Em uma carta enviada à reportagem da Amazônia Real, os Marubo e Mayuruna afirmam que Adelson da Silva Saldanha, conhecido como Kora Kanamari (de blusa preta na foto acima), coordenador do Dsei, usa a estrutura do órgão público na campanha de Deizimar Freitas Rodrigues (PSD) e Heródoto Jean dos Santos (MDB) – conhecido como Tôta (de óculos), candidatos a prefeito e a vice prefeito, respectivamente, de Atalaia do Norte, no Amazonas (Imagem: Reprodução de redes sociais).
Manaus (AM) – Em meio a seca dos rios e a crise humanitária no Amazonas, os indígenas Marubo e Mayuruna, da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, em Atalaia do Norte, oeste do Amazonas, denunciam por suposto crime eleitoral Adelson da Silva Saldanha, conhecido como Kora Kanamari, que é coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Vale do Javari, órgão subordinado ao Ministério da Saúde.
Em uma carta enviada à agência Amazônia Real, 11 lideranças, entre elas o cacique Valdir Marubo e o professor Renato Mariano Marubo, ambos da comunidade Paraná, banhada pelo rio Ituí, denunciam que “o coordenador Kora está na campanha política do candidato Deizimar”.
Eles acusam Kora Kanamari de usar a estrutura pública do distrito sanitário na campanha política de Deizimar Freitas, o que é uma irregularidade no pleito, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Agora está usando o Dsei como curral eleitoral”. As eleições municipais acontecem no próximo dia 6 de outubro.
Deizimar Freitas Rodrigues (PSD) é candidato a prefeito de Atalaia do Norte e tem como vice Heródoto Jean dos Santos (MDB) – conhecido como Tôta. Ambos são servidores públicos, Deizimar foi vice-prefeito de Atalaia do Norte, de 2016 a 2020, e Santos foi chefe do Dsei e candidato derrotado à prefeitura, em 2016.
Kora Kanamari foi nomeado em abril de 2023 ao cargo de coordenador do Dsei pela ministra da Saúde, Nísia Trindade. Ele é ex-vereador de Atalaia do Norte de 2017 a 2020, pelo PT. Como presidente da Câmara, recebeu uma multa de R$ 243 mil, em 2020, do Tribunal de Contas do Amazonas (TCE-AM), por irregularidades na prestação de contas de 2017.
A Amazônia Real procurou por telefone o coordenador do Dsei, Kora Kanamari, e os candidatos Deizimar Freitas e Heródoto Santos, mas eles não atenderam as ligações e as mensagens de texto enviadas com perguntas sobre as denúncias até o fechamento desta reportagem.
Na carta-denúncia, os Marubo e Mayuruna dizem que a campanha eleitoral de Deizimar começou nas aldeias do rio Jaquirana, no Vale do Javari, no mês de agosto, com autorização de Kora Kanamari. “O coordenador Kora não está olhando para o trabalho dele. Está circulando nas comunidades Mayuruna do rio Jaquirana pedindo votos para o candidato. Por isso não gostamos da atitude do coordenador. Exigimos a exoneração do coordenador Kora o mais rápido possível do Dsei. Se ele continuar, vai acabar prejudicando nós”, diz o documento.
Segundo os indígenas, o candidato Deizimar Freitas faz campanha eleitoral, sem autorização, em pelo menos cinco aldeias do povo Matsés na TI Vale do Javari, sendo elas: Aldeia 31, Cruzeirinho, Lobo, Soles e São Meireles.
As lideranças dizem que, com o uso público do Dsei Vale do Javari, falta de gasolina para o transporte dos agentes de saúde, “o que piorou a logística dos atendimentos às populações na terra indígena”. “Não tem medicamento básico como dipirona, paracetamol e sulfato ferroso. Está faltando gasolina para os profissionais [os agentes de saúde]. Por isso os profissionais fazem visita de carona com os parentes das aldeias”, segundo outro trecho da carta.
Conforme as informações disponíveis sobre sua candidatura no site do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), Deizimar Freitas tem um patrimônio de R$18.273,00. Seu opositor na eleição municipal é o prefeito de Atalaia do Norte, Dênis Paiva (União), que concorre à reeleição do cargo.
Na carta-denúncia, escrita em 12 de setembro, os indígenas relatam descaso e negligência na saúde. O município de Atalaia do Norte, que abriga parte da TI Vale do Javari, é um dos 62 do Amazonas que estão com decreto de emergência devido a seca, que provocou problemas na navegabilidade dos rios e isolamento das comunidades. “Nós marubo da comunidade Paraná do Polo Base Vila Nova, os profissionais [da saúde] já completaram 116 dias de permanência. Estão sem rancho [alimentos], sem medicamento básico para atender nossos parentes”.
Em um vídeo enviado pelos indígenas à reportagem, Kora Kanamari aparece durante um comício ao lado dos candidatos Deizimar e Tôta.
O uso da máquina pública (serviços, instalações, veículos e os servidores de qualquer repartição federal, estadual ou municipal) é proibido para beneficiar partidos ou organizações de caráter político e favorecer campanhas eleitorais. A prática é tipificada como crime no Código Eleitoral (art. 346 c/c 377).
