Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Sobrevoo em Novo Aripuanã (Foto: Wérica Lma/Amazônia Real)

Impactos da rodovia BR-319 – 2: o Lote C


A maior parte da discussão sobre a proposta de reconstrução da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) tem sido sobre o o “trecho do meio” da rodovia entre km 250 e km 655,7. As marcas de quilômetros na rodovia representam distâncias ao sul de Manaus. No entanto, um trecho de 72,2 km da rodovia conhecido como “Lote C” ou “Lote Charlie”, entre o km 177,8 e o km 250,0 (Figura 1) é importante neste debate, especialmene por não possuir o estudo de impacto ambiental necessário para seu projeto de reconstrução. O EIA do projeto de reconstrução da BR-319 [1] cobre apenas o “trecho do meio” da rodovia. O superintendente em Manaus do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) anunciou que pretende asfaltar o Lote C em 2024 [2].

Figura 1. Localização do Lote C [3].

A reconstrução do Lote C terá impactos ambientais e, mesmo que não tivesse impactos, ainda assim seria necessário ter o EIA legalmente exigido para demonstrar que este seja o caso. O impacto não é apenas o que acontece nas margens do Lote C, e os principais impactos serão o papel deste trecho como parte da ligação da notória área AMACRO a Manaus, e aos impactos mais amplos da BR-319, como o desmatamento em áreas ligadas a Manaus por rodovia, incluindo Roraima.

Dentro da própria área do Lote C, pode-se esperar que os atuais aumentos do desmatamento e das queimadas e incêndios aumentem ainda mais. Esta área tem recebido migrantes da região AMACRO, especialmente desde 2015 quando iníciou o projeto de “manutenção” da rodovia BR-319, melhorando a sua trafegabilidade. Uma invasão no km 140 (próximo, mas não dentro, do Lote C) foi organizada a partir de Vila Realidade, na parte sul do “trecho do meio” da BR-319 [4].

Em 2023, Manaus passou por uma grande crise de fumaça, com partículas PM2,5 atingindo níveis ainda mais altos do que aqueles observados na crise na Índia no mesmo ano, e a fumaça em Manaus era principalmente proveniente de queimadas e incêndios ao sul da cidade, incluindo a área do Lote C [5] (Figura 2).

Figura 2. Locais de fogos ao sul de Manaus em 2023, incluindo o Lote C [6].

A necessidade de um EIA para a reconstrução do Lote C tem sido objeto de uma longa disputa jurídica. Em 15 de dezembro de 2014, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) decidiu por unanimidade que é necessária um EIA para a reconstrução do Lote C [7]. Em 28 de janeiro de 2019, o mesmo tribunal rejeitou um recurso do DNIT e reafirmou a necessidade de um EIA [8]. Simplesmente ignorando essa decisão, em 24 de junho de 2020 o DNIT lançou um edital de licitação para reconstrução de um trecho de 51,8 km dentro do Lote C, do km 198,2 ao km 250,0 [9].

O Ministério Público Federal apresentou uma “impugnação” ao tribunal em 30 de junho de 2020, exigindo o cancelamento do edital e afirmando que “Fica desde já o alerta: trata-se de interpretação errada de má-fé, que não deve ser admitida pelo juízo da execução, sob pena de grave afronta e desprezo à autoridade das decisões do Tribunal Regional Federal da 1ª Região” [10], p. 12). O DNIT apresentou recurso à 1ª vara da Seção Judiciária do Estado do Amazonas e obteve decisão favorável em 20 de agosto de 2020 [11]. Essa decisão foi revertida em 1º de março de 2021, quando o Tribunal Regional Federal reafirmou a necessidade de um EIA [12].

O DNIT obteve então uma decisão em 07 de abril de 2021 para permitir a reconstrução no Lote C sem um EIA [13]. A imparcialidade do juiz que proferiu essa decisão monocrática foi questionável porque ele era amigo pessoal da família Bolsonaro e estava na lista do então Presidente para preencher uma vaga no Supremo Tribunal Federal [14-16]. A decisão baseou-se na alegação de que a interrupção da reconstrução causaria “grave lesão à ordem pública”, ou seja, os mesmos termos do mecanismo de suspensão da segurança herdado da ditadura militar brasileira [17, 18], explicado no anexo texto. Talvez a desmoralização do sistema judiciário e do licenciamento ambiental federal do Brasil seja o impacto mais lembrado do Lote C. [19]


A foto que abre este artigo, foi registrada durante um sobrevoo em Novo Aripuanã, no Amazonas (Foto: Wérica Lima/Amazônia Real/23/08/2022)


Notas

[1] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. BR-319/AM: EIA – Estudo de Impacto Ambiental Segmento do km 250,00 ao km 655,70. DNIT, Brasília, DF. 2.795 p.

