O sapo Neblinaphryne imeri, descoberto em 2022. Foto: Taran Grant
Ele anunciou a própria morte. Cantava alto na boca da toca de uma aranha-caranguejeira. Então, foi capturado. Por pesquisadores.
Foi por causa do canto diferente que o sapo, batizado Neblinaphryne imeri, chamou a atenção dos cientistas que andavam em solo íngreme e lamacento, no novembro chuvoso de 2022, no alto de um pico na Serra do Imeri, divisa entre o estado do Amazonas e a Venezuela.
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“Essa foi a expedição mais difícil que eu já fiz na minha vida”, conta Miguel Trefaut Rodrigues, que tem mais de 40 anos de experiência em viagens de campo e liderou a equipe de 14 pesquisadores durante os 12 dias de acampamento no topo de uma montanha, a quase 1.900 metros de altitude.
O Pico do Imeri, que nem os indígenas Yanomami visitam por causa da dificuldade de acesso, e também porque naquela altitude não habitam presas de peso, como mamíferos grandes, só foi alcançada pela equipe de pesquisadores com o apoio do Exército Brasileiro e de seu helicóptero.
Essa foi a segunda expedição liderada por Rodrigues em colaboração entre pesquisadores e o Exército nessa região da Amazônia. A primeira expedição ocorreu em 2017 no Pico da Neblina, que fica a 80 km do Pico do Imeri. Ambas as montanhas estão em áreas protegidas: a Terra Indígena Yanomami e o Parque Nacional do Pico da Neblina.
Na expedição ao Pico da Neblina também foi coletada uma espécie de sapo nova para a ciência, que recebeu o nome de Neblinaphryne mayeri – em homenagem a Sinclair Mayer, general que ajudou na organização daquela expedição.
Após longas análises, os cientistas concluíram que os dois sapos, o do Pico da Neblina e o do Pico do Imeri, são espécies-irmãs. E essa descoberta indica que as montanhas daquela região sofreram alterações relevantes há 55 milhões de anos.
“A gente está resgatando com esses bichos um passado muito importante da história da Terra e da história aqui da América do Sul que a gente não conhecia”, diz Rodrigues.
No alto das montanhas, as condições de clima são bastante diferentes daquelas encontradas nas partes mais baixas e quentes da Amazônia. Isso determina toda uma biodiversidade adaptada àquele clima, incluindo espécies da fauna que dificilmente desceriam para a parte baixa da floresta.
Exames de DNA feitos nas duas espécies novas de sapos apontam que elas têm um ancestral comum, que viveu na Serra do Imeri há 55 milhões de anos. Naquela época, o Pico da Neblina e o Pico do Imeri estavam provavelmente conectados. Com a erosão que foi ocorrendo durante milhões de anos, águas e ventos removeram material das camadas superiores das montanhas, ajudando assim a formar as regiões baixas da floresta. Com isso, alguns topos de montanha foram ficando isolados.
Em meio às transformações, a mesma espécie de sapos foi dividida. Enquanto alguns indivíduos ficaram ilhados em uma montanha, desenvolvendo-se de determinada forma, outros indivíduos ficaram isolados em outro pico, evoluindo de forma diferente.
“Em essência, a idade de divergência nos informa o tempo de existência da barreira que separa as duas espécies. Barreiras para migração de espécies podem ser grandes rios, áreas com vegetação diferente do habitat de vida da espécie em questão e montanhas, entre outras feições”, explica o geólogo da Universidade de São Paulo, André Sawakuchi. “A idade da espécie nos dá uma ideia da idade do vale e das montanhas”.
Biólogos e geólogos têm trabalhado em conjunto para um melhor entendimento da biodiversidade e da paisagem das florestas tropicais. A geogenômica, termo elaborado pelo geólogo Paul Baker, da Universidade Duke, nos Estados Unidos, mostra como as hipóteses podem evoluir por meio da colaboração entre especialistas.
Lúcia Lohmann, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, coordena projetos na região amazônica em parceria com cientistas de outras áreas.
“Estudos holísticos, combinando informações de diferentes áreas do conhecimento como biologia, geologia e climatologia, são essenciais para que possamos entender a origem da biodiversidade e as adaptações que ocorreram ao longo de milhões de anos”, diz Lohmann.
“Entender o passado e as nossas origens é de suma importância para que possamos fazer melhores previsões para o futuro, estabelecer políticas públicas e estratégias para a conservação da biodiversidade”.
Lohmann participou da expedição à Serra do Imeri e, junto com a equipe de botânica, coletou mais de 1.200 amostras de plantas, representando aproximadamente 220 espécies – em grande parte endêmicas da região.
“Coletamos materiais de todas as famílias botânicas que encontramos, desde briófitas, samambaias, plantas carnívoras e bromélias gigantes até palmeiras, orquídeas e coníferas”, conta Lohmann. “Grande parte do material coletado representa novos registros e pelo menos uma dúzia são novas espécies para a ciência”.
Documentar a biodiversidade de regiões desconhecidas num momento em que um alto número de espécies está entrando em extinção é tarefa urgente para a ciência.
“Os materiais coletados trazem novas peças para o grande quebra-cabeça sobre a origem e evolução da biodiversidade da Amazônia”, diz Lohmann.
“Acreditamos que várias linhagens de plantas surgiram nas porções mais altas da floresta, chegando posteriormente nas regiões mais baixas. Os dados coletados nos permitirão entender a rota, conexões pretéritas com outros biomas e processos que levaram à formação da altíssima diversidade de espécies encontrada ao longo da América Latina como um todo”.
Rodrigues já caminhava aos 8 anos de idade junto com um pescador pelas montanhas do litoral de São Paulo, na região da atual Jureia. Na época, coletava borboletas, besouros e outros insetos. Hoje, na sala 102 do Instituto de Biociências da USP, fileiras de répteis e anfíbios figuram junto ao herpetólogo que já descreveu perto de 200 espécies novas.
O sapo Neblinaphryne imeri foi descoberto em 2022 e descrito como nova espécie em artigo para a revista científica Zootaxa apenas em setembro deste ano. Rodrigues explica que o mesmo grupo de cientistas que coleta os bichos nas expedições também dá aulas, orienta alunos, segue pesquisando e faz uma extensa análise de cada espécie coletada.
Diversos aspectos são observados para descrever uma espécie nova: analisar fotos e o canto do bicho em vida, estudar o corpo com lupa, efetuar medidas de todos os indivíduos coletados, determinar o sexo, extrair partículas do tecido para análise de DNA, enviar o DNA para ser sequenciado – no caso do Neblinaphryne imeri isso se deu na Coreia. Depois, segue-se com o estudo dos ossos e articulações, fazendo escaneamento do esqueleto, e só então chega o momento de descrever a nova espécie.
Ainda há espécies que vieram junto na expedição de 2017 que aguardam por ser descritas.
“Nos próximos dois a três anos devem sair vários trabalhos, para a gente encerrar pelo menos a parte da descrição das novas espécies do Pico da Neblina”.
“Nós estamos descobrindo fauna e flora novas de um Brasil completamente desconhecido. Quer dizer, estamos preenchendo um ramo da árvore da vida desconhecido e que pode ter coisas extremamente importantes”, diz Rodrigues, que já tem planos para uma próxima expedição, agendada para 2025, também com apoio do Exército, para a Serra de Tulu-Tuloi – a cerca de 200 quilômetros do Imeri, também no Amazonas.
*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Sibélia Zanon
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