As gravuras rupestres do Sítio Ponta das Lajes voltaram a ficar visíveis devido à nova grande seca nos rios Negro e Amazonas, em Manaus. Nesta sexta-feira, o nível do rio Negro chegou a novo recorde histórico da seca, com 12,66 metros, conforme a régua de medição oficial, feita no Porto de Manaus.
(Foto cedida por Valter Calheiros).
Manaus (AM) – As gravuras rupestres milenares submersas no pedral do Sítio Arqueológico Ponta das Lajes, em Manaus, estão novamente visíveis neste período de seca na bacia amazônica. O que antes acontecia eventualmente, pode passar a ser mais frequente do que se imaginava. O sítio Ponta das Lajes está localizado à margem esquerda do rio Amazonas, na região do Encontro das Águas (rios Negro e Solimões), no bairro Colônia Antônio Aleixo, zona leste da capital
Para especialistas, é preciso debater como as alterações climáticas vão impactar o patrimônio histórico dos povos do passado da Amazônia. Nesta sexta-feira, o nível do rio Negro chegou a 12,66 metros, superando a marca mínima de 2023, que foi de 12,70 metros, registrando em menos de um ano a nova seca histórica em mais de 100 anos. Antes de 2023, o nível mais baixo foi registrado em 2010. A medição oficial do nível do rio Negro é feita sempre às sete da manhã, na régua do Porto de Manaus. Este é o valor usado como referência de monitoramento feito pelas autoridades públicas.
O arqueólogo Eduardo Góes Neves, coordenador do grupo de pesquisa Amazônia Revelada, afirma que seu receio é que essa situação torne-se permanente, o que colocaria em risco os patrimônios históricos encontrados nos sítios. Ele sugere que se crie novos protocolos de intervenção para proteger estas áreas.
“A gente tem que se preparar porque parecia que essas coisas aconteceriam só esporadicamente e agora ocorre periodicamente. É difícil saber ainda, mas talvez passem a ser mais frequentes do que pensávamos anteriormente. A gente tem que pensar que estamos vivendo um novo mundo, um novo contexto, onde as paisagens que a gente conhecia estão se transformando radicalmente. Isso vai demandar novos protocolos. Uma adaptação para esse contexto que acontece agora”, disse Neves à Amazônia Real.
Eduardo Góes Neves se preocupa com possíveis danos no atual cenário de crise ambiental do planeta e como isso pode afetar os recursos arqueológicos. Para Neves, o fato de elas estarem reaparecendo tem o lado interessante, porque ajuda a conhecer mais a história. Mas há também riscos.
“Paradoxalmente, quando estão embaixo d´água, elas estão mais protegidas. Quando aparecem na seca, tem o lado ruim. As pessoas vão lá, querem tirar foto, coletar coisas. Apesar dos esforços do Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], que são importantes, é difícil proteger um patrimônio que está em cima d´água”, comentou.
O arqueólogo Carlos Augusto Silva, o Tijolo, avalia que a mudança do clima será mais frequente e vai influenciar nos ciclos dos rios. Por isso, segundo ele, é preciso pensar como garantir a segurança do plantel de gravuras no sítio Ponta das Lajes, assim como de outros sítios ao longo da bacia amazônica.
“É preciso educar o povo, dizer que é um patrimônio da sociedade manauara, amazonense, brasileira. É um ambiente sagrado. Precisa ter cautela para preservar. Esse material exposto, pode acarretar danos e extravios. As altas temperaturas podem destruir. Já vemos problemas de rachadura, etc”, alerta Carlos Augusto.
Ele sugere um trabalho coletivo entre os órgãos públicos de meio ambiente e patrimonial de diferentes áreas para definir meios de proteger o sítio. “Nesse período da seca os órgãos deveriam fazer um ajuntamento, um diálogo, e mostrar que esse patrimônio precisa ser mantido para que as próximas gerações tenham o mesmo direito que estamos tendo hoje”, afirma.
Carlos Augusto salienta que o fenômeno das gravuras submersas não acontece apenas em Manaus, mas em toda a calha do rio Negro, e também na bacia dos rios Solimões e Amazonas.
“Estive ano passado em Urucará [baixo rio Amazonas] e vi algumas figuras. Com a seca frequente, vão aparecer mais evidências dessa ação humana do passado. Isso são detalhes que esses povos fizeram. Registros na rocha como uma forma de comunicação. O rio baixava também. Mas eles [povos do passado] tinham comportamento diferente de hoje”.
