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Emendas nas PLs de transição energética postergam exploração e queima de fósseis

Emendas nas PLs de transição energética postergam exploração e queima de fósseis

Os jabutis da privatização da Eletrobras, que inseriram a obrigatoriedade de leilões públicos para construção e instalação de novas e poluentes termelétricas movidas a gás natural – um combustível fóssil e de grande impacto ambiental – correm o risco de serem reeditados em nova roupagem pelo Projeto de Lei (PL) nº 5932/2023, que tramita no Senado para instituir o Marco Legal das Eólicas Offshore.

Há quase três anos, a Lei nº 14.182/2021 regulamentou a Desestatização da Eletrobras e trouxe na bagagem as conhecidas térmicas-jabutis, um montante de até 8 GW de energia gerados por termelétricas movidas a gás natural, com potencial de emissão de até 300 milhões de toneladas de CO2, segundo avaliação da Coalizão Energia Limpa, grupo brasileiro de organizações da sociedade civil comprometido com a defesa de uma transição energética socialmente justa e ambientalmente sustentável. O texto estabelece a obrigatoriedade de operação de no mínimo 70% das térmicas a gás, ou seja, elas não funcionariam apenas como baterias para emergências, mas a pleno vapor. 

Os primeiros leilões previstos fracassaram, segundo fontes ouvidas pela reportagem, porque as empresas veem como empecilho o fato de que tais térmicas precisariam ser instaladas em regiões de difícil acesso e sem infraestrutura. O consultor legislativo do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Wellington Tadeu, explica que as obras de gasodutos que o governo federal pretendia implementar para tornar estas usinas viáveis, já que não há produção local no interior do país (a lei determina regiões centro-oeste, norte e nordeste como foco) e a matéria-prima precisaria ser deslocada por tubulação desde o litoral, acabou ficando de fora do projeto, por pressão da sociedade civil que indicou os altos custos a serem bancados pelos impostos públicos. Isso, aliado ao preço-teto estipulado pela Lei da Eletrobras, considerado baixo pelo mercado, contribuiu para o pouco (ou nulo) interesse dos investidores. 

“[No jabuti da Eletrobras] elegeram-se locais sem infraestrutura, o que é um contrassenso porque significa que necessariamente você vai ter que expandir a malha de gasodutos, que é um custo que vai voltar para todos nós”, acrescenta Ricardo Baitelo, gerente de projetos do Instituto de Energia e (IEMA). 

Quem paga a conta?

A tentativa de emplacar novos jabutis vem, então, como forma de desempacar o cavalo de tróia das térmicas, o que é do interesse do setor do gás, reeditado para incluir mudanças defendidas por outros setores. Algumas edições foram feitas para torná-los mais palatáveis, como a mudança do preço-teto para aumentar artificialmente a competitividade do gás e a transferência de parte da produção das térmicas para as PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas), sendo que as térmicas a gás responderiam por 4250 MW da expansão, pouco mais de 50% dos 8 mil MW previstos na lei da Eletrobras. 

“As Pequenas Centrais Hidrelétricas, junto com biomassa, têm perdido muito terreno nos últimos dez anos, com o aumento de competitividade de eólica e solar. Então dá para ver que é um lobby da ABRAPCH [Associação Brasileira de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs)] para tentar garantir uma reserva de mercado”, explica o gerente de projetos do IEMA.

Na avaliação da Coalizão Energia Limpa, a redução da potência total a ser instalada em térmicas é positiva, mas as alterações nas regras tarifárias, que passam a ser definidas por chamada pública das distribuidoras de gás das regiões envolvidas, potencializa os custos a serem repassados para os consumidores. Além disso, Baitelo lembra que há um “lobby incessante” da Associação Brasileira de Carvão Mineral para incluir ainda mais jabutis.  

Menos comentadas, as mudanças propostas pelos jabutis nas regras tarifárias para Micro e Minigeração Distribuída – notadamente consumidores que instalam sistemas próprios residenciais de geração de energia, como as placas solares – também chamam a atenção pelo potencial de aumentar as tarifas para consumidores menos favorecidos. 

Foto: Painéis solares em residências, em Yokohama, Japão. Foto: CoCreatr/Flickr

O projeto prevê que mais consumidores do Grupo A sejam enquadrados como Grupo B. Na prática, o consultor do Idec, Wellington Tadeu, explica que estes consumidores mais favorecidos economicamente, porque possuem recursos para a instalação dos sistemas solares, deixam de pagar pelo uso da estrutura de cabeamento, enquanto os bairros mais periféricos assumem este custo. “O Idec batalha para que a conta venha detalhada. Quanto você consumiu exatamente de energia para manter suas coisas ligadas? Quanto você pagou pelo serviço de distribuição? Quanto você pagou pelo serviço de transmissão?”, destaca, acrescentando que, a menos que a residência tenha baterias instaladas, o que aumenta significativamente o custo de instalação, haverá uso de distribuição nos momentos sem incidência solar. 

