Reciclagem de água
A região Trans-Purus é essencial para a reciclagem de água pela floresta amazônica. Cerca da metade da chuva que cai sobre a floresta é devolvida ao ár em forma de vapor d’água, gerando chuva nas regiões para onde os ventos levam este vapor (e.g., [1-4]). Cerca da metade da água que é reciclada é levado por ventos conhecidos como “rios voadores” para as regiões Sudeste, Sul e Centro-oeste do Brasil e para países vizinhos como Argentina [5-7]. A região Trans-Purus é a última parte da floresta onde a água e reciclada neste percurso. A floresta na parte suloeste da região tem um papel não só na reciclagem de água, mas também na direcionamento do transporte desta água em direção às partes mais populosas do Brasil [8].
A cidade de São Paulo, localizada na bacia do rio La Plata, depende desta água. Estimativas da dependência da bacia do rio La Plata na água reciclada da Amazônia variam, com valores de16% [9], 18-23% [8], 23% [10] e 70% [11]. Se o valor de 70% for correto, é evidente que perda de floresta amazônica seria catastrófica para o Brasil. No entanto, mesmo se o menor valor estimado (16%) for correto, a cidade de São Paulo está em grave risco. Isto se deve ao fato que o clima naquela parte do Brasil já mudou e está previsto a mudar ainda mais para sofrer graves secas. Em 2014 a cidade de São Paulo chegou perto a ficar sem água, e em 2021 uma outra seca extrema atingiu essa área [12, 13]. Embora essas secas são principalmente devido a mudanças nas temperaturas dos oceanos ligadas ao aquecimento global, e não ao desmatamento amazônica, isto aumenta em muito o valor da floresta amazônica, sobretudo na região Trans-Purus, pois não há mais nenhuma margem para absorver o impacto de uma perda da água transportada da Amazônia [14]. A criação de grandes unidades de conservação (que não sejam APAs) pode ser justificada com base deste papel climática.
Estoque de carbono
A região Trans-Purus tem um enorme estoque de carbono na floresta e também no solo embaixo da floresta [15, 16]. A emissão de apenas uma pequena fração desse carbono para a atmosfera em um curto espaço de tempo pode ser chave em empurrar o clima global além de um ponto de não retorno [17].
Sinergia com as mudanças climáticas
O estresse colocado sobre a floresta pelas mudanças climáticas na área afetada pela BR-319 significa que perturbações menores poderiam empurrar esses ecossistemas para além de um ponto de inflexão, além do qual a floresta seria substituída por savana ou outra vegetação de baixa biomassa. As atividades dos atores que têm acesso à floresta pela BR-319 e as suas estradas vicinais associadas proporcionariam perturbações como efeitos de borda, exploração madeireira e incêndios, que aumentariam a probabilidade de savanização.
As projeções mostram uma diminuição substancial na precipitação anual e aumentos na duração da estação seca e na temperatura máxima ao longo da rota da BR-319 e estendendo-se por grande parte da região Trans-Purus [18]. Esses impactos são o resultado apenas das alterações climáticas projetadas e são muito piores quando se inclui o efeito da perda florestal através da savanização [18] (Figuras 14-16).
O recente estudo de Flores et al. [19] mostra que a rota da BR-319 apresenta alto risco de ultrapassar um ponto de inflexão para a manutenção da floresta amazônica, e grande parte da região Trans-Purus está dentro dos 49% da Amazônia brasileira onde esse risco é considerado significativo (Figura 17).
Uma das consequências do clima mais quente e seco projetado para a área é o aumento do risco de fogo, incluindo incêndios florestais [21, 22]. O risco de incêndios florestais também é aumentado pelo impacto da exploração madeireira, que facilita a secagem do sub-bosque e deixa quantidades substanciais de madeira morta na floresta que serve de combustível para incêndios florestais: o efeito combinado de uma maior área que pega fogo durante secas extremas e o fato de os incêndios serem de maior intensidade quando ocorrem em áreas exploradas por madeira mais que duplica o impacto na perda de biomassa em comparação com a própria exploração seletiva [23, 24]. A exploração madeireira é generalizada na área da BR-319 [25, 26]. O avanço do desmatamento e das pastagens aumenta o número de fontes potenciais de ignição para incêndios florestais, que normalmente se espalham a partir de queimadas intencionais de florestas recentemente derrubadas ou de pastagens [27].
