Você já imaginou subir em uma prancha de madeira e deslizar sobre a água enquanto uma onda se quebra? Essa é a essência do surfe, um dos esportes náuticos mais populares do mundo. Embora suas origens exatas ainda sejam alvo de debate, há consenso que ele surgiu entre povos do Pacífico. Há relatos de que os polinésios, que mais tarde colonizaram o Havaí, foram os pioneiros; outros apontam para os antigos peruanos, que já se divertiam de pé em canoas de junco muito antes disso. Independentemente de sua origem, o surfe cativa multidões por onde passa e estreou como modalidade olímpica em 2021 durante os jogos de Tóquio.
Os esportes na água têm uma história milenar, que remonta às primeiras necessidades humanas de nadar e mergulhar para a sobrevivência. Segundo o pesquisador André Demaison, com o desenvolvimento de embarcações na transição da pré-história para a antiguidade, surgiu um outro segmento de esporte aquático, sendo aqueles que utilizam equipamentos para a flutuação como barcos, pranchas e derivados. Aqui, nós iremos focar em qualquer esporte praticado na água: surfe, vela, canoagem, windsurf, bodyboard, mergulho, apneia, natação, kitesurf, stand up paddle, remo, maratona aquática, esqui aquático e pesca esportiva são alguns dos mais famosos no mundo.
Engana-se quem pensa que realizar uma prática esportiva se resume ao aprimoramento de uma atividade visando benefícios para a saúde e para o corpo, os esportes são uma importante ferramenta de interação com o ambiente, mesmo em categorias individuais. Antes de ir surfar, é preciso conferir as condições de vento e de maré da praia para garantir que naquele dia as ondas vão estar adequadas. O mesmo se aplica à natação em mar aberto e ao kitesurf. Essas simples pesquisas promovem conhecimentos sobre aspectos fundamentais do ecossistema marinho.
O contato social entre praticantes gera conversas cotidianas como: “O mar está agitado hoje!”, “Você percebeu que depois da chuva de ontem a praia amanheceu com mais lixo?”, “Acabei de ver uma tartaruga enorme!”, “Por que estamos na temporada de águas-vivas?” ou “Aqui sempre tem esses tubarões, mas eles são inofensivos!”. E é justamente aí, em uma conversa casual, em um dia comum, que a cultura oceânica é transmitida.
No final, o oceano deixa de ser para nós uma caixa d’água infinita e se torna um universo repleto de curiosidades, cuidados atentos e novas percepções.
Estamos enfrentando um cenário crítico de mudanças climáticas, com catástrofes ambientais ocorrendo de maneira mais intensa e em um ritmo mais acelerado do que a ciência previu. Por isso, precisamos mudar a forma como interagimos com a natureza para mitigar esses impactos ou, ao menos, desacelerá-los. Essa mudança só pode ser efetiva se for coletiva e global, e por isso nós contamos com a contribuição dos esportes aquáticos.
Os esportes aquáticos, ao conectarem os praticantes diretamente com os ambientes marinhos, podem ser uma ferramenta poderosa para essa conscientização, ampliando a rede de pessoas engajadas em promover a sustentabilidade do oceano. Por outro lado, os esportes na água nem sempre são acessíveis financeiramente para quem frequenta a praia, podendo evidenciar desigualdades sociais já existentes nestes ambientes. Modalidades que utilizam equipamentos com custos de aquisição e manutenção elevados, como embarcações e velas, não são de fácil acesso a famílias que dependem de um salário mínimo de R$ 1.412,00.
Reconhecendo a busca crescente pelo esporte e a necessidade de democratizá-lo, foi criado o projeto Kite Surf Integra. Contemplado pela Lei de Incentivo ao Esporte do Estado do Ceará (LIE), o projeto é financiado a partir do patrocínio e doação de contribuintes do ICMS. Pela primeira vez, o projeto foi incorporado como disciplina escolar para os alunos da praia do Cumbuco, em Caucaia, uma área conhecida por atrair muitos kitesurfistas. Através dessa disciplina, adolescentes aprendem sobre a prática do kitesurf, seus movimentos e técnicas, além de explorar abordagens sustentáveis relacionadas à atividade.
Um pouco mais a oeste do litoral cearense, na praia do Preá, importante polo do kitesurf, o projeto Seci no Mar oferece aulas gratuitas de kitesurf para jovens caiçaras desde 2023. Em parceria com uma escola pública local, 50 jovens já concluíram as primeiras turmas, que incluem aulas teóricas e práticas, além de capacitação para o mercado de trabalho. Iniciativas como o Kite Surf Integra e o Seci no Mar são fundamentais para oferecer oportunidades a jovens em situação de vulnerabilidade social no estado, além de incentivar o surgimento de novos talentos, como Carlos Mário Bebê, natural de uma vila de pescadores e pentacampeão mundial, e Estefânia Rosa, natural do Cumbuco, campeã mundial e tetracampeã brasileira.
Outro aspecto que exige maior atenção, não apenas para o kitesurf, mas para os esportes na água em geral, é o conflito de atividades no mar, especialmente em áreas costeiras, que já são extremamente disputadas. Segundo a Pesquisa de Sondagem Empresarial do Ministério do Turismo, em 2021, 46,6% dos viajantes em potencial buscaram destinos de Sol e Mar para suas viagens. Além do turismo, a cultura das comunidades pesqueiras é uma presença significativa ao longo da costa brasileira.No entanto, essa coexistência nem sempre é harmoniosa. O “Mapa de Conflitos – Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil”, da Fiocruz, destaca uma denúncia da comunidade de Beberibe, no Ceará, que relata a perda de acesso às praias devido à expansão de grandes empreendimentos turísticos, muitos deles ligados a escolas de kitesurf de origem estrangeira. Os conflitos de acesso se repetem na praia da Pedra do Sal, Paraíba (PI), quando os pescadores relatam que a presença dos kitesurfistas atrapalham a atividade pesqueira porque o movimento da água afugenta os peixes.
Para buscar uma solução para este problema, o zoneamento costeiro é uma ferramenta essencial para a gestão, ajudando a evitar conflitos entre esportes aquáticos, pesca e turismo ao delimitar áreas específicas para cada atividade. No Ceará, a implementação da Política Estadual de Gerenciamento Costeiro (PEGC) avança nesse sentido, e idealmente deve atender às necessidades ambientais, sociais e econômicas, garantindo que pescadores, turistas e esportistas possam compartilhar os espaços de maneira justa. Contudo, o sucesso desse processo depende de 1) o respeito a estas diretrizes e 2) a ampliação desta política para outros estados litorâneos.
Para concluirmos: os esportes aquáticos são importantes para a cultura oceânica, o desenvolvimento social e econômico onde ocorrem. Isso já sabemos. Na verdade, esse texto busca destacar uma questão recorrente nas praias: a disputa por espaço entre diferentes atividades, os potenciais danos causados por estes conflitos e a necessidade de, enquanto sociedade, lutarmos contra as desigualdades sociais para a promoção de um oceano saudável e democrático. Os esportes aquáticos podem nos ajudar nisto. E aí, vamos surfar nessa onda de mudança?
Para saber mais
Artigo de Alexandre Silve entitulado “Entre a prancha e a rede: as contradições entre a prática de Kitesurf e a pesca artesanal segundo os pescadores da Praia da Pedra do Sal (Parnaíba-PI)”.
Dissertação de Mestrado de André Damaison entitulada “Equipamentos utilizados por iatistas da classe Snipe: Implicações músculo-esqueléticas partir de uma abordagem ergonômica”. Programa de Pós-graduação de Artes da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil., 2008.
Lei de Incentivo ao Esporte no Estado do Ceará.
Política Estadual de Gerenciamento Costeiro do Ceará.
Tese de Doutorado de Manoela de Oliveira entitulada “Esportes aquáticos como experiência para a aprendizagem da sustentabilidade e colaboração com a Cultura Oceânica”. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2023.
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