Recentemente, Carlos Augusto soube que as gravuras rupestres voltaram a aparecer em Urucurá e em São Sebastião do Uatumã. O mesmo se deu em outros municípios do Amazonas, como Novo Airão, São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro, Barcelos, Novo Aripuanã e Alvarães.
Sítio continua com lixo e sem fiscalização
Nesta semana, a Amazônia Real esteve no Sítio Ponta das Lajes para observar e presenciar as condições do local. O deslocamento até o sítio foi de barco, pelo rio Amazonas, com saída do Porto da Ceasa, na zona leste. O acesso via fluvial não é proibido pelo Iphan. O acesso via terrestre é pela Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN) Dr. Daisaku Ikeda, mantida pelo Instituto Soka Amazônia, mas precisa de autorização e só pode ocorrer em dois dias da semana.
As condições físicas do sítio são as mesmas de anos anteriores, com sinais de blocos rochosos depredados, efeito de intervenções de décadas atrás, e muitos resíduos deixados pela ação humana. O local é usado para lazer, mas as pessoas que visitam não se preocupam com a retirada de lixo. Facilmente são encontrados restos de comida, pedaços de madeira, isopor, carvão, etc. Alguns blocos possuem rabiscos desleixados feitos pelo tempo presente.
Por outro lado, a beleza e o fascínio do legado dos povos do passado permanecem intactos. Durante uma paciente e minuciosa expedição, é possível encontrar gravuras no piso do pedral. As chamadas oficinas líticas, onde as populações antigas fabricavam seus artefatos, também estão lá, fincadas há milênios.
As “caretas”, feições humanas em diferentes formatos e que têm o mesmo padrão de outros sítios arqueológicos à margem dos rios amazônicos, novamente afloraram, apresentando-se imponente em grupamentos ou solitárias. A mais famosa delas é a careta quadrada em um bloco à beira do rio e que foi bastante retratada na seca de 2023.
Ano passado a notícia do surgimento das caretas (dada em primeira mão pela Amazônia Real) repercutiu nacionalmente, levando uma visitação sem precedentes ao sítio Ponta das Lajes, entre curiosos e vândalos sem respeito ao patrimônio.
Ao redor do Sítio Ponta das Lajes, tem uma praia onde eventualmente grupos de pessoas visitam. Ao redor, mais lixo acumulado, incluindo pneus que desabaram de uma escadaria feita com este material e que não fica dentro da área da RPPN Dr. Daisaku Ikeda. Há pneus na praia e até na beira do rio, atolado no barro. Em 2023, quando esteve no sítio, a equipe da Amazônia Real desceu nesta escadaria e comprovou a fragilidade da estrutura. Atualmente, a escadaria está desativada.
Outra área degradada é o barranco. Grande parte ainda tem fragmento de floresta, mas há um ponto desmatado, onde o barro desmorona a cada tempo que passa. Esta falésia fica abaixo do Mirante da Ponta das Lajes, um conhecido ponto turístico onde a prefeitura de Manaus planeja construir o Parque Encontro das Águas.
Carlos Augusto Silva se indigna com a falta de cuidado com o sítio. Ele alerta que é preciso olhar com mais respeito o local, com aplicação de leis e punição para quem agride o material arqueológico.
“Pneus vão para o rio. Isso vai impactar diretamente o sítio arqueológico. O sítio Ponta das Lajes, e o Sítio de Terra Preta e toda a composição florística que ali está. O pessoal faz fogo, piquenique. Como combater? Só com políticas públicas? Aqueles desenhos são grafismos ou até mesmo letras que narram a presença desses povos. Mas com outro comportamento muito diferente do atual. Eram pessoas mais alegres do que as de hoje”, relata.
O tempo e a história das gravuras rupestres da Ponta das Lajes têm mais especulação do que certezas. As informações sobre as épocas e fases são baseadas em estudos e parâmetros feitos em outros sítios à margem dos rios amazônicos. Há quem diga que tem entre 1.000 e 2.000 anos. Outros, como o próprio Eduardo Góes Neves, arriscam dizer que são desenhos muito mais antigos, chegando mesmo a 8.000 anos.
“Me lembro quando as caretas apareceram em 2010. Foi uma seca muito forte também. Mas os eventos estão ficando mais frequentes. A gente sabe que a Amazônia foi um pouco mais seca entre 8 mil e 4 mil anos atrás. Pode ser que algumas dessas gravuras que estejam aparecendo tenham sido feitas naquela época”, diz.
