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Esta é a nossa Amazônia

Esta é a nossa Amazônia
Ver no Amazônia Real


Uma nova e vasta onda de interesse quebra no topo do Primeiro Mundo em direção à Amazônia. Ocorre em momento histórico da mais profunda mudança tecnológica, científica e econômica desde o impacto do primeiro choque do petróleo, meio século atrás, que atraiu a região para o campo gravitacional das nações hegemônicas, fornecendo-lhe volumes crescentes de produtos eletrointensivos, principalmente minérios e seus derivados.

Novas mercadorias altamente demandadoras de energia estão na prateleira das nações centrais, desde que tenham outra matriz energética. A presidente da Comissão Europeia, que iniciou pelo Brasil um circuito latino-americano, disse que os países europeus pretendem importar 10 milhões de toneladas de hidrogênio renovável, todos os anos e que é possível construir um mercado transatlântico de hidrogênio limpo, no qual o Brasil, em particular a Amazônia, pode ter destacada participação. Mas apenas seguindo o roteiro do s compradores, como sempre foi, na condição de colônia, acumulando déficits nas relações de troca?

Diante da questão, decidi reproduzir, em capítulos, palestra que proferi quase 20 anos atrás, no Encontro Internacional de Pesquisa em Educação na Amazônia, na mesa-redonda de encerramento, sob o tema “Competência e Comunicação Intercultural”, em agosto de 2004. O texto foi transcrito de gravação. A palestra foi de improviso.
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Acho que entre educadores a primeira pergunta (na verdade são duas) que se deve fazer é que tipo de Amazônia nós entendemos como tal. E que tipo de Amazônia nós ensinamos. Neste momento, em vários lugares do mundo, certamente hoje também, há pessoas discutindo sobre a Amazônia. Segundo a Unesco, a Amazônia é o segundo tema do mundo, hoje, em relação ao planeta Terra. O primeiro tema é a possibilidade de que a Terra esteja sofrendo crescente e acelerado processo de aquecimento. O segundo tema é o papel da Amazônia nas transformações que nós estamos percebendo e sentindo quase que cotidianamente na Terra.

Duas semanas atrás, tivemos duas respostas a essas perguntas angustiantes. Em Brasília, estiveram reunidos 85 cientistas de nove países, que participam do maior programa cientifico em andamento no mundo, que é o programa LBA sobre a biosfera, sobre a atmosfera da Amazônia. São graves as conclusões destes cientistas, reunidos no conselho cientifico do programa, realizado no Brasil, com 40% de cientistas brasileiros e 60% de cientistas de outros países. As conclusões mostram que nós estamos destruindo o bem mais nobre da Amazônia, que é a sua floresta. Estamos destruindo como nenhum povo o fez na história da humanidade.

Doutrina de segurança nacional em pleno vigor

O comandante do exército brasileiro, também na mesma semana, disse que a doutrina de segurança nacional, que continua sendo a fonte do direito entre aspas na Amazônia, mesmo a gente estando em uma democracia formal, plena, desde 1985, a doutrina de segurança nacional. Ela foi concebida para punir os inimigos do regime e, ao mesmo tempo, para servir aos parceiros do regime durante os 21 anos da ditadura militar. Mantida na democracia, essa doutrina de segurança nacional agora se aplica na Amazônia com duas orientações.

A primeira orientação é no sentido de que a Amazônia é dos brasileiros e que o exército e as forças armadas em geral estarão atentos, não só monitorando e fiscalizando a Amazônia, como reprimindo qualquer tentativa de internacionalização da região.

A segunda parte da doutrina de segurança nacional renovada na Amazônia é em defesa da biodiversidade. Ninguém tem mais dúvida, hoje, que esse é o grande patrimônio da Amazônia. Consiste no fato de que aqui estão 20% dos recursos biológicos do planeta. Nós e vocês, como educadores, como cidadãos da Amazônia, às vezes somos tentados a endossar, a consagrar um tipo de visão, que consolida o nosso desconhecimento sobre a Amazônia, o nosso desconhecimento da região na qual nós vivemos e trabalhamos.