“Se o custo existe, a empresa vai repassar. Não tem justiça nisso. Nós temos uma pesquisa chamada Robin Hood às Avessas, que mostra que os locais com mais pedidos de instalação de painéis solares eram os bairros ricos. Se o bairro rico está instalando muitos painéis solares, está deixando de pagar o componente tarifário, mas a dívida existe. Está indo para quem? Para quem não tem condições de instalar”, explana o consultor.

Com todas as alterações previstas pelos jabutis do PL das Eólicas Offshore, a Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) estima que a conta final, a ser paga pelo consumidor, pode ficar na casa dos 40 bilhões de reais ao ano, a partir de medidas como a prorrogação de contratação de térmicas a carvão, o fim do preço-teto para térmicas a gás nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e os subsídios para o uso de linhas de transmissão por fontes renováveis. 

Tramitação e perspectivas políticas

Em discurso, à tribuna, senador Confúcio Moura (MDB-RO), presidente da Comissão de Infraestrutura. Foto: Jane de Araújo/Agência Senado

O PL nº 5932/2023 nasceu no Senado em 2017 com o número de PLS nº 484/2017, tramitou na Câmara – foi votado em regime de urgência no apagar das luzes de 2023 – e voltou ao Senado, onde aguarda despacho. De acordo com o gerente de advocacy socioambiental do Instituto Internacional Arayara, Mateus Fernandes, a matéria deve ir às Comissões de Infraestrutura (CI) e Meio Ambiente em breve, mas é difícil prever a data. Fernandes revelou, ainda, que o senador Confúcio Moura, presidente da CI, sinalizou que concorda tecnicamente com as preocupações levantadas pelo Arayara e outras entidades, mas se abstém de se comprometer politicamente e apontou que ainda deve apresentar um pedido de audiência pública para instruir o PL na CI.

Já o Idec avalia que há uma grande chance de a apreciação do PL ser barrada por alguns meses em virtude dos impactos tarifários e o custo político que ele traria em um ano de eleições municipais. Ainda assim, as entidades estão de sobreaviso. 

Procurado pela reportagem, o Ministério de Minas e Energia (MME) não se manifestou. É esperado, segundo os especialistas em advocacy, que o ministro Alexandre Silveira despache, a qualquer momento, um pacote de três a cinco Medidas Provisórias estruturantes do setor, com potencial de regular e modernizar o setor. Wellington Tadeu avalia que o Senado pode estar no aguardo destas MPs para conhecer o conteúdo e saber como elas vão dialogar com os PLs de energia em tramitação.   

Enquanto isso, a Coalizão Energia Limpa defende a aprovação e incentivo à regulamentação dos projetos de eólica offshore na costa brasileira, “um passo importante para a diversificação da matriz elétrica brasileira, para a descarbonização do setor energético nacional e até do setor energético internacional”, segundo nota da entidade, mas defende a exclusão dos jabutis, que são, no jargão legislativo, matéria estranha ao projeto. 

Se isso acontecer, a lei da Eletrobras continuará valendo e os leilões deverão acontecer. No entanto, segundo análises, seguirão com poucas chances de viabilidade econômica. Vale lembrar, ainda, que a correta regulamentação das eólicas offshore é fundamental para evitar impactos substanciais nos ecossistemas marinhos, os quais precisam ser devidamente estudados, mapeados e mitigados. 

Combustível do Futuro com um quê de anacronismo

Na esteira das propostas de descarbonização do setor de transportes, o PL nº 528/2020 traz boas promessas para a instituição de programas de biocombustíveis, propondo um aumento a até 20% até 2030 – podendo chegar a até 25%, a partir de 2031 devido aos projetos apensados – , na mistura de biodiesel ao óleo diesel comum (hoje vigora a Lei nº 13.263/2016, que altera a Lei nº 13.033/2014 e estabelece um teto de 15%). A matéria, cujo texto-base foi aprovado em plenário na Câmara dos Deputados na última quarta-feira (13) e que segue para apreciação no Senado, é em si meritória na medida em que contribui para a redução do uso de combustíveis fósseis e consequentes emissões, avalia Mateus Fernandes, em que pese um fortalecimento do setor sucroalcooleiro monocultor – base eleitoral do deputado Jardim.

No entanto, este PL apensa o PL nº 516/2023 e embute um jabuti que está sendo pouco comentado, afirma o gerente de advocacy do Arayara: a regulamentação da Captura e Armazenamento de Carbono (CCS). De acordo com Colombo Celso Gaeta Tassinari, pesquisador do Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de Efeito Estufa e professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, a tecnologia de armazenamento geológico injeta o CO2 capturado nas fontes emissoras em rochas com características específicas de porosidade, permeabilidade e capacidade química e física de aprisionar o CO2, normalmente situadas a mais de mil metros de profundidade. Por segurança, os locais não podem estar em áreas que apresentem atividades sísmicas, bem como falhas e fraturas geológicas abertas. 