De acordo com Eduardo Goes Neves, a seca proeminente de 2024 vem permitindo o surgimento de vestígios de histórias em várias partes da região e isto preciso ser olhado com atenção.
Gravuras rupestres que apareceram durante a seca na cidade de Urucará, no Amazonas. Imagens cedidas por Gustavo Henrique Ferreira Maia.
“Soube que nessa seca, apareceram ruínas do Forte São Francisco Xavier [construído no século 18], em Tabatinga (Alto Solimões), que tinha desmoronado. Em Manicoré, apareceu um barco que estava desaparecido. Imagina a quantidade de coisas que aparecem na Amazônia por causa da seca. Acho isso interessante, mas o patrimônio também fica mais vulnerável e isso é preocupante”.
O que dizem as autoridades
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Amazonas (Iphan-AM) disse que atua em uma gestão colaborativa com o Instituto Soka Amazônia na articulação entre instituições públicas, pesquisadores, organizações indígenas e comunidade local para promover a proteção adequada e a valorização do patrimônio arqueológico do Amazonas a partir de um plano de ações. A atuação tem quatro eixos: mobilização, conservação e vigilância, produção e divulgação de conhecimento e socialização.
O Iphan diz que não há impedimento de visita ao local, desde que sejam cumpridas as recomendações e a legislação vigente. “Sabemos que a área de entorno é acessada pela comunidade para lazer. Não há como privar as pessoas de acessarem o local, uma vez que a intenção não é afastar a comunidade do patrimônio, mas garantir que se identifiquem, valorizem e preservem”.
Ainda assim, ações de fiscalização estão agendadas pelo Iphan para serem realizadas neste mês e início de novembro. O Iphan também quer debater com a Marinha do Brasil a viabilidade de sinalização adequada para a área.
Segundo o Iphan, o Instituto Soka Amazônia, organização vizinha ao sítio e parceira nas ações de preservação, poderá autorizar visitas ao local respeitando suas regras internas. O Iphan disse que estão sendo organizadas visitas dos grupos mobilizados na elaboração do plano.
O órgão federal solicitou vigilância terrestre da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Defesa Social e há uma reunião marcada para o próximo dia 8 para tratar do monitoramento fluvial. “A medida se faz necessária pois se trata de um sítio que permanece submerso durante grande parte do ano, e também há visitas que são feitas a partir das embarcações turísticas”.
Sobre o acúmulo de lixo, a assessoria disse que está programada uma ação de Educação Ambiental e Patrimonial no dia 18 de outubro para a coleta de resíduos sólidos associada à ação de educação patrimonial com arqueólogos do Iphan e instituições parceiras.
O Iphan destacou que os bens arqueológicos pertencem à União, sendo que a Lei Federal nº 3924, de 26 de Julho de 1961, veda qualquer tipo de aproveitamento econômico de artefatos arqueológicos, assim como sua destruição e mutilação.
“Considerando que a vazante dos rios revelou construções, embarcações, gravuras rupestres e outros artefatos de valor histórico e arqueológico, orienta-se que a comunidade mantenha a preservação dos vestígios no local, evitando danos ou a criação de acervos descontextualizados. A comunicação imediata ao Iphan é fundamental para garantir as medidas de proteção adequadas”.
Procurada, a Prefeitura de Manaus disse que “área de intervenção autorizada e licitada pela Prefeitura de Manaus para construção do parque Encontro das Águas Rosa Almeida não engloba a região conhecida como pedral, ficando totalmente fora do território. A intervenção está ocorrendo apenas em área liberada com licenciamento ambiental e acompanhamento arqueológico, para contenção do local que sofreu desbarrancamento no último ano”.
De acordo com a Prefeitura, o Iphan tem solicitado apoio dos órgãos municipais e estaduais, durante a estiagem, para manter o território em segurança, inclusive com atuação da Polícia Federal. “A Prefeitura tem colaborado nesta ação e vai reforçar o pedido para limpeza urbana na região”, diz nota.
A prefeitura não respondeu sobre a escadaria feita de pneus ou sobre as peças delas que desabaram que estão jogados na praia.
O Instituto Soka Amazônia informou que está organizando uma ação educativa e de sensibilização social para coleta de resíduos sólidos no Sítio Ponta das Lajes em parceria com o Iphan e outros entes.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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