Índice
ToggleSem política de proteção territorial eficaz por parte dos órgãos ambientais estaduais, ribeirinhos lutam sozinhos para proteger os 392 mil hectares, que são alvo de grileiros e madeireiros. Na foto acima, área de desmatamento na CDRU do rio Manicoré (Foto: Wérica Lima/Amazônia Real/08/2022).
Manaus (AM) – Cerca de 100 homens, avistados com mais de 70 motosserras, adentram a mata fechada para destruir o que vêem pela frente. Eles partem em busca de castanhais, árvores medicinais e o que mais tiver valor, para posteriormente transformar a floresta em pasto. Há um mês e meio, um desmatamento de grandes proporções avança ao redor de cachoeiras do rio Manicoré, numa região conhecida como Tracajá e Miriti. Manicoré é uma das cidades-alvo onde mais cresce o desmatamento no sul do Amazonas e foco de queimadas.
As cenas que foram captadas por comunidades extrativistas do rio Manicoré indicam uma imagem que se repete na região. Em 2022, a Amazônia Real denunciou desmatamento e queima de quase 3 mil hectares no mesmo local. Desta vez, grileiros estão retornando mais equipados e mais armados. Uma balsa com quatro tratores e escavadeiras embarcadas chegou a subir e descer o rio, levando desmatadores e equipamentos para completar um serviço que começou meses atrás.
Manicoré foi o quarto município no ranking de queimadas em 2023, com 1.183 focos de calor. Ficou atrás somente de Lábrea (1º lugar, com 2.421), Apuí (2º lugar, com 2.131) e Novo Aripuanã (3º lugar, com 1.735), conforme o BD queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Essas cidades foram responsáveis por grande parte da fumaça que cobriu Manaus por três meses seguidos e é de onde são parte dos criminosos do atual desmatamento, segundo fonte ouvida pela Amazônia Real.
De 12 a 23 de março, a balsa esteve numa área de desmatamento. No retorno à cidade de Manicoré, uma imagem capturada por pessoas locais mostra apenas três tratores na balsa, o que indica que um permanece no local do desmatamento e segue sendo utilizado na atividade ilegal. “Tem um rapaz que mora na [comunidade] Barro Alto, ele que conduz toda a gasolina, os baldes, os ranchos. Eles não estão indo assim na balsa, estão indo de lancha. Mas é muito arriscado também porque estão armados e não são daqui do rio Manicoré”, explica a liderança Maria Cleia Delgado, presidente da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim).
Segundo apuração da Amazônia Real, há também grileiros de Rondônia. A movimentação no rio Manicoré acontece pela noite para manter a atividade de forma discreta. A situação, desta vez, está pior devido ao armamento, indicam os comunitários.
“Eles estão com pistoleiros, estão todos armados. Ninguém pode passar por conta que eles já têm um lá esperando, um não, vários. Os que trabalham vêm comprar gasolina aqui em Manicoré e aí eles falam que não pode entrar porque só pode entrar o que trabalha na ‘obra’. Quem não trabalha não é permitido e a ordem é se entrar vão ter que matar”, explica Mariludes Cunha da Silva, fundadora e secretária da Caarim.
O objetivo maior da atividade dessa “obra” é para extração de madeira e criação de gado no local. Em 2022, a Amazônia Real sobrevoou, em parceria com o Greenpeace, as florestas localizadas no perímetro da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) coletiva das comunidades ribeirinhas do rio Manicoré, onde foi possível avistar hectares de floresta queimados, madeira ilegal, criação de gado e abertura de ramais e estradas.
Na época, ribeirinhos relataram que grileiros acessam as regiões por meio de rodovias como a AM-174, abrindo novos ramais, apoderando-se de terras, extraindo madeira e a partir disso, estabelecendo a criação de gado.
Uma carta-denúncia sobre essa situação, que a Amazônia Real teve acesso, foi encaminhada pela Caarim para o Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual (MPE-AM), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Procuradoria Geral do Estado do Amazonas (PGE-AM), Secretaria de Meio Ambiente do estado do Amazonas (Sema) e Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam).
A Amazônia Real procurou esses órgãos para saber quais medidas foram ou estão sendo tomadas, mas apenas o Ibama retornou. O instituto afirma que recebeu a denúncia e monitora o caso desde a Operação Controle Remoto, onde realizou embargo em uma área de 2.500 hectares. “Além disso, o Ibama planeja operações específicas na região. No entanto, devido às questões logísticas e ao grande número de pessoal envolvido, o Instituto se organiza para responder à denúncia assim que possível.É importante ressaltar que a competência primária para a atuação nesse caso pertence ao órgão estadual de meio ambiente do Amazonas (Ipaam)”, diz resposta oficial.