Há um protocolo rigoroso de segurança em um projeto de engenharia e geologia, que inclui ensaios de geomecânica de rochas e cálculos de pressão para que o CO2 possa ser injetado sem fraturar as rochas. “Além disso, durante a fase de injeção do CO2 é realizado monitoramento em tempo real, utilizando técnicas modernas de geofísica, geoquímica e tradicionais, que permitem que qualquer possível vazamento seja detectado. Portanto as possibilidades de riscos de vazamento são minimizadas ao máximo, mas intercorrências podem ocorrer, como em toda a obra de engenharia”, explica o pesquisador.

Ainda assim, algumas organizações ambientais atentam que os riscos existem, embora minimizados, e não compensariam o alto investimento que varia de 49 e 150 dólares por tonelada de carbono retido. Além disso, o Instituto Arayara emitiu, em novembro de 2023, uma nota alertando que o CCS ainda pode ser propulsor do mercado de fracking para extração de gás de xisto ou folhelho a grandes profundidades e servir para explorar até o fim e prorrogar a vida útil de poços de petróleo quase exauridos (o gás carbônico capturado da atmosfera é transformado em um líquido de alta pressão injetado no solo).

A inclusão do adendo ao projeto atenderia a interesses da Petrobras (cujo contrato social é alterado pelo PL) e, por isso, o governo federal tem interesse na pauta, diz Fernandes. A estatal de capital misto já vem investindo em mecanismos de captura, utilização e armazenamento de carbono (CCUS) há alguns anos e, até 2025, estimam injetar até 80 milhões de toneladas de CO2 no solo. A tecnologia, que está no radar do setor de óleo e gás há alguns anos pelo seu potencial de mitigação das emissões derivadas dos fósseis, também aparece no novo PAC e é chancelada no Plano de Transformação Ecológica do governo como integrantes do “conjunto de atividades a serem endereçadas nesta primeira fase da taxonomia”, ainda que “não como objetivo a ser perseguido”. 

“Algumas outras empresas também estão querendo explorar a tecnologia aqui no , para não precisar reduzir suas emissões, apostando na armazenagem. O problema é que o CCS (como aponta o próprio Ministério da Fazenda) é uma ferramenta que prolonga a vida de importantes fontes de emissões de carbono”, afirma Mateus Fernandes. No jargão ambientalista, pode-se dizer que a tecnologia serve aos interesses do “greenwhashing“, ou seja, mostra uma suposta boa intenção enquanto permite que as atividades de óleo e gás sejam perpetuadas.

Manifestantes protestam contra a privatização da Eletrobras na frente da B3, em junho de 2022. Crédito: Rubens Cavallari/Folhapress

A inviabilidade da tecnologia, tanto por seus riscos como custos, não é consenso, no entanto. Colombo Celso Gaeta Tassinari destaca que “as tecnologias de CCS são consideradas atualmente como a forma de  redução das emissões de gases de efeito estufa mais eficiente e a solução de abater grandes quantidades de carbono em um curto espaço de tempo”. Ainda que admita que o custo do processo é alto, salienta que a maneira de compensá-lo, como a partir dos créditos de carbono ou mesmo pelo aumento do valor agregado de produtos, como biocombustíveis, que contem com a certificação de neutralidade de carbono ou de baixa emissão. 

O pesquisador resume que a transição energética, fundamental para mitigar os efeitos das mudanças globais no clima, deverá ser gradual: haverá aumentos no investimento em energia limpa, mas também uma queda muito sutil deve ser observada no uso de petróleo nas próximas décadas, de acordo com projeções de agências internacionais como a International Energy Agency, sendo que o fóssil “deverá ir perdendo gradativamente sua  importância” em detrimento de combustíveis mais limpos para energia e usos industriais. 

“Para tornar a cadeia produtiva de matéria prima das energias chamadas limpas, com baixa emissão de carbono, a tecnologia CCS é uma solução que conseguirá impedir que grandes quantidades de CO2 atinjam a atmosfera em um curto intervalo de tempo, tornando possível para muitos países atingirem as metas estabelecidas pelo acordo de Paris para reduzir a quantidade de gases de efeito estufa no planeta Terra”, afirma Tassinari.

Avaliando o cenário nacional e as possibilidades de mitigação de emissões, no entanto, Mateus Fernandes destaca que o caminho mais realista exige manter os projetos já contratados, afinal eles já estão em andamento e trazem, de fato, algum nível de captura do carbono emitido, mas reavaliar um segundo estágio em que mais projetos são instalados. “Por serem projetos caros, a prioridade alocativa deveria ser para investimentos com menor risco ambiental e maior retorno em termos de mitigação das emissões,” conclui.  

Na discussão em plenário na Câmara dos Deputados, o PSOL apresentou emenda para retirada do ponto, rejeitada por maioria dos votos. O deputado Arnaldo Jardim afirmou que, embora reconheça os riscos, “o regulamento da ANP tratará desde a qualificação das empresas para operar na área até a garantia do monitoramento da efetividade da medida”.



As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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