos, que protocolaram no STF as ações para manter a validade do projeto de lei que reconhecia a tese do marco temporal.

A decisão do Congresso revoltou o movimento indígena, que prometeu resistir. O advogado Dinamam Tuxá,  coordenador executivo e assessor jurídico da Apib, declarou que a mobilização das lideranças indígenas quer a derrubada da PEC. “Estamos aqui para que possamos acompanhar de perto mais essa afronta ao texto constitucional, As lideranças estão articulando para que a gente consiga derrubar essa PEC, que afronta o direito constitucional dos povos indígenas”, disse à Amazônia Real.

A Coiab esteve em agenda no STF com a juíza Tricia Navarro, auxiliar do gabinete do ministro Gilmar Mendes. A visita ocorreu na terça-feira (9). A entidade também se reuniu com a equipe da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, chefiada pela ministra Gleisi Hoffmann. “A Apib permanece vigilante, mobilizada e firme na defesa dos nossos territórios e da Constituição. Não recuaremos”, manifestou a organização.

A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, reagiu ao retrocesso da aprovação da PEC da Morte no Senado. Segundo ela, a decisão contraria a inconstitucionalidade já dada pelo STF. “Acaba colocando em risco os territórios indígenas ao estabelecer o ano de 1988 como uma referência para a demarcação. Muitos indígenas, seja por doença ou expulsão, não podem comprovar essa presença nesta área exatamente no dia 8 de outubro de 1988, mas tem um histórico de ocupação tradicional e o reconhecimento acaba ficando prejudicado diante de um passivo que já existe no Brasil de não regularizar territórios”, afirmou.

Retrocesso de direitos

Alcebias Sapará, vice-coordenador da Coiab (Foto: APIB).

Para a Coiab, a aprovação da PEC da Morte e a retomada do julgamento no STF evidencia a disputa política entre Poderes. “Não aceitaremos que as vidas e direitos indígenas sejam usados como moeda de troca ou munição em guerras institucionais. Quem perde com essa irresponsabilidade não são apenas os povos indígenas, é o Brasil, sua floresta e seu futuro”, manifestou a organização.

A liderança do povo Sapará de Roraima, Alcebias Sapará, vice-coordenador da Coiab, afirmou que a organização está se preparando para fazer novas incidências jurídicas contra o marco temporal tanto na Câmara quanto no STF.  “Isso é uma afronta aos direitos dos povos indígenas. Os povos indígenas, de maneira alguma, foram consultados e o senador, junto aos demais, age de forma truculenta, passando por cima de todos os direitos dos povos indígenas já conquistados perante a Carta Magna do Brasil”, disse.

De acordo com Alcebias, o movimento indígena segue mobilizado em suas bases, dentro dos territórios, enquanto em Brasília as lideranças atuam em diferentes frentes, fortalecendo a resistência e dialogando com os poderes Legislativo e Judiciário.

A principal entidade de representação dos indígenas no Brasil continua mobilizada para reivindicar que os ministros do STF mantenham a inconstitucionalidade integral do marco temporal, suspendam os efeitos da lei até a formalização dos julgamentos do mérito e garantam a ampla participação indígena do início ao fim do julgamento. 

Mobilização em Roraima e no STF

Indígenas acompanham do lado de fora a Sessão plenária do STF, em 10/12/2025 julgamento do conjunto de quatro ações que discutem a constitucionalidade da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023) para a demarcação de terras indígenas (Foto: Victor Piemonte/STF).

A delegação do Conselho Indígena de Roraima (CIR) levou à Brasília lideranças indígenas das regiões Serras, Murupu, Tabaio e Serra da Lua. Juntas ao Tuxaua Amarildo Macuxi e o assessor jurídico do CIR, Junior Nicacio, elas acompanham a retomada do julgamento do marco temporal e a votação da PEC da Morte. Durante a sessão no Senado, o CIR denunciou que uma comitiva de lideranças foi impedida de acessar o plenário para acompanhar a votação.

A delegação entregou, na terça (9), uma carta ao gabinete do senador Hiran Gonçalves, autor da PEC da Morte. No documento, as lideranças reafirmam que a proposta “abre um caminho destrutivo para os territórios indígenas ao tentar legitimar a tese inconstitucional do marco temporal”. Elas denunciam que se trata de um ataque direto à vida dos povos indígenas, ao impor limites que negam sua presença milenar e restringem seus direitos a uma data determinada pelo Estado, como se os povos indígenas não existissem antes de 1988. 

Em Roraima, o movimento indígena está mobilizado desde a manhã de quarta-feira. Em diferentes regiões do estado, eles se manifestam em resposta ao julgamento do marco temporal. Um dos principais pontos de concentração está próximo à comunidade indígena Sabiá, na região de São Marcos. Outras áreas mobilizadas incluem o Baixo Cotingo, na comunidade São Francisco, Serra da Lua, na comunidade Tabalascada, e a região Amajari, na comunidade Mangueira. Em todas as regiões, lideranças comunitárias organizam atos, assembleias e rituais de fortalecimento cultural.

Com cantos e danças tradicionais, enviaram energias positivas ao assessor jurídico Junior Nicacio, que defendeu os direitos indígenas durante o julgamento no STF. Segundo o CIR, a mobilização segue até a próxima sexta-feira (12), mas caso haja qualquer mudança no cronograma, o movimento indígena permanecerá por tempo indeterminado. 

Rompendo o entendimento do Supremo

Senador Esperidião Amin (Progressistas-SC) na Sessão plenária do Senado Federal que aprovou o o PL do marco temporal (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado).

Em contrapartida, organizações como a Apib e os partidos políticos PT, PDT, PV e PCdoB ingressaram com Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs). Todas essas ações ficaram sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. A Apib é autora da ADI 7582 que foi analisada pelo STF.

Para as organizações indígenas, a lei impõe restrições à correção de perímetros de terras indígenas demarcados de forma incorreta e amplia a indenização a invasores. As lideranças cobram que STF respeite o que foi decidido no Tema 1031, assegure ampla presença indígena na sessão, declare a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, restabeleça por completo o rito constitucional de demarcação previsto no artigo 231 da Constituição e reafirme a proteção das terras indígenas como fundamento essencial para a vida, a cultura e o equilíbrio climático do país.

Em nota de repúdio publicada nesta quarta-feira (10), a Apib se manifestou de forma contrária “às violências do Congresso Nacional, às ações anti-indígenas, contra a democracia, contra os representantes do povo”. Segundo a entidade, que define o Congresso como “inimigo do povo”, o texto substitutivo da PEC da Morte, apresentado pelo senador Esperidião Amin (PP-SC), promove uma reestruturação profunda do regime constitucional das terras indígenas, institucionalizando a negação de direitos indígenas.

“Nós, povos indígenas, declaramos mais uma vez nossa confiança no Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, que já reconheceu os direitos indígenas como cláusulas pétreas”, afirmou a Apib.


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