A última fronteira
O sul do Amazonas é considerado a última fronteira do desmatamento, e os conflitos só tendem a aumentar nos próximos meses. “Está chegando [a pressão] porque a gente está no meio dos recordes de desmatamento. A ameaça está dentro do nosso território. A gente fica apreensivo, preocupado, com medo de perder aquilo que a gente já tinha como tradicional, nosso peixe, nossa nossa caça para se alimentar tradicionalmente, ter a floresta, esses castanhais nativos, então tudo isso a gente está perdendo”, desabafa Marilurdes da Silva ao denunciar a insegurança que vive.
O desmatamento no rio Manicoré não é uma ação criminosa isolada, mas parte de um sistema de destruição em curso na Amazônia. Além da área da CDRU, a Terra Indígena Rio Manicoré, do povo Mura, as populações do rio Marmelo, as florestas nacionais e reservas no entorno, todas compõem um conjunto de áreas ameaçadas. O Distrito 180, conhecido por perder o controle sobre o desmatamento, também fica na região.
“Infelizmente é muito difícil de identificar e responsabilizar a pessoa ou as pessoas que estão promovendo esse desmatamento”, explica Rômulo Batista, porta-voz do Greenpeace. A entidade ambientalista tem acompanhado de perto a situação de vulnerabilidade do rio Manicoré. Para Batista, a velocidade do corte florestal é um indicativo do padrão de pessoas e empresas envolvidas. “Muito dinheiro está sendo gasto. Em média na Amazônia, o custo para desmatar 1 hectare de floresta intacta é entre 2 mil e 3 mil reais e somente nos últimos dia foram mais de 200 hectares derrubados.”
Até 4 de abril, 208 hectares já haviam sido desmatados em 19 dias, o equivalente a quase 11 hectares por dia. E o desmatamento não vai cessar, enquanto ações urgentes do parte do poder público não forem adotadas. “O pior cenário é que em menos de dois meses teremos um desmatamento adicional de mais de 1.500 hectares, fora a sensação de impunidade. Outros invasores podem se sentir incentivados a fazer o mesmo ou até ameaçar as comunidades e seus modos de vida tradicional”, ressalta o porta-voz do Greenpeace.
Um exemplo da demora de resposta do poder público diante do avanço do desmatamento no rio Manicoré é o tempo que levou para o desmatamento de 2022 ser multado e embargado. A autuação e embargo ocorreu somente em abril de 2023, e consta os nomes de Izaquel Damasio e Marli de Fátima de Oliveira Bevilaqua.
“Acho que é uma tropa de elite, tem umas madeireiras aqui no município de Manicoré”, diz Maria Cleia, extremamente ameaçada e sem apoios governamentais. Ela não deixa de citar que as balsas que transportam homens armados e equipamentos para o corte da floresta ficam estacionadas nos portos das madeireiras da região. “É tanta gente nisso, porque são madeireiros envolvidos, gente de Porto Velho, de todo canto, entendeu? É muito muito difícil para a gente falar disso.”
Derrubada de castanhais
Nas cabeceiras do rio Manicoré, o desmatamento apaga a ancestralidade das populações extrativistas. A devastação de quase 3 mil hectares em 2022 levou ao chão inúmeros castanhais. E o que sobrou está vindo ao chão agora em 2024. As árvores frutíferas, incluindo os açaís, e plantas medicinais como as copaíbas se estendem por todo o território e revelam o cuidado e cultivo histórico de quem habita a floresta neste rio desde longa data.
Grande parte das comunidades, além das próximas de Miriti e Tracajá, se vê obrigada a abandonar seus castanhais por se depararem com ameaças de grileiros que insistem em tomar o território, mesmo com a existência e concessão da CDRU. “Eles [criminosos] realmente já proibiram o pessoal de vir tirar castanha, agora tem um outro pessoal que falaram para que eles saíssem de lá [comunidade Barro Alto], para eles não fazerem mais a roça lá”, revela Marilurdes da Silva.
No Estirão, comunidade que a Amazônia Real visitou em 2022 para presenciar o trabalho extrativista, a área da coleta de castanha teve de ser fechada. Os grileiros dizem ter comprado a terra e já a demarcaram, expulsando os extrativistas do rio Manicoré. O acesso à comunidade tem se dado por uma estrada que existe entre o Estirão e a comunidade Barro Alto, a mais próxima da cidade de Manicoré. Extrativistas foram “aconselhados” a não entrarem mais nas áreas dos castanhais, porque o terreno havia sido “comprado” por eles. “Agora saber de quem que eles compraram não se sabe”, afirma Marilurdes da Silva.
“A gente corre um risco muito grande de perder toda essa riqueza, essa biodiversidade, e ainda maior de perder nossas vidas”, alerta Maria Cleia a respeito da vulnerabilidade que toda a equipe à frente do território enfrenta. “Para mim mesmo eles [ameaçadores] não vão falar né, mas para meus filhos vejo que as pessoas falam, que se gente denunciar eles vão tirar a vida da gente, tudo”, relata.