A pena para esse tipo de crime eleitoral é detenção de até seis meses e multa. Além da autoridade responsável, os servidores que prestarem serviços e os candidatos, membros ou diretores do partido que derem causa à infração, podem ser penalizados.
Com 8, 5 milhões de hectares, a Terra Indígena Vale do Javari, que fica na fronteira do Brasil com o Peru, tem uma população de 6.317 pessoas e 26 etnias indígenas, entre povos isolados e de recente contato como os Korubo. As etnias que têm envolvimento com a sociedade nacional são os Kanamari, Kulina Pano, Marubo, Matis, Mayuruna e Tsohom-dyapa. A região é ameaçada pela pesca predatória, caça ilegal de animais silvestres, garimpos, madeireiros e narcotráfico.
A região do Vale do Javari ficou conhecida internacionalmente após os brutais assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em 2022. Kora Kanamari ajudou nas buscas aos dois defensores.
O município de Atalaia do Norte tem 9.683 eleitores e 42 zonas eleitorais. Uma das zonas, a de no. 37, para 400 eleitores, teve a primeira votação na TI Vale do Javari em 2021, como comemorou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com o documentário “urna chega ao povo Marubo”.
Em outras aldeias, os indígenas navegam de voadeiras por mais de três horas para votar dentro da terra indígena ou na cidade. De acordo com o documentário, os votos dos indígenas do Vale do Javari podem eleger até 50% dos novos vereadores.
Medo de ameaça
A campanha política municipal levou o medo às aldeias Marubo e Mayuruna. É o que relatam à reportagem lideranças procuradas para falar sobre as denúncias da carta. Elas se recusaram a aparecer por temer ameaças. “Esses barquinhos [do Dsei] são usados por profissionais de saúde para visitar outras aldeias e o candidato Deizimar está utilizando para ir nas aldeias Matsés no rio Jaquirana”, disse a liderança sob condição de manter sua identidade em sigilo.
De acordo com um outro relato, funcionários do Dsei Vale do Javari acompanharam o candidato a prefeito Deizimar Freitas na campanha eleitoral nas aldeias, mesmo quando estavam em horário de trabalho nas dependências da Casa de Saúde Indígena (Casai). O Dsei atende 67 aldeias e 1.844 famílias.
“Os funcionários Marcos Mayuruna e Gilson Mayuruna, o Gaúcho, estão nas aldeias, trabalhando como profissionais da saúde indígena. Isso tem sido muito ruim. Em vez de se preocupar em cuidar da saúde indígena, estão preocupados com política, tentando manipular indígena”, denunciou uma fonte.
Os agentes públicos podem participar de campanhas eleitorais, desde que seja fora do horário de trabalho e não haja uso de recursos públicos. A Lei Eleitoral veda a utilização de serviços de servidor para comitês de campanha eleitoral de candidato, durante o horário normal de expediente (art. 73, III da Lei n.º 9504/97).
Os indígenas também afirmam que o candidato Deizimar está usando a estrutura do Dsei, como embarcações e combustível, para se locomover até as aldeias dos Matsés (também chamados de Mayuruna) com intuito de fazer campanha eleitoral.
“Foi o coordenador Kora Kanamari que autorizou levar os funcionários para fazerem campanha nas aldeias. Inclusive, eles estão usando embarcações da saúde indígena e eles querem apoio dos indígenas para votar no Deizimar”, confirmou uma das lideranças ouvidas pela Amazônia Real e que pediu para não revelar a identidade.
Uma liderança relatou à reportagem, também sob sigilo de sua identidade, sofrer ameaçados por não concordar em votar em Deizimar. “Já tem uma perseguição política da coordenação do Dsei contra os funcionários da saúde indígena que não concordam com o que eles falam. O coordenador ameaça os funcionários do Dsei, ele fala que vão ser trocados todos os funcionários e eles tem medo. E vão sair muito mais funcionários, porque estão falando em demitir mais pessoas”, afirmaram.
Pressionar ou ameaçar eleitores para votar ou não votar em determinado candidato ou partido é crime, previsto no Código Eleitoral (artigo 301). A perda de benefícios gerais, como o emprego ou fim de pensões públicas, além da imposição de receio à integridade física de uma pessoa, configura crime eleitoral de coação. O crime é punível com até quatro anos de reclusão e multa.
Outra fonte, que não pode ser identificada por questões de segurança, presenciou a distribuição de dinheiro nas aldeias Mayuruna. De acordo com o Código Eleitoral, oferecer dinheiro, bens ou benefícios em troca de votos configura crime eleitoral de compra de votos (artigo 299).
“O Gaúcho virou o camarada que carrega dinheiro dentro das calças, dentro da cueca. Quando o Gaúcho chegou lá e desceu, e um dos nossos funcionários que estava indo comigo para São Meireles pediu para ele destrocar 100 reais, ele puxou um montante de dinheiro de dentro das calças. Esse que é (sic) os candidatos honestos que tem do lado de lá da oposição. Esses são os verdadeiros candidatos que dizem que vão ajudar, transportando dinheiro para as aldeias indígenas dentro da cueca”, denunciou.
