Por Júlio Olivar – [email protected]
Na Região Central de Rondônia, a 479 km da capital, o município de Cacoal celebra sua herança como pioneiro na produção de café, uma cultura que floresceu depois do fim do ciclo do extrativismo vegetal, marcado pela extração de látex e de cacau, iniciada no começo do século 20 e pelo setor madeireiro, que vigorou a partir de 1970.
Emancipado de Porto Velho em 1977, Cacoal investiu na cafeicultura, ganhando o título de ‘Capital do Café’ do estado. Apesar dos desafios impostos pela pecuária e soja que se intensificaram em todo o estado no final da década de 1990, o café de Cacoal ressurgiu com mais força no século 21, hoje a produção anual é de 13 mil toneladas, conforme o IBGE.
A tradição de Cacoal como ‘capital’ persiste, não apenas por sua história, mas também por ser um município-polo com 87 mil habitantes, o quinto maior de Rondônia, localizado estrategicamente às margens da BR-364. No entanto, já não é o maior produto de café do estado. Fica atrás de seis: São Miguel do Guaporé (44 mil toneladas), Alta Floresta do Oeste e Alto Alegre dos Parecis (empatados: 23 mil toneladas), Nova Brasilândia do Oeste (18 mil), Buritis (16 mil) e Ministro Andreazza (15 mil). Estes municípios estão entre os 100 maiores produtores do Brasil.
A média de produtividade no estado é de 32 sacas de café conilon por hectare – no Espírito Santo, é de 45,94 sacas para a mesma espécie. Mesmo que inferior ao estado que segue na dianteira, o índice de produtividade rondoniense é considerado excelente. “O manejo de poda, a irrigação, a adubação e a utilização de material genético clonal de qualidade, com a orientação científica, foram ações fundamentais para o aumento da produtividade em Rondônia”, explica Enrique Alves, agrônomo da Embrapa. Outro fator que favorece o cultivo é que as áreas produzidas têm temperatura média de 26 graus e estão acima de 300 metros de altitude.
Cacoal inspirou os outros municípios rondonienses a cultivar, apesar das adversidades iniciais, como a falta de apoio dos órgãos de pesquisa e de extensão rural e desafios logísticos. “Acreditávamos no potencial do café, mas nem rodovia asfaltada tínhamos até 1984. Chegaram o agronegócio e a pecuária de precisão, mas resistimos e apostamos no café. A Embrapa foi uma importante parceira neste projeto”, relata o agricultor Aparecido Oliveira, 62.
Uma das explicações para a ‘vocação’ de Cacoal para a cafeicultura está no perfil dos seus migrantes. Muitos são descendentes de italianos que vieram para o Brasil para atuar nas lavouras após a abolição da escravatura, em 1888. Neste período, surgiram as primeiras ferrovias no país e o Porto de Santos, inaugurado em 1892, confirmando o café como o principal produto de exportação do país.
Embora Cacoal surja apenas sete décadas depois desta história da ascensão do café como base da economia brasileira decorrente do novo modal impulsionado pelas ferrovias no Sudeste, a referência persiste na “genética cafeeira” dos migrantes rondonienses. Mais do que em outros municípios, o município de Cacoal avançou com a presença de muitos capixabas descendentes de italianos ou que aprenderam com estes as técnicas de produção e de comercialização dos grãos observadas nas velhas fazendas dos ‘barões do café’ e seus escravizados.
Neste contexto, surgiram muitas empresas e pequenas propriedades que apostaram no café. Um exemplo: há quase 40 anos surgiu uma das principais beneficiadoras: a Máquina Irmãos Trevizani, que tem diversas ramificações no estado e fatura, só em Cacoal, cerca de R$ 11 milhões anuais. Os proprietários têm sangue italiano e migraram do Espírito Santo para Rondônia em meados da década de 1980.
O Espírito Santo – hoje, segundo maior produtor do país [se incluídas as espécies arábica e conilon] – tem tradição na cafeicultura e, ao lado de Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Paraná, tornou-se ‘case’ no mercado internacional. Cacoal também persegue essa distinção, considerando toda expertise e o lastro histórico já acumulado. Na espécie conilon [é o mesmo que robusta], os dois maiores produtores são ES e RO, nesta ordem. O mercado externo, porém, aceita melhor o café arábica, que é considerado “bebida fina”, pois possui o dobro de cromossomos: 44.
De acordo com a Embrapa, os principais estados produtores de café no Brasil são: Minas Gerais (54,3% da produção nacional), Espírito Santo (19,7%), São Paulo (9,8%), Bahia (7,5%), Rondônia (4,3%) e Paraná (2,7%). Esses seis estados atingem 98% da produção nacional). Se considerada apenas a espécie robusta, Rondônia sobe à segunda posição e o ranking fica assim: ES, RO, BA, PR, MG e SP. O Espírito Santo produz 10 milhões de sacas por ano e responde por 70% da produção nacional de robusta; Rondônia produz 3,88 milhões de sacas – a safra de 2024 será 4% maior em relação ao ano anterior, segundo expectativa do mercado.
Aroma de bons negócios: do pequeno ao grande
Para quem saboreia uma simples xícara do café robusta amazônico – a definição dada pela Embrapa ao grão produzido em Cacoal – muitas vezes não tem ideia do tamanho do significado do produto para a economia e a cultura locais. A representatividade socioeconômica é tanta que ele foi reconhecido, no ano passado, como Patrimônio Cultural e Imaterial de Rondônia, pela Lei nº 5.722 do Governo do Estado.
O café sustenta uma cadeia produtiva e, na última década, fez Rondônia superar o Paraná em produção global – que inclui os cafés das espécies arábica e conilon/robusta. Uma característica marcante no setor é a predominância da agricultura familiar. Em Rondônia, isso é ainda mais nítido: são 17 mil famílias que cultivam café em áreas inferiores a 5 hectares. No total, o estado tem cerca de 24 mil lavouras de café.
As casas dos agricultores ficam, em geral, dentro da lavoura e todos se envolvem com a mão de obra. Crianças crescem observando os pais e dão sequência no trabalho, que começa do preparo do solo, depois vem o plantio, os cuidados técnicos, a colheita, a secagem, o transporte. E, a partir daí, em geral, os frutos seguem para terceirizados, atravessadores ou compradores dos produtos diretamente nas roças. Seguem-se as atividades, como o beneficiamento, a torrefação, os comércios atacadista e varejista… uma gama imensa de trabalhos até o café chegar à xícara dos apreciadores da bebida mais conhecida do mundo.
É visível a mudança na cena rural neste milênio. Mais pessoas agora têm condições de adquirir bens de consumo, como eletrodomésticos, motos e carros, como frutos da agricultura familiar. Em Cacoal, sete em cada dez empregos no campo são gerados pelas pequenas propriedades – ao contrário do agronegócio da soja, por exemplo,, que gera menos empregos diretos porque é mais mecanizado e de precisão. Sonhos como casas de alvenaria, filhos na faculdade e uma alimentação melhor fazem parte da realidade comum de quem trabalha em pequenas frações de terra.
Não que o segmento cafeeiro não enriqueça muitos que investem em outros níveis. Atualmente, Cacoal tem acima de 100 de empresas vinculadas à cafeicultura: a maior delas, a Vinícius Junior Borghi Comércio Atacadista, fatura em torno de R$ 15 milhões anuais.
Afora as fazendas e sítios, a cafeicultura impulsiona empregos e impostos no varejo em geral e até no setor imobiliário, com a injeção de milhões de reais na economia local. Há, literalmente, um aroma especial de negócios bem-sucedidos que orgulham os moradores de Cacoal. O grão está representado em todos os lugares, a começar pela ilustração da bandeira do Município que traz galhos de cacau e de café: denotam a origem histórica e o ciclo econômico decorrido partir da onda migratória da década de 1970, respectivamente. Até o hino oficial menciona o café como algo “estranho” na antiga área de extrativismo: “A terra adotou sementes estranhas/E já desfrutas do progresso almejado/Do café és capital”.
Turismo experimental
As elegantes cafeterias e confeitarias de Cacoal seguem padrões internacionais e servem as mais variadas bebidas criadas por baristas inventivos e menus ousados – que incluem desde o básico café expresso aos drinks gelados, tortas, sorvetes e outras opções ‘gourmets’ com sabores incríveis e misturas inusitadas. Aliás, algumas das delícias criadas pelos confeiteiros fazem parte – junto com dezenas de outras opções culinárias que a cidade oferece – do Festival Gastronômico realizado anualmente pela Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes).
O turismo é um segmento econômico abrangido pela cafeicultura. O Governo do Estado criou, em 2022, a Lei nº 5.512 instituindo o circuito ‘Rota do Café’, que envolve, além das de Cacoal, as lavouras de Nova Brasilândia do Oeste, Alta Floresta do Oeste e Alto Alegre dos Parecis. Várias fazendas foram catalogadas e podem ser visitadas pelos interessados em todo o processo produtivo.
Os meses de florada ocorrem entre julho e agosto. A colheita dos frutos maduros ocorre de março a agosto. As visitas são tratadas como “turismo de experiência” ou turismo rural. O fato é que rendem belas fotografias; até books de noivos já foram produzidos em meio às imensas lavouras. O fluxo turístico, ainda incipiente, também garante lucros para bares, hotéis e restaurantes.
Reconhecimento nacional
Aos poucos, o café cacoalense – e de outros municípios de Rondônia – vai ascendendo ao pódio nacional e já com a expectativa de cruzar a fronteira, competindo com mercados solidificados no mundo.
Concorrendo com 179 amostras de todo o país, um casal de cafeicultores de Cacoal, Lucilene de Jesus Maia Santos e Arildo Ferreira dos Santos, chegou à final com outros 15 produtores e trouxe o 2° lugar na última edição do Coffee of The Year 2023. Dona do Sítio Nossa Senhora Aparecida, a safra de Lucilene chega a 300 sacas anuais.
A premiação ocorreu em novembro do ano passado, na Semana Internacional do Café, realizada em Belo Horizonte (MG). Além de Lucilene, contava com outros quatro cafeicultores de Rondônia entre os finalistas. Antes, em 2020 e 2021, cafeicultores rondonienses ficaram em primeiro lugar.
O casal teve o apoio técnico do Sebrae RO (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, em Rondônia). Lucilene e Arildo são atendidos pelo projeto IG-Matas de Rondônia. Trata-se de uma ação para o fortalecimento da indicação geográfica, garantindo a precedência e a qualidade do café produzido de forma sustentável na Amazônia.
Indígenas aderem
O polo de Cacoal exerceu influência em lugares até pouco tempo impensáveis: as comunidades indígenas. Anteriormente, o povo Paiter-Suruí possuía apenas roças de subsistência e contava com as caças, as pescas e os artesanatos. Aliás, essa comunidade produz peças de muita qualidade artística, como biojoias, cestarias, cerâmicas, presentes até em museus importantes como o Casa Brasileira, de São Paulo. O café chegou para agregar, e não para dizimar suas culturas, memórias, saberes e pertencimento.
Ultimamente, os suruís mantém vivas suas tradições associando-as à economia ditada pelos colonizadores. Três mil hectares das terras dos originários são utilizadas para a cafeicultura consorciada com as árvores nativas, no sistema de agrofloresta. Atuam no segmento cerca de cerca de 150 famílias representando mais de 40% de pessoas que moram na Terra Indígena (TI) Sete de Setembro, que soma quase 250 mil hectares.
“O que nos garante o sustento, hoje, é a produção agroflorestal. Além do café, produzimos banana, castanha. Também lidamos com pecuária. Pensamos sempre na geração de emprego e renda como algo que nos fortalece e nos dá autonomia. O ecoturismo é uma aposta mais recente nossa. Também estamos desenvolvendo projetos de implantação de agroindústrias. Sempre de maneira sustentável, ecologicamente correta”, explica Almir Suruí, líder de seu povo e ativista da causa indígena reconhecido internacionalmente.
Além da qualidade do café, o produto das comunidades indígenas agrega ainda mais valor às marcas locais por ter o ‘carimbo’ Amazônia, com relevância mundial.
“Desenvolvendo o nosso território de forma responsável, o povo Paiter-Suruí é o povo indígena mais empreendedor do Brasil”, garante Almir. Ele afirma, ainda, que “alguns povos [em outros lugares do Brasil] têm sido influenciados a produzirem em grande escala. Mas, nós não. Falamos em agrofloresta. O objetivo é produzir mais em menos área e com muita qualidade, utilizando tecnologia e conhecimento científico somados às nossas tradições”.
Os cafeicultores indígenas são premiados e reconhecidos pela qualidade do café que produzem. Em 2022, por exemplo, Wilson Nakodah conquistou o terceiro lugar na 7ª edição do Concurso de Qualidade e Sustentabilidade do Café de Rondônia (Concafé). Nakodah, que é membro do povo Suruí, concorreu com 157 inscritos de 20 municípios.
O café especial Robusta Amazônico na TI – que inclui diversas comunidades suruís, somando 1490 indígenas – gerou diversas marcas do produto final colocado nas gôndolas dos supermecados, e outros em grãos especiais utilizados para preparo na hora do consumo.
É desse lugar que vem a matéria-prima que Celesty Suruí usa. Aos 22 anos, ela é a primeira mulher indígena barista do Brasil. Mês passado, o presidente Luis Inácio Lula da Silva degustou o café de Celesty durante uma exposição dos 51 anos da Embrapa, em Brasília (DF), e teceu muitos elogios à bebida. “Eu nunca tinha visto ou provado nada igual. Achei excelente o café”, afirmou Lula.
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