Diante da falta de fiscalizações efetivas por autoridade ou órgão público, estadual ou federal, a solução até poderia ser deixar a proteção territorial nas mãos da equipe da Caarim. O problema é que essa não é uma solução. Sem uma segurança jurídica ou policial, os extrativistas do rio Manicoré afirmam sentir medo. ”Esse desmatamento vem ser uma ameaça para o território e para nós que coordenamos o território. A gente já não sai mais como antes, não anda com qualquer pessoa, nem pega qualquer moto, qualquer carro”, complementa a liderança Marilurdes.
A liberação do Ipaam
A vida dos grileiros vem sendo facilitada com um empurrão do governo estadual. Eles ancoram a prática do desmatamento pela existência de licença ambiental emitida pelo órgão do Estado e de estarem “dentro da lei”. Em 2022, à Amazônia Real, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) confessou não ter suspendido nenhum tipo de licença ambiental na região. Na época, o órgão informou que a Secretaria de Estado das Cidades e Territórios (Sect), que emitiu a CDRU, e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), não notificaram ao órgão sobre o documento, nem informaram os limites da área e que as secretarias não solicitaram “qualquer providência quanto aos licenciamentos em andamento ou os já concedidos”. Na prática, deixou a CDRU que garantiria o sustento dos extrativistas do rio Manicoré sem uma proteção jurídica.
Ao ser procurado novamente duas vezes por e-mail para esclarecer sobre o atual desmatamento na região, o Ipaam não respondeu à Amazônia Real. As perguntas encaminhadas questionam se o órgão já foi notificado sobre a existência da CDRU, a respeito da quantidade de licenças emitidas na área e se as mesmas foram canceladas, suspensas ou continuam sendo emitidas. Além disso, a reportagem questiona as medidas tomadas pelo órgão para proteção do território.
O Ipaam, apesar de ser um órgão que deveria proteger e fiscalizar o território do estado, está alinhado às políticas de Wilson Lima (União Brasil), atual governador do Amazonas. Recentemente, o órgão concedeu licença para exploração de Potássio em Autazes, dentro da Terra Indígena Soares Urucurituba, reivindicada pelo povo Mura.
Em 2022, o próprio Wilson Lima não escondeu que seu lado era contrário ao das populações extrativistas do rio Manicoré, quando afirmou que iria “lutar contra” quem quisesse criar uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) na região. No mesmo ano, Lima acabou assinando a CDRU. “Ele [ Wilson Lima] assinou né, mas ele não assinou porque ia proteger o território, ele nem pensou nisso. Só assinou porque estavam pressionado ele”, afirma Marilurdes da Silva.
Maria Cleia ressalta as contradições do governo do Estado perante a presença do governo federal. “Eu não vejo nenhum posicionamento do governo do Estado favorável ao extrativismo. Quando está na frente do presidente Lula, ele [Wilson Lima] fala uma coisa, mas quando ele sai de lá ele fala outra coisa”, diz.
A Amazônia Real procurou a Secretaria de Comunicação do governador para saber seu atual posicionamento sobre o avanço do desmatamento e criação de RDS rio Manicoré, mas não obteve nenhuma resposta. A prefeitura de Manicoré, junto à sua secretaria de Meio Ambiente, também foi procurada para saber o posicionamento do prefeito e quais medidas a secretaria tem tomado para combater o crime na região, porém não deu retorno.
CDRU sem Estado
Há 18 anos, o sonho de 4 mil pessoas de 18 comunidades é a criação de uma RDS no rio Manicoré. Em 2021, após descobrirem que o processo de solicitação de uma RDS havia sido arquivado pelo governo do Amazonas sem notificação alguma, os extrativistas voltaram a pressionar o Estado por alguma política de proteção ao território. Foi quando, em 2022, o governo concedeu a CDRU, uma área de 392.239 hectares.
A CDRU garante o uso da terra e permite que os moradores tenham autonomia para acessar políticas públicas, assim como proíbe que órgãos ambientais como o Ipaam concedam licenças para pessoas que não habitam a área. Desde 2022, a Caarim atua na gestão desse território, mas sem apoio governamental. Os extrativistas do rio Manicoré já tiveram conquistas como lanchas, computadores, flutuantes, desenvolvimento dos projetos e cursos profissionalizantes.
Para Marilurdes da Silva, os governos estão muito distantes na tarefa de promover uma fiscalização no território, obrigando os extrativistas a se defenderem por conta própria. “Ele [governo de Wilson Lima] deu, mas não está movendo nem um dedo para defender e está deixando nas nossas mãos”, diz ela.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor