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Ferrogrão: Governo pede desculpa a indígenas, mas retoma ferrovia da soja na Amazônia

Com um pedido oficial de desculpas a povos indígenas, o governo federal voltou à carga para destravar a polêmica Ferrogrão – sonho antigo dos produtores de soja e milho do centro-oeste e um dos mais ambiciosos projetos de logística do país. Totalizando 933 km de extensão, a ferrovia teria início no município de Sinop (MT), base da produção nacional de grãos, e cruzaria a Amazônia até chegar ao porto de Itaituba (PA), no rio Tapajós.

A reportagem teve acesso a um “pedido de retratação” que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), órgão federal responsável por gerenciar as concessões do setor logístico, apresentou em uma reunião realizada nesta quarta-feira (7 de fevereiro) em Brasília (DF), com lideranças indígenas do Instituto Kabu.

A organização do povo Kayapó Mekrãgnotí atua na defesa de indígenas das proximidades da rodovia BR-163, principal via de escoamento do agro no centro-oeste. A Ferrogrão seria construída paralelamente à estrada.

Segundo a ANTT, a agência quer garantir “o processo de consulta prévia, livre e informada, conforme previsto na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), a qual, infelizmente, não foi devidamente observada”.

Com 933 km de extensão, Ferrogrão vai de Sinop (MT) a Itaituba (PA). Arte: Débora De Maio

Com o reposicionamento, o governo deixou claro que pretende levar adiante o projeto, ideia criada há mais de uma década, ainda no primeiro governo da então presidente Dilma Rousseff (PT), pelas grandes tradings de grãos que atuam no país: Amaggi, ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus.

Não por acaso, o projeto há anos figura entre as prioridades da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja), instituição já presidida, no Mato Grosso, pelo atual ministro da Agricultura, Carlos Fávaro.

“Esse projeto é de interesse nacional e deve ser realizado de maneira sustentável, considerando as melhores decisões socioambientais para a região e para todas as comunidades que a habitam”, afirma a ANTT, em documento assinado em 26 de janeiro. “Uma vez concluída, a Ferrogrão terá uma capacidade de transporte significativa, proporcionando competitividade no escoamento da produção pelo Arco Norte”.

Liderança da aldeia Baú e responsável pelas relações públicas do Instituto Kabu, Mydjere Kayapó afirmou à reportagem que a reunião e a retratação não significam a aceitação do projeto. “Não é por causa de uma carta de desculpas que diremos sim para a Ferrogrão. Isso não deve só a mim, mas a todos os indígenas que sempre foram desrespeitados nesse processo”, disse.

A tentativa de aproximação do governo com os indígenas procura vencer uma etapa paralisada em 2021, quando o processo de licenciamento da obra – estimada hoje em aproximadamente R$ 30 bilhões – foi paralisado por ordem do STF.

Naquela ocasião, o ministro Alexandre de Moraes deu uma cautelar contra o projeto, ao atender uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apresentada pelo PSOL. A legenda questionava a redução dos limites do Parque Nacional Jamanxim, uma unidade de conservação ambiental no Pará, para a construção da Ferrogrão. Por decisão da própria corte, é proibido alterar limites de unidades para passagem de obras.

Lula e cacique Raoni Metuktire, do povo kaiapó, durante Acampamento Terra Livre em 2023. Foto: Marcelo Camargo/Agência

Indígenas não ouvidos

O pedido de desculpas faz referência a uma sessão pública do empreendimento realizada em 12 de dezembro de 2017, em Brasília, na gestão do então presidente Michel Temer, para tratar do licenciamento da obra. Na ocasião, os indígenas não foram ouvidos. No encontro desta quarta-feira, representantes do Ministério dos Transportes e da ANTT se reuniram em Brasília com as lideranças indígenas, para oficializar a retratação.

Na prática, porém, o encontro, que teve participação da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), simboliza mais do que um mero pedido de perdão. Em defesa da ferrovia, a agência reguladora destaca, inclusive, o apelo ambiental do projeto, apesar das preocupações de ativistas com os impactos sobre o ecossistema local.

“Este empreendimento contribuirá para o desenvolvimento nacional, alinhando-se a projetos estratégicos de infraestrutura de transportes, ao mesmo tempo em que respeitará o , promovendo a redução das emissões de CO² na atmosfera, em conformidade com a agenda ESG (ambiental, social e governança) do governo federal e os padrões estabelecidos pela Climate Bond Initiative (CBI) para certificação de iniciativas sustentáveis.”

Apesar de o Brasil ser signatário da Convenção 169 da OIT, o processo de consulta prévia nunca foi efetivamente respeitado no país. O que está em jogo, porém, é saber se os indígenas teriam, ou não, poder de veto ao projeto, a partir do diagnóstico de seus impactos. 