Contra o aliciamento eleitoral
À Amazônia Real, Kleber Karipuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), disse que a organização faz um direcionamento político em relação aos casos de aliciamento eleitoral, tanto de eleitores quanto de candidaturas indígenas.
A orientação da Apib é apoiar candidaturas que estejam alinhadas com o movimento indígena, ação reforçada na “Campanha Indígena 2024”, que tem como lema “Aldear a Política é Nosso Marco Ancestral”. A articulação nacional do movimento indígena divulgou o manifesto de 2024 da campanha em agosto deste ano, e entre as principais propostas que fazem parte da agenda indígena eleitoral, estão a demarcação e o combate ao marco temporal.
No documento, a Apib ressalta que as candidaturas devem “comprometer-se a lutar pela demarcação dos territórios assim como pela revogação de qualquer legislação que adote o marco temporal para demarcação de terras indígenas”.
“Alguns partidos ou mesmo políticos buscam obter o apoio e os votos dos indígenas nas eleições, e no caso das candidaturas indígenas o que a gente orienta politicamente é que procure fazer o registro de candidaturas em partidos envolvidos e comprometidos com a pauta e o movimento indígena”, explicou.
A Campanha Indígena 2024 inclui ainda temas fundamentais aos povos indígenas, como educação, saúde, cultura, economia indígena, aliança pelo clima e bem viver indígena. Também estão presentes a garantia de apoio partidário, a ampliação da participação social e a mediação de conflitos.
“É para não compor partidos apenas por compor, para fazer número e apenas usar a imagem indígena, mas sim fazer uma composição que de fato vá respeitar e priorizar o debate da pauta indígena”, disse a liderança.
O que dizem as autoridades
Procurado no dia 17 de setembro, o Ministério Público do Amazonas respondeu que nenhuma denúncia foi formalizada junto à promotoria do município de Atalaia do Norte até aquele momento.
Hoje (30), o MP divulgou uma nota em que informa que, por meio da Promotoria da 42ª Zona Eleitoral, instaurou a Notícia de Fato nº 201.2024.000066 para apurar possíveis ações eleitoreiras no Dsei do Vale do Javari. De acordo com o conteúdo da denúncia enviada ao órgão, colaboradores do Dsei “estariam infringindo os princípios de imparcialidade que regem o serviço público”.
A nota do MP Eleitoral, que não cita os nomes de Kora Kanamari e nem de Deizimar Freitas Rodrigues, diz que as denúncias de ação eleitoreira por agentes públicos foram apresentadas aos canais de comunicação da Ouvidoria-Geral do MPAM, anexadas com fotos e links de publicações em redes sociais sobre as ocorrências de ilícito eleitoral. O conteúdo, segundo o MP, mostra a captação e promoção de campanha para determinados candidatos do município de Atalaia do Norte, durante a prestação de serviços essenciais à população indígena.
“A ação do MPAM busca inibir comportamentos com viés político-partidário de colaboradores que atendem necessidades de saúde, por ferirem a seriedade dos serviços prestados e a confiança das comunidades indígenas. Dessa forma, o objetivo é apurar todos os eventos mencionados na denúncia e garantir que as autoridades responsáveis citadas sejam responsabilizadas por violação da integridade do DSEI-VAJ”, diz um trecho da nota.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), procurada no dia 25 de setembro, declarou, por e-mail enviado à reportagem, que não foi acionada em relação à denúncia.
Procurado nesta segunda-feira (30), o Ministério da Saúde também não respondeu os questionamentos da reportagem.
No dia 25 de setembro, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também foi procurado pela reportagem, mas não respondeu aos questionamentos sobre a denúncia até o fechamento desta reportagem.
O TSE anunciou hoje que recebeu 68 mil denúncias de propaganda eleitoral irregular em todo o país. As denúncias mais relatadas envolvem a fixação ilegal de cartazes e faixas (11,8 mil), uso de bem público para promoção de candidato (10,9 mil) e propaganda irregular na internet (8,4 mil). No Amazonas, foram registradas 627 denúncias de propaganda eleitoral irregular no Amazonas, segundo o TSE, através do aplicativo Pardal. Desse total, 13% são de uso de bem público.
O TSE também recebe denúncias do eleitor através do SOS Voto, um disque-denúncia criado para receber relatos de mentiras e desinformação sobre o processo eleitoral nas redes sociais. A ferramenta pode ser acessada gratuitamente por qualquer cidadã ou cidadão, em todas as regiões do país, por meio do número de telefone 1491.
O Ministério da Saúde enviou a seguinte resposta nesta terça-feira, dia 01 de outubro, por isso estamos atualizando o texto: “O caso está sendo apurado cuidadosamente. Equipes de supervisão da pasta visitarão as comunidades para avaliar as condições de trabalho e a disponibilidade de insumos médicos. A partir deste diagnóstico, serão tomadas as medidas necessárias.”
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