A região é a dos Campos Gerais, no segundo planalto paranaense. A notícia, que atraiu a imprensa regional recentemente, foi sobre a presença inusitada de um jovem exemplar de lobo-guará, encontrado dentro de uma garagem, nos arredores da cidade de Ponta Grossa. A narrativa, em casos assim, é sempre muito assemelhada.
Como espécie de visualização já muito rara, o que as reportagens trazem é a uma mensagem de curiosidade, um evento que gera atração do público pelo seu aspecto pitoresco. Salvo exceções muito pontuais, esses relatos não aportam qualquer tipo de menção à praticamente extinção dos Campos Naturais da região, assim como dos capões de Floresta com Araucária, que foram substituídos por plantações de soja e de pinus, que hoje dominam quase que completamente a paisagem do planalto paranaense. A resposta à presença incomum de um animal selvagem, arisco e independente, numa garagem de subúrbio, deveria ser, justamente, da constatação de sua impossibilidade de subsistência, sujeitando-se, mesmo que à revelia de seu instinto, a uma aproximação desesperada a ambientes com presença humana, em busca de alimento.
O exemplo acima demonstra que, no que se refere a questões de interpretar os sinais da natureza, existe ainda uma dificuldade bastante presente em nossa sociedade no sentido de gerar um entendimento mais próximo da realidade. A falta de percepção do papel das áreas naturais para o bem estar e para a manutenção de nossas atividades econômicas explica como temos aceitado, de forma bastante permissiva, a degradação continuada do patrimônio natural. A destruição de áreas naturais ocorre de forma silenciosa, no dia a dia, sem alardes nem consequências de maior relevância no curto prazo. E vem sendo amparada por políticas públicas afinadas com o interesse de atividades que foram estabelecidas de forma a antagonizar com a presença de remanescentes naturais, vistos como áreas improdutivas e que devem dar lugar a práticas de desenvolvimento convencionais e que geram riquezas.
Diferente da ausência crônica de sensibilidade que não reconhece os gigantescos prejuízos sociais e econômicos decorrentes da perda da biodiversidade e indisponibilidade dos serviços ecossistêmicos, o advento das mudanças climáticas, muito mais recente, já apresenta outro tipo de percepção. Temos demonstrado temor aliado a um sentimento crescente de fragilidade. Crescem cada vez mais dúvidas sobre o nosso presente e já não mais, apenas, sobre o nosso futuro. Mesmo sem haver um movimento que efetivamente seja capaz de fazer um enfrentamento suficiente para mudar o curso do aquecimento global, é bastante marcante o que eventos climáticos extremos são capazes de proporcionar para melhorar o grau de percepção da sociedade sobre os efeitos do desequilíbrio da natureza.
Se de um lado a perda do patrimônio natural representa um processo de degradação silencioso e que, em geral, gera consequências negativas de forma continuada e progressiva, ao longo do tempo, não sendo explícita a relação causa e efeito para a maioria de nós, os eventos climáticos extremos, que são em muito potencializados pela degradação da natureza, nos afetam de forma imediata a muito aguda, facilitando um sentimento que começa a ser melhor sedimentado, de que estamos vivendo um novo normal, com tendência de agravamento bastante evidenciadas, em especial pelos seguidos alertas proporcionados pela ciência, mesmo que políticos em geral pareçam estar surdos.
Talvez o fenômeno das mudanças climáticas, pela sua condição de gerar alertas com muito mais efetividade, proporcione espaço para que também possamos reconhecer que a degradação continuada de áreas naturais e de sua biodiversidade integra um processo complexo de perda de resiliência, o que nos coloca num contexto de emergência frente aos desequilíbrios sinérgicos que estamos proporcionando na natureza.
Até aqui, consciente ou não, nossa postura frente às ameaças decorrentes da degradação e desequilíbrios crescentes da natureza é de uma sistemática demonstração de passividade. Temos incorporado os prejuízos sociais e econômicos de envergadura extremamente significativa como algo que não deve ou não pode ser enfrentado. Interpretamos os acidentes causados pela natureza como mazelas e azares que acabam sendo assimilados como contingências não administráveis. Sofremos os baques, reagimos pontualmente no curto prazo e, em seguida, seguimos em frente sem a geração de mudanças que possam reverter quadros que seguem se repetindo, com cada vez mais frequência e intensidade.
Em última instância, não se percebe como algo de real interesse coletivo a premissa emergencial de rever, de forma determinada e contundente, nossas práticas, reavaliando padrões de desenvolvimento e reconhecendo o papel do patrimônio natural para proporcionar resiliência aos eventos ambientais extremos que nos geram prejuízos incalculáveis e preocupantes cenários de inviabilidade de nossa própria sobrevivência.
O lobo-guará está no limiar da extinção no segundo planalto paranaense, uma vez que as áreas naturais para manter uma população viável deixam de existir e que o diagnóstico de sua demonstração de desespero ao procurar alimento em áreas urbanizadas, remete a um simples relato superficial de mais um fato inusitado para alimentar matérias jornalísticas medíocres. Paralelamente, somos mais de oito bilhões de seres humanos que seguem destruindo os espaços existentes para que o equilíbrio da natureza nos proporcione condições de vida adequadas. E, mesmo com todas as evidências irrefutáveis que impõem mudanças de rumo, ainda estamos mantendo a degradação da natureza e o desequilíbrio do clima como contingências a serem assimiladas pelo que, equivocadamente, temos chamado de desenvolvimento.
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