É um desconhecimento brutal, é quase uma ignorância absoluta. No entanto, apesar dessa ignorância quase absoluta sobre a Amazônia, nós nos arvoramos a ser os donos do saber na Amazônia. Às vezes todos os dias, nós transmitimos este saber aos alunos, à sociedade, à opinião pública. Ou seja: nós estamos consagrando a ignorância sobre a Amazônia.

É esse estado de inconsciência – e ao mesmo tempo de certeza – que responde por todas as incógnitas, por todas as angustias, que são partilhadas no mundo inteiro sobre a nossa região. Em parte, esta ignorância resulta do fato de que ao mesmo tempo que ignoramos, nós estamos solenemente desinteressados em saber o que aconteceu em grande parte da história da Amazônia.

Nós comemoramos os 500 anos da descoberta, no ano 2000, achando que o ponto zero da história da Amazônia foi a chegada do colonizador português. Não só o colonizador português, aliás, porque o espanhol chegou antes da “descoberta”. Vicente Pinzón esteve por aqui um ano antes que o Brasil passasse a ser reconhecido na cartografia colonial metropolitana portuguesa. E quando os espanhóis vieram para cá, eles se estabeleceram aqui com uma certeza absoluta: aqui era a Amazônia, a terra das lendárias guerreiras, que eles viram cavalgando nas selvas, trançadas de cipós, sobre cavalos, e que extirpavam um dos seios para poder flechar os seus inimigos.

Todos, portanto, eram helenos, a Amazônia era habitada por índios gregos. A Amazônia que os espanhóis viram era aqueles que eles queriam ver. A ideia de Amazônia se antecipava à realidade da Amazônia – assim era e assim continua a ser.

No entanto, antes que Pinzón ou Pedro Teixeira estabelecessem o domínio colonial europeu na Amazônia, nós já tínhamos milhares de anos de presença humana na região. Até o momento em que um tipo de saber permitiu que o europeu decidisse que a história começava com a sua presença na região, nós achávamos que tudo que havia antes de Pinzón e Pedro Teixeira era zero, era nada.

Hoje, o mundo inteiro está atrás deste saber, um saber que fez com que houvesse certa harmonia entre esse habitante primitivo e o patrimônio mais valioso da região, que é a natureza. O homem passou a fazer parte da natureza, um elemento integrado, a ponto tal que no início do século XVII, quando aqui atuou e pregou um dos mais brilhantes representantes da dominação europeia, o padre Antonio Vieira, calculava-se que havia dois milhões de índios. E o padre Vieira, num de seus sermões, dizia que se uma flecha fosse atirada para o alto, em determinada área da Amazônia, ela não cairia no chão, mas na cabeça de algum índio, tal a quantidade de índios que havia. Evidentemente que isto é uma metáfora, como diria o nosso presidente, mas ela tem um sentido pedagógico, dá uma ideia da realidade.

O homem se separa da natureza e a agride

A primeira coisa que nós fizemos foi destruir fisicamente este cidadão. Eu sou de uma região que tinha a maior civilização indígena, civilização localizada numa mesopotâmia de rios, o Tapajós e o Amazonas, no centro da Amazônia, uma civilização mais desenvolvida, que não tinha nada a ver com o litoral. Quando os missionários jesuítas fundaram uma colônia, no local havia uma espécie de civilização, de 20 mil índios, que desapareceram inteiramente no século XVIII.

Então nós massacramos os habitantes primitivos e hoje a etnobiologia tenta recuperar os conhecimentos que eles produziram. Devíamos nos perguntar por que os maiores linguistas das línguas indígenas são estrangeiros.

Aí surgem as teorias conspirativas, a doutrina de segurança nacional dizendo: é porque os estrangeiros querem evangelizar, domesticar, conquistar os nossos índios. Mas muitas vezes eles estão estudando línguas mortas, que já foram vivas, como as de hoje, que serão mortas amanhã, daqui a pouco, tal a forma massacrante do nosso relacionamento com as populações indígenas.

Por que o estudo das línguas indígenas? Porque a língua é a última ligação com o saber daquela população, que vai desaparecer ou já desapareceu. É por isso que, no Primeiro Mundo, grandes centros são organizados pelas universidades, há essa busca, rápida, acelerada, de recuperar, manter ou salvar o conhecimento milenar, que nós desprezamos. Que o colonizador expanda a sua presença destruindo a sua população nativa, essa é a regra do colonialismo em todas as regiões coloniais, em todas as fronteiras. Foi assim que aconteceu, massacrando as populações indígenas, inclusive – e sobretudo – nos Estados Unidos.

Mas nós estamos inovando, de certa forma, assustando o mundo, porque se, finalmente, quando a população indígena já é 10% do que era no período quinhentista, se finalmente nós estamos permitindo que as populações indígenas cresçam, voltando a ter índices de fecundidade que lhes garanta a sobrevivência física, nós estamos cada vez mais destruindo aquele patrimônio, que hoje faz com que o mundo inteiro, segundo a Unesco, se interesse pela Amazônia, que é a sua riqueza de vida, de informação biológica.

Se nós seguirmos o processo pedagógico de encarar a verdade com coragem, se nós formos indagar o que é a essência da Amazônia, o que faz a Amazônia ser a Amazônia, independentemente da palavra europeia, da mitologia grega, que foi imposta na região, como defini-la?

Três coisas definem a Amazônia, e são todas plenamente visíveis. Primeiro, o sol. Nós todos aqui temos o sol permanente. Em segundo lugar, a água: nós temos 12% da água superficial doce do planeta. Em terceiro, a floresta: nós temos 1/3 das florestas tropicais, que é 1/3 porque em outros países essas florestas já foram quase todas destruídas, exceto em alguns lugares, na Ásia, na África, na América. É essa floresta que acumula a maior quantidade e a maior diversidade de vida animal e vegetal. Então essa é a matriz, esse é o DNA da Amazônia, uma combinação rara de floresta, sol e água.

Evidente que essa é uma realidade física. Nós temos 3,5 milhões de quilômetros quadrados de floresta, nós temos o rio Amazonas, o maior e mais volumoso do planeta, e a bacia amazônica, que é a maior, mas não é a única: tem a bacia do Tocantins independentemente. No período das cheias, o rio Amazonas descarrega 230 milhões de litros de água por segundo no oceano. Isso significa 10 vezes o que a bacia do Mississipi-Missouri descarrega nos Estados Unidos. Então esta é uma realidade física impossível de ignorar. No entanto, daí a chegar a uma compreensão da realidade da Amazônia há uma distância enorme.

A fábrica de boi da Volkswagen, a “Boikswagen”

Uma historinha talvez ajude a situar o problema. Em 1976, o satélite americano Skylab fotografou o maior incêndio da história da humanidade até então. Esse incêndio, por ironia, para com os nossos visitantes [alemães], estava sendo provocada por uma das maiores empresas alemãs, a Volkswagen.

Desde a metade da década de 1930 a Volkswagen revolucionou a indústria do automóvel com um carro que dispensava a água no radiador. Desde o início a Volkswagen tinha se limitado à sua especialidade, que era fabricar veículos automotores. Quando ela veio para a Amazônia, com o dinheiro da poupança nacional, dos incentivos fiscais administrados pela Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), 75% do capital do projeto saiu do bolso brasileiro, através da renúncia fiscal do governo federal. Quando veio para cá, ela veio não para montar uma fábrica de fusca, ela veio para montar uma fábrica de gado. Pela primeira vez a Volkswagen deixava de fabricar veículos automotores. Por que a Volkswagen, ao invés de fabricar carros, que é a sua especialidade reconhecida no mundo inteiro, fabricou boi na Amazônia?

Porque boi era mais fácil, porque o dinheiro de incentivos fiscais significava que se nada desse certo, no máximo, na pior das hipóteses, a perda era de 25% do investimento, pois 75% eram dinheiro do povo, renúncia do governo à receita de imposto, que é para beneficiar o povo em geral. Então, a Volkswagen fez o que todas as pessoas faziam naquela época, que era o projeto agropecuário, que permitia um investimento mais rápido, embora às vezes utilizando o trabalho escravo. Mesmo que significasse destruir o bem mais nobre – a floresta – para substituí-lo por um bem de valor muito menor, como no caso o gado e a pastagem.