Surpreendentemente, o EIA da BR-319 afirma que a rodovia reduzirá o risco de incêndios florestais: “Menor risco de incêndios florestais, fase de operação…. Sua natureza é benéfica, com ocorrência indireta de forma prioritária, e direta, no controle de operações. Neste último caso está relacionado a pesagem dos veículos de transporte de cargas e controle de tráfego, o que minimiza as chances de acidentes e consequentemente de incêndios florestais.” ([28], p. 2291). Infelizmente, os acidentes com caminhões não são a principal causa dos incêndios florestais na Amazônia, e qualquer efeito benéfico da prevenção desses acidentes seria mínimo em comparação com o aumento devido aos fatores mencionados acima.
Sinergia com as mudanças climáticas
O estresse colocado sobre a floresta pelas mudanças climáticas na área afetada pela BR-319 significa que perturbações menores poderiam empurrar esses ecossistemas para além de um ponto de inflexão, além do qual a floresta seria substituída por savana ou outra vegetação de baixa biomassa. As atividades dos atores que têm acesso à floresta pela BR-319 e as suas estradas vicinais associadas proporcionariam perturbações como efeitos de borda, exploração madeireira e incêndios, que aumentariam a probabilidade de savanização.
As projeções mostram uma diminuição substancial na precipitação anual e aumentos na duração da estação seca e na temperatura máxima ao longo da rota da BR-319 e estendendo-se por grande parte da região Trans-Purus [18]. Esses impactos são o resultado apenas das alterações climáticas projetadas e são muito piores quando se inclui o efeito da perda florestal através da savanização [18]. [29]
A imagem que abre este artigo mostra desmatamento dentro da CDRU em Manicoré, Amazonas e as nuvens de umidade que formam os rios voadores (Foto: Wérica Lma/Amazônia Real).
Notas
[1] Arraut, J.M., C.A. Nobre, H.M. Barbosa, G. Obregon & J.A. Marengo. 2012. Aerial rivers and lakes: Looking at large-scale moisture transport and its relation to Amazonia and to subtropical rainfall in South America. Journal of Climate 25: 543-556.
[2] Keys, P.W., R.J. van der Ent, L.J. Gordon, H. Hoff, R. Nikoli & H.H.G. Savenije. 2012. Analyzing prec
[3] Salati, E. & P.B. Vose. 1984. Amazon Basin: A system in equilibrium. Science 225: 129-138.
[4] Salati, E., A. Dall’Olio, E. Matusi & J.R. Gat. 1979. Recycling of water in the Brazilian Amazon Basin: An isotopic study. Water Resources Research 15(5): 1250-1258.
[5] Correia, F.W.S., R.C.S. Alvalá & A.O. Manzi. 2006. Impacto das modificações da cobertura vegetal no balanço de água na Amazônia: um estudo com modelo de circulação geral da atmosfera (MCGA). Revista Brasileira de Meteorologia 21(3a): 153-167.
[6] Fearnside, P.M. 2004. A água de São Paulo e a floresta amazônica. Ciência Hoje 34(203): 63-65.
[7] Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo. Amazônia Real.
[8] Zemp, D.C., C.F. Schleussner, H.M.J. Barbosa, R.J. van der Ent, J.F. Donges, J. Heinke, G. Sampaio & A. Rammig. 2014. On the importance of cascading moisture recycling in South America. Atmospheric Chemistry and Physics 14: 13337–13359.
[9] Yang, Z. & F. Dominguez. 2019. Investigating land surface effects on the moisture transport over South America with a moisture tagging model. Journal of Climate 2: 6627-6644.
[10] Martinez, J.A. & F. Dominguez. 2014. Sources of atmospheric moisture for the La Plata River Basin. Journal of Climate 27: 6737–6753.
[11] van der Ent, R.J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continents. Water Resources Research 46: art. W09525.
[12] van der Ent, R.J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continents. Water Resources Research 46: art. W09525.
[13] Nobre, C.A., J.A. Marengo, M.E. Seluchi, L.A. Cuartas & L.M. Alves. 2016. Some characteristics and impacts of the drought and water crisis in Southeastern Brazil during 2014 and 2015. Journal of Water Resource and Protection 8(2): 252-262.
[14] Fearnside, P.M. 2021. As lições dos eventos climáticos extremos de 2021 no Brasil: 2 – A seca no Sudeste. Amazônia Real, 20 de julho de 2021.
[15] Nogueira, E.M., A.M. Yanai, F.O.R. Fonseca & P.M. Fearnside. 2015. Carbon stock loss from deforestation through 2013 in Brazilian Amazonia. Global Change Biology 21: 1271–1292.
[16] Quesada, C.A., J. Lloyd, L.O. Anderson, N.M. Fyllas, M. Schwarz & C.I. Czimczik. 2011. Soils of Amazonia with particular reference to the RAINFOR sites. Biogeosciences 8: 1415–1440.
[17] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2023. A seca na Amazônia em 2023 indica um futuro desastroso para a floresta tropical e seu povo. The Conversation, 06 de novembro de 2023.
[18] Bottino, M.J., P. Nobre, E. Giarolla, M.B. da Silva Junior, V.B. Capistrano, M. Malagutti, J.N. Tamaoki, B.F.A. de Oliveira & C.A. Nobre. 2024. Amazon savannization and climate change are projected to increase dry season length and temperature extremes over Brazil. Scientific Reports 14: art. 5131.
[19] Flores, B.M., E. Montoya, B. Sakschewski, N. Nascimento, A. Staal, R.A. Betts, C. Levis, D.M. Lapola, A. Esquível-Muelbert, C. Jakovac, C.A. Nobre, R.S. Oliveira, L.S. Borma, D. Nian, N. Boers, S.B. Hecht, H. ter Steege, J. Arieira, I.L. Lucas, E. Berenguer, J.A. Marengo, L.V. Gatti, C.R.C. Mattos & M. Hirota. 2024. Critical transitions in the Amazon forest system. Nature 626: 555–564.
[20] Sassine, V. 2024. Quase metade da Amazônia caminha para ponto de inflexão rumo ao colapso até 2050, diz pesquisa. Folha de São Paulo, 14 de fevereiro de 2024.
[21] Vasconcelos, S.S., P.M. Fearnside, P.M.L.A. Graça, D.V. Dias & F.W.S. Correia. 2013. Variability of vegetation fires with rain and deforestation in Brazil´s state of Amazonas. Remote Sensing of Environment 136: 199-209.
[22] Vasconcelos, S.S., P.M. Fearnside, P.M.L.A. Graça, P.R. Teixeira-Silva & D.V. Dias. 2015. Suscetibilidade ao fogo da vegetação do sul Amazonas sob condições meteorológicas atípicas durante a seca de 2005. Revista Brasileira de Meteorologia 30(2): 134-144.
[23] Barni, P.E., A.C.M. Rego, F.C.F. Silva, R.A.S. Lopes, H.A.M. Xaud, M.R. Xaud, R.I. Barbosa & P.M. Fearnside. 2021a. Logging Amazon forest increased the severity and spread of fires during the 2015-2016 El Niño. Forest Ecology and Management 500: art. 119652.
[24] Barni, P.E., A.C.M. Rego, F.C.F. Silva, R.A.S. Lopes. H.A.M. Xaud, M.R. Xaud, R.I. Barbosa & P.M. Fearnside. 2021b. Exploração madeireira e incêndios florestais. Amazônia Real.
[25] Andrade, M.B.T., L. Ferrante & P.M Fearnside. 2021a. Brazil’s Highway BR-319 demonstrates a crucial lack of environmental governance in Amazonia. Environmental Conservation 48(3): 161-164.
[26] Andrade, M.B.T., L. Ferrante & P.M. Fearnside. 2021b. A rodovia BR-319, do Brasil, demonstra uma falta crucial de governança ambiental na Amazônia. Amazônia Real, 02 de marçode 2021.
[27] Fearnside, P.M. 1990. Fire in the tropical rain forests of the Amazon Basin. p. 106-116 In: J.G. Goldammer (ed.) Fire in the Tropical Biota: Ecosystem Processes and Global Challenges. Springer‑Verlag, Heidelberg, Alemanha. 490 p.
[28] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020a. BR-319/AM: EIA – Estudo de Impacto Ambiental Segmento do km 250,00 ao km 655,70. DNIT, Brasília, DF. 2.795 p.
[29] Os textos desta série fazem parte de uma revisão de literatura solicitada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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