Fila de caminhões carregados de soja na BR-163 com destino ao porto de Miritituba, em Itaituba (PA). Foto: João Laet/Repórter Brasil

Busca de diálogo 

Durante o encontro com as lideranças indígenas, o subsecretário de do Ministério dos Transportes, Cloves Eduardo Benevides, disse que não está definido se a obra será bancada por recursos públicos, se será uma concessão, ou uma Parceria Público-Privada (PPP). “Não há um desenho final, o que há é um debate público”, comentou.

O plano ferroviário retomado por Lula contraria frontalmente seu maior aliado quando o assunto é a representação dos povos indígenas: o cacique Raoni Metuktire. O líder indígena de 93 anos, que subiu a rampa do Planalto ao lado do presidente na cerimônia de sua posse, em janeiro de 2023, vive na região a ser cortada pela Ferrogrão.

Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) já demonstraram que a criação de um terminal de cargas da Ferrogrão em Matupá, no norte do Mato Grosso, pode partir ao meio as terras indígenas do Xingu. É nesse ponto que a Ferrogrão afeta a Terra Indígenea Capoto Jarina, onde mora o cacique Raoni. A rodovia MT-232 atravessa trechos da Capoto Jarina e também do Parque Indígena do Xingu, que abriga 16 povos indígenas.

Mydjere Kayapó afirmou que seu povo tem um protocolo de consulta prévia. “Nós sabemos que, mesmo se dissermos não, eles estarão lá para construir. Então, queremos atuar para que não aconteça o que vimos em Belo Monte”, comentou, referindo-se ao conturbado processo de licenciamento da hidrelétrica erguida no rio Xingu, no Pará. 

“Não somos contra o desenvolvimento do Brasil, mas não aceitaremos que nosso direito seja atropelado e ignorado. Eles precisam fazer novos estudos da ferrovia e, antes de tudo, nos ouvir”,

defendeu a liderança.

Presidente da Associação Indígena Apiaká Iakunda’Y da comunidade Pimental, em Trairão (PA), Irleusa Robertino disse à reportagem que o povo indígena espera que as audiências sejam realizadas nas aldeias. “Não descansamos para fazer parte dessa discussão e queremos defender os direitos de nosso povo. Essas reuniões devem acontecer nos municípios diretamente afetados. Estamos solicitando isso”, comentou. 

“Apresentamos os protocolos de consulta dos povos Kayapó, Munduruku e Apiaká. Queremos ser ouvidos”.

Irleusa Robertino

Brent Millikan, membro da secretaria executiva da organização GT Infra e Justiça Ambiental, que acompanhou a reunião com os indígenas, diz que o saldo é positivo. “Ao menos, vemos agora um espírito democrático de abrir o tema para o debate, em vez da tentativa de atropelar e fingir que havia consulta”, comentou.

Em sua avaliação, as polêmicas da Ferrogrão expõem o contexto emblemático de como é feito o planejamento de grandes obras em territórios sensíveis. “São problemas crônicos. É preciso aprimorar o tema da viabilidade econômica e socioambiental do projeto, incluindo temas como o impacto cumulativo com outros empreendimentos, como a BR-163, a hidrovia do Tapajós, até considerando a possibilidade de não fazer a ferrovia”, disse.

Disputa bilionária 

Fora da arena ambiental, a Ferrogrão também divide interesses bilionários de empresas do setor ferroviário. Empresas como a VLI, braço logístico da mineradora Vale, querem que o projeto avance, para consolidar suas operações de transporte rumo ao “arco Norte” da Amazônia. Há, no entanto, fortes oponentes a essa ideia.

A Rumo, empresa do grupo Cosan que administra ferrovias nas regiões Centro-Oeste e Sudeste, assumiu bilhões de reais em novos investimentos na malha que já controla e teme que a nova abertura logística impacte seus negócios. Por isso, atua nos bastidores com posição contrária ao empreendimento.

Representantes de caminhoneiros também atuam contra o projeto, por temerem que o transporte de carga que hoje fazem pela BR-163 migre para os trilhos da ferrovia e inviabilize o modal rodoviário.

No ano passado, a Ferrogrão foi incorporada ao PAC 3 e passou a ser alvo de uma “análise dedicada”, conforme mencionou o chefe da Casa Civil, ministro Rui Costa. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, já declarou, porém, que o projeto depende da comprovação de sua viabilidade ambiental.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Repórter Brasil, escrito por André Borges. 

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Portal Amazônia e são de total responsabilidade do autor.
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