Quando, em 1976, a Volkswagen começou a fazer o trabalho na Fazenda Vale do Rio Cristalino, em Santana do Araguaia, no Pará, o satélite detectou uma queimada de 9 mil hectares, que gerou um escândalo, uma discussão enorme na época, mas o que fica é o seguinte: com essa imagem, captadas pelo satélite Skylab, da Nasa (a agência espacial americana) e transmitida para o órgão brasileiro que começava a fazer monitoramento de satélite, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, em São José dos Campos, São Paulo.

O impacto foi tal que levou o Brasil a iniciar o primeiro levantamento de desmatamento com imagens de satélite, uma ferramenta nova, sofisticada, e se descobriu que naquele ano a área alterada na Amazônia representava menos de 1% da extensão da região.

A Amazônia ainda era um espaço aberto, um livro em branco. Hoje a área alterada da Amazônia é de quase 15%, nós desmatamos 700 mil quilômetros, ou seja, nós já desmatamos o equivalente a duas vezes e meia o Estado mais rico do país, São Paulo, que acumula 30% do PIB nacional.

Ricos mais ricos. Pobres mais pobres

Um dado que é um dado chocante em relação, por exemplo, ao que o professor Asit [palestrante anterior] falou sobre a Suíça, que investe 6 mil dólares em cada universitário por ano, enquanto nós investimos 800 dólares por ano nos nossos universitários, é que, embora proporcionalmente a Suíça tenha mais milionários do que o Brasil, cada milionário brasileiro ganha o dobro do que ganha o milionário suíço, segundo um estudo feito por uma agência de consultoria na Europa, publicado recentemente.

Então, cada rico brasileiro é duas vezes mais rico do que o rico suíço, a Suíça tendo uma renda per capita algumas vezes maior do que a renda per capita brasileira. Ou seja: os ricos se apropriam de mais riqueza do Brasil do que os ricos da Suíça, um dado que explica porque nós, o 14º PIB do mundo, só perdemos para sete países africanos em concentração de renda. Por que nós, que temos o patrimônio mais nobre do mundo, hoje, que é a biodiversidade, sobre a qual todos os centros universitários de pesquisa do mundo inteiro se lançam, por que nós a destruímos? Por que nos destruímos a floresta? Nós e nossos parceiros, nacionais e estrangeiros?

A Amazônia é um desafio profundo, porque ela não pode ser compreendida apenas com os olhos, com o paladar, com o olfato. A Amazônia exige uma enorme compreensão intelectual. Ela coloca de cabeça para baixo, ela inverte os parâmetros do nosso conhecimento.

Uns anos atrás eu estava fazendo uma campanha contra a hidrelétrica de Balbina, lá no Amazonas, porque eu achava um absurdo represar o rio Uatumâ para fazer uma hidrelétrica pequena e que ia produzir vinte vezes menos do que Tucuruí, com uma área de inundação equivalente à de Tucuruí. O pessoal da Eletronorte, que estava construindo a barragem, um dia me levou de helicóptero para sobrevoar toda a área do futuro reservatório da hidrelétrica, que fica a 180 quilômetros de Manaus.
Um engenheiro PhD, que estava comigo no helicóptero, dizia: “mas olha, essa terra aqui é uma terra pobre, sabe qual é o tipo de solo? Latossolo amarelo, vagabundo. Por que você está defendendo essa área?” Eu disse: porque em cima desse latossolo amarelo vagabundo tem arvore de 40, 50 metros.

Eu não estava pensando no latossolo amarelo, eu estava pensando na árvore de 40, 50 metros, um desafio que só agora compreendemos. Ela se desenvolveu em cima de uma terra pobre e hoje essa terra é apenas a sustentação física, mecânica, da árvore, porque a arvore não sabe levitar. Se soubesse, dispensaria o solo. O PhD não vê, porque ele não pode ver, ele é PhD não para ver a Amazônia, mas para usá-la. Se nós deixarmos estes PhD operando, eles vão destruir tudo com as mais legitimas, com as mais bem fundamentadas razões da destruição.


A foto deste artigo mostra área de desmatamento na gleba Nova Olinda em Santarém, no Pará (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real )


Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.

valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.

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