[2] Serrão, J.F. 2023. Pavimentação da BR-319 começará em 2024, afirma superintendente do DNIT. Revista Cenarium Amazônia, 15 de dezembro de 2023.

[3] TCU (Tribunal de Contas da União). 2020. Relatório de Fiscalização. TC n. 025.146/2020-3 Fiscalização n. 135/2020. TCU, Manaus, Amazonas, 24 de agosto de 2020. 54 pp.

[4] Assayag, Y. 2016. MPF/AM cobra de órgãos ambientais e da polícia providências sobre denúncia de invasão na BR-319. Amazonas em Tempo, 28 de outubro de 2016.

[5] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2023. Picos de fumaça em Manaus não podem ser atribuídos às queimadas do Pará, como afirma o governo do Amazonas. Amazônia Real, 14 de novembro de 2023.

[6] Fato Amazônico. 2023. Ibama vai mandar reforço de 149 brigadistas para o Amazonas para atuar ontra os focos de queimada na região. Fato Amazônico, 13 de outubro de 2023.

[7] TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região). 2015. Apelação Civil (AC) AC: 0005716-70.2005.4.01.3200. TRF-1, Manaus, Amazonas.

[8] TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região). 2015. Apelação Civil (AC) AC: 0005716-70.2005.4.01.3200. TRF-1, Manaus, Amazonas.

[9] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020b. Aviso de Licitação. RDC Eletrônico Nº 216/2020 – UASG 393003. Diário Oficial da União, 24/06/2020. Edição: 119, Seção: 3, Página: 82.

[10] MPF-AM (Ministério Pública Federal no Amazonas). 2020. Processo: 1016749-49.2019.4.01.3200 – Cumprimento de Sentença contra a Fazenda Pública (mpf.mp.br). ID 267623888. MPF-AM, 30 de junho de 2020.

[11] JF-1 (Justiça Federal da 1ª Região). 2020. Processo: 1016749-49.2019.4.01.3200 Classe: Cumprimento de Sentença contra a Fazenda Pública (12078). 20 de agosto de 2020.

[12] TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região). 2021. Tribunal Regional da 1ª Região. Processo: 1029927-28.2020.4.01.0000  processo referência: 0005716-70.2005.4.01.3200.TRF-1, 01 de março de 2021. Manaus, Amazonas.

[13] STJ (Superior Tribunal de Justiça). 2021. Suspensão de Liminar e de Sentença Nº 2897 – AM (2021/0078070-0). 07 de abril de 2021.

[14] Carvalho, I. & D. Giovanaz. 2021. Bolsonaro pode indicar ao STF ministro que pediu investigação de juiz do caso Queiroz. Brasil de Fato, 23 de abril de 2021.

[15] Ferrante, L., M.B.T. Andrade & P.M. Fearnside. 2021a. Grilagem na rodovia BR-319: 4 –O escândalo do “Lote C”. Amazônia Real, 16 de agostode 2021.

[16] Ferrante, L., M.B.T Andrade & P.M. Fearnside, 2021b. Land grabbing on Brazil’s Highway BR-319 as a spearhead for Amazonian deforestationLand Use Policy 108: art. 105559.

[17] Brasil, PR (Presidência da República). 1964. Lei nº4.348, de 26 de junho de 1964. Estabelece normas processuais relativas a mandado de segurança. PR, Brasília, DF.

[18] Fearnside, P.M. 2024. A BR-319 e o fantasma da ditadura-2: suspensões de segurança. Amazônia Real, 17 de abril de 2024.

[19] Os textos desta série fazem parte de uma revisão de literatura solicitada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor

Compartilhe:

Facebook
Twitter
LinkedIn

Postes Recentes

FORMULÁRIO DE INSCRIÇÃO

Redes Sociais: