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ToggleAndar em silêncio não é fácil quando o chão está coberto de folhas secas que estalam sob nossas botas. A cada passo, apareciam obstáculos como cipós, galhos, tocos e buracos em que o pé entrava quase todo. Impossível sair incólume. Eu mesma perdi as contas das pancadas que levei dos galhos, dos tropeços que dei e dos buracos em que pisei. Como num rito de passagem, enfiei meu braço direito no tronco espinhento de uma palmeira. Recuei o braço e segurei qualquer interjeição. Tatiane e Jaílson andavam mais a frente, em silêncio, atentos aos sons da floresta, e eu não quis ser a novata barulhenta que perturbava a expedição. Um a um, tirei os espinhos silenciosamente, sem parar de andar. Esse silêncio era o quanto eu queria ver o kaapori, esse macaco tão arisco, desconhecido e ameaçado pelo qual, contagiada pela Tatiane, eu já estava encantada.
Desvendar a área de vida, ecologia e comportamento do kaapori (Cebus kaapori) é a missão da primatóloga Tatiane Cardoso, pesquisadora bolsista do Museu Paraense Emílio Goeldi. Há cinco anos ela realiza campanhas regulares à Reserva Biológica do Gurupi, no Maranhão, para ir atrás desse que é um dos primatas mais ameaçados do mundo. A jornada de três dias a que me submeti para acompanhá-la é apenas uma fração do seu esforço de campanha, que dura em média vinte dias, sem folga, salvo imprevistos. Nesse período, costuma passar 10 horas por dia na floresta.
Eu a acompanhei no início de outubro, ao lado do agente ambiental Jaílson, quando começava sua 13ª campanha. Ao final do campo, ela já havia dedicado 233 dias de campo e percorrido mais de 1.600 quilômetros dentro da floresta. Todo esse esforço resultou em 54 encontros com os kaaporis. Um trabalho hercúleo que ela emprega com uma paciência determinada.
Atualmente, a pesquisadora está com sua 14ª campanha em andamento, que será concluída dia 16 de dezembro.
“Eu sou uma pessoa muito determinada. Se eu não fosse já teria desistido”, sentencia a pesquisadora. “Eu quero trabalhar a vida inteira com o kaapori. A espécie merece isso”, acrescenta.
Durante os três dias em que a acompanhei, foram cerca de 27 horas dentro da floresta. E não conseguimos nenhum registro, por mais fugaz que fosse, deste macaco recluso à região amazônica entre os estados do Maranhão e Pará.
Nesta 13ª campanha, Tatiane e Jaílson só encontraram de fato os kaaporis no penúltimo dia de campo, depois de 20 dias, 189 horas e 143 quilômetros percorridos. “Conseguimos acompanhá-los por 1 hora e meia”, ela me contou, aliviada, por mensagem assim que voltou do campo.
A sorte permaneceu no dia seguinte, o último da campanha. “Uma harpia ficou espreitando os kaaporis por uma duas horas”, narrou em nova mensagem. “E eles ficaram enlouquecidos, alarmando o tempo todo, mas não saíram do local. Ficaram só subindo e descendo nos galhos e às vezes iam pro chão. Depois de 2 horas, a harpia deu um rasante e foi embora. Eles gritaram e depois silenciaram totalmente. E depois de uns 10 minutos, saíram. Com isso conseguimos acompanhá-los por 3 horas e meia hoje. Estudar os kaaporis na Gurupi é assim. Muitos dias difíceis, mas outros incríveis”, resume Tatiane.
A determinação da primatóloga começou a ser testada desde sua primeira campanha, uma expedição piloto no final de 2018. “Nós vimos o kaapori logo no primeiro dia e depois passamos 22 dias sem ver”, lembra a pesquisadora com um sorriso. “Foi só pra eu me apaixonar por eles e pra eles me mostrarem que eles existem e estavam ali mesmo, mas que não seria fácil monitorá-los”, completa.
Era apenas o começo do projeto de pesquisa que conta hoje com o apoio financeiro da própria Reserva Biológica do Gurupi, através do programa ARPA – Áreas Protegidas da Amazônia, além do apoio técnico do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas (CPB) do ICMBio.
Ela voltaria em agosto de 2019 para dar início às campanhas regulares. Por ano, são três campanhas realizadas na época seca, entre julho e dezembro, quando o acesso à área fica viável. A exceção foi 2020, quando, por causa da pandemia, precisou estender os campos até fevereiro de 2021.
É uma rotina cansativa. Antes das sete da manhã, ela sai de quadriciclo junto com um assistente de campo, um agente temporário ambiental cedido pela equipe da Reserva Biológica (Rebio). São cerca de 14 quilômetros de estrada de terra poeirenta e pontes de solidez duvidosa.
A área de estudo dos kaaporis está situada no norte da Rebio Gurupi, conhecida como “a cabeça”. Esta porção da área protegida é fortemente pressionada pelo avanço da pecuária, como não deixa mentir a paisagem repleta de bois que nos acompanha até a placa que marca a entrada da reserva.
Esta também é uma área muito pressionada pela caça, um fator de ameaça aos kaaporis e um obstáculo à pesquisa, pois deixa todos os animais da floresta em estado de alerta. “Eu já encontrei caçadores armados lá dentro algumas vezes, já encontrei restos de caça, poleiros e varridas de caçadores”, afirma a pesquisadora.
Na trilha fica nítida a degradação da floresta, esvaziada de suas gigantes de madeiras mais valiosas. As únicas árvores grandes que restaram são as de madeira oca, como o pequizeiro, que não atendem aos interesses madeireiros que depauperaram esta região num passado não tão distante.
A pesquisadora possui sete trilhas principais, cortadas por outras perpendiculares que a permitem varrer esta porção da floresta – cerca de 640 hectares – em busca do grupo de kaaporis que ela escolheu como objeto de estudo. Os pontos de intersecção das trilhas são marcados por um toco de madeira improvisado, às vezes acompanhado de um banco de madeira igualmente improvisado, ideal para os 10 minutos de parada dedicados a ouvir qualquer possível indício de kaapori. Normalmente é através da vocalização dos macacos, ou seja, o som que eles emitem como alerta, chamada ou entre si, que ela consegue rastreá-los.
Este grupo que ela segue possui cerca de 14 indivíduos, estima Tatiane. A cada dia ela traça uma estratégia diferente para esquadrinhar a floresta. O modus operandi é sempre caminhar devagar e o mais silenciosamente possível, com paradas constantes onde a principal atividade é escutar os sons da mata em busca de pistas da presença dos kaaporis, muitas vezes sem sucesso.
Somados os dados das suas 13 campanhas já concluídas, a taxa média de encontro com os kaapori é de 0,32 por 10 quilômetros. Ou seja, em média, ela precisa andar um pouco mais de 30 quilômetros para ver o grupo.
Quando ela os encontra – algo que infelizmente não pude testemunhar – a estratégia é manter a distância para tentar seguí-los da forma mais discreta possível. “É difícil andar discretamente numa área que é cheia de cipós, né? Eles acabam me vendo, mas se eu for discreta isso parece que não os assusta muito. Eles toleram”, detalha. Ainda que de longe, dessa forma ela consegue observar o grupo e seguí-los por mais tempo.
Num dos pontos da floresta, ela me conta “aqui foi onde eu observei eles por mais tempo, foi no ano passado. O grupo estava descansando após comerem e eu fiquei três horas olhando eles. Não podia nem mexer, nem sentar, nem comer, pra eles não se assustarem. Eles percebiam a gente de longe, mas como a gente não fazia nenhum movimento brusco, eles não se assustaram. Nesse dia eu fiz observações de comportamentos sociais que eu nunca tinha visto antes, como catação, eles brincando, dormindo…”, ela lembra, para completar em seguida rindo “fiquei com a perna dormente”.
A abordagem inicial era diferente. No começo, a pesquisadora tinha o objetivo de habituá-los a sua presença. Então a ideia era justamente fazer com que eles a vissem para, gradualmente, normalizarem a sua companhia. “Isso não funciona com eles. Eles fogem, se escondem, você não consegue. Então eu mudei a técnica e está funcionando um pouco melhor”, explica Tatiane. “Às vezes eu me agacho, pra ficar mais difícil deles me verem. E não pode falar, nem fazer barulho. E vou indo atrás deles, porque eles fogem mesmo. E fico vendo de longe, por entre as folhas”.
Um macaco e muitas perguntas
Descrito pela ciência há apenas 30 anos, o kaapori (Cebus kaapori) ainda é um mistério. Justamente por seu comportamento arisco, é difícil estudá-lo na natureza. A maioria das informações sobre a espécie são “suposições” baseadas no comportamento do gênero. Com cinco espécies conhecidas no Brasil, todas nativas da Amazônia, o próprio gênero, entretanto, ainda foi pouco estudado.
O maior objetivo da pesquisa da Tatiane com os kaaporis hoje é ver o uso do espaço pela espécie, tentar entender a área de vida e as preferências de habitat. “São coisas que não sabemos e que são importantíssimas caso seja preciso manejar a espécie ou para criar uma unidade de conservação para proteger os kaapori. Será que é possível nesse fragmento sobreviver um grupo de kaapori? Qual o tamanho mínimo viável para manter um grupo de kaapori? Precisamos saber isso para criar unidades de conservação para espécie, o que é tão necessário”, comenta.
Através da pesquisa feita pela primatóloga com o grupo de kaapori que ela monitora, a estimativa é de que eles possuam uma área de vida de 400 hectares. “O que é bastante”, avalia. Eles se alimentam de frutas variadas e usam principalmente o extrato médio da floresta, logo abaixo do dossel.
As observações da pesquisadora levam a crer que eles andam muito, mas como ela própria ressalta, não é possível afirmar que este é o comportamento natural da espécie. “Porque eles estão fugindo de mim. Enquanto esse grupo não for habituado, não estiver me aceitando, eu não vou poder falar em percurso de área. Se eu não tivesse ali, será que eles teriam deslocado isso tudo?”, reflete.
Dentro de toda a Rebio existem pelo menos 14 grupos de kaapori já identificados por Tatiane, durante expedições em outros pontos da reserva.
A pesquisadora também documenta as interações dos kaapori com outros primatas. Na Rebio Gurupi existem ao todo sete espécies. As observações da Tatiane mostram que os kaaporis se associam com os micos-de-cheiro (Saimiri collinsi), com os cuxiús-pretos (Chiropotes satanas), outra espécie em perigo crítico de extinção, e até mesmo com os macacos-pregos (Sapajus apella), seus competidores diretos por recursos.
Outra pergunta a ser respondida é o padrão de dispersão da espécie. Em outras palavras, quem sai do grupo, o macho ou a fêmea, para garantir a diversidade genética e a ocupação do território por novos grupos. Em outras espécies do gênero, quem faz esse movimento é o macho.
Tatiane não está tão certa de que os kaaporis seguem este padrão. “Uma vez eu flagrei um sub adulto acompanhando o grupo. Nós passamos dois dias acompanhando e eu só conseguia acompanhar o grupo porque esse jovem ficava na periferia do grupo e vocalizava o tempo inteiro, sem se importar conosco. Até hoje eu não sei se era macho ou fêmea, porque mesmo vendo as fotos não dá para ver nenhuma genitália ou o saco, que o sub adulto já teria. Por isso eu suspeito, mesmo que eu não possa confirmar que era uma fêmea. E aquilo provavelmente era uma dispersão. Era um bicho de outro grupo querendo entrar naquele grupo, que não estava aceitando”, lembra a pesquisadora.
“É uma resposta que eu ainda não tenho”, lamenta a primatóloga. “Esse tipo de coisa leva tempo, principalmente sem conseguir diferenciar os indivíduos e tendo dificuldade até para identificar o sexo, porque não posso me aproximar muito. Nos adultos é mais fácil, mas nos sub adultos é difícil”, explica.
Não há diferenças visuais claras para distinguir machos e fêmeas. Com uma face esbranquiçada que lhe rendeu o apelido “cara-branca” – um dos nomes pelos quais é conhecido entre os locais – adornada com um topete de pelos pretos que lembram um moicano, o kaapori tem uma aparência singular. As costas apresentam um tom mais castanho que ao descer para barriga e pros braços se mescla com os pelos brancos. Ao todo, da cabeça ao corpo são aproximadamente 45 centímetros. Como outros macacos arborícolas, a cauda é mais comprida que o resto do corpo, com cerca de 50 centímetros.
Aos poucos, Tatiane também já reconhece algumas das diferentes vocalizações feitas pelo kaapori. O grito de alerta, por exemplo, assemelha-se a um latido. Um som peculiar e inconfundível. Era com este alerta que os kaaporis recebiam Tatiane no início da sua pesquisa.
“Quando eu comecei a acompanhar esse grupo, a principal reação deles era o alarme. Um dos integrantes, num provável papel de sentinela, emitia este canto de alerta enquanto todos os outros fugiam. Era sempre um indivíduo grande, que subia num ponto de onde tinha uma boa visão da gente, e alarmava desesperadamente e ameaçava, balançando os galhos. E nisso o grupo sumia. E aí depois ele fugia alarmando. E aí a gente ia correndo atrás dele. E só víamos ele. Acho que a intenção dele era afastar a gente do grupo. E com o tempo isso foi mudando, acho que em resposta à habituação”, conta a primatóloga, que destaca que esse comportamento de sentinela existe em outras espécies do gênero.
Hoje a presença da pesquisadora não causa o mesmo alvoroço. “Eles emitem um uh-uh que é uma vocalização diferente, não é aquele alarme chamativo, e depois se escondem”. Quase como um olá, mas ainda sem muita confiança.
Para conseguir mais informações sobre a ecologia comportamental da espécie – um dos objetivos da pesquisadora – ainda é necessário avançar nessa habituação para observar as atividades diárias do grupo.
“Claro que eu já fiquei desanimada, não só pela dificuldade logística, mas desanimada pela dificuldade de conseguir dados. Mas aí a cada vez que eu encontro eles, cada vez que eu começo a estudar e analisar os dados, eu penso que eu quero mais. Eu quero conseguir fazer isso. Eu quero gerar dados que possam ajudar a proteger essa espécie, que corre o risco tão grande de desaparecer. Alguém tem que fazer alguma coisa. Então me dá ânimo de novo”, desabafa a pesquisadora.
“A Tati se transforma quando vê o macaco, as energias dela se recuperam”, conta o agente ambiental da Rebio, João Souza, que acompanhou a pesquisadora em nove campanhas. “Ela é resistente. E ela ama. Se ela não amasse ela já tinha desistido”, completa.
Para aumentar e melhorar a coleta de dados sobre o kaapori, Tatiane tem duas cartas na manga. A primeira é instalar armadilhas fotográficas no dossel da floresta para entender a distribuição dos grupos e monitorá-los de forma contínua durante todo ano. A segunda é usar a técnica de playback – a reprodução da vocalização do kaapori – para atraí-los e aumentar a detecção do grupo. Para conseguir fazer qualquer uma das duas coisas, é necessário obter recursos. “Se conseguir, vou ter mais dados, mais rapidamente”, acredita. Além disso, ela planeja incluir uma quarta campanha no ano.
Somado a isso, a pesquisadora irá começar a coleta de dados, em outra parte da Rebio, perto da base norte, para fazer o estudo populacional dos kaapori em três ambientes diferentes: uma floresta primária e duas áreas em regeneração, uma pós-fogo e outra que era pastagem. O estudo faz parte do Programa Ecológico de Longa Duração (PELD), e incluirá outras espécies, numa coleta de três anos prevista para começar no começo do ano que vem.
Um primata em perigo crítico
Nem mesmo o arisco kaapori consegue fugir de certas ameaças, como o desmatamento, a caça, as queimadas e a degradação ambiental. A espécie é avaliada pelo ICMBio como Criticamente em Perigo de extinção, a categoria mais alta de ameaça. Também foi listada como um 25 dos primatas mais ameaçados do mundo no relatório internacional Primates in Peril, produzido pela Re:wild junto com o Primate Specialist Group (PSG), da União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN), e a Sociedade Internacional de Primatologia (IPS).
A área em que vive o kaapori, na porção amazônica do leste do Pará e oeste do Maranhão, está sobreposta ao Arco do Desmatamento, a região em que a floresta é derrubada em ritmo mais acelerado. Essa infeliz coincidência se traduz na redução e fragmentação do habitat do primata, cada vez mais restrito às áreas protegidas que resguardam as florestas do território.
Um dos principais cinturões contínuos para o kaapori está situado exatamente na divisa entre os dois estados e é composto por quatro Terras Indígenas – as TIs Caru, Awá, Alto Turiaçu e Alto Rio Guamá, que juntas somam 1,1 milhão de hectares – e uma única unidade de conservação, a Reserva Biológica do Gurupi, com 271 mil hectares. Ao todo, o bloco protege quase 1,4 milhão de hectares de florestas.
Existem apenas três áreas de floresta dentro do habitat do kaapori com tamanho suficiente para garantir a viabilidade da população no longo prazo. Uma delas é justamente as áreas protegidas no entorno do Gurupi. As outras duas são: a Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, com 413 mil hectares; e a região do Rio Capim, no Pará, onde não há nenhuma área protegida. Este bloco florestal de mais de 120 mil hectares, corresponde a áreas de manejo florestal da empresa Cikel.
Há ainda uma população de kaaporis na Área de Proteção Ambiental do Lago de Tucuruí, no Pará, com 568.667 hectares. Apesar do tamanho, a unidade de conservação, de uso sustentável e regras mais permissivas à exploração e ocupação, é uma floresta extremamente fragmentada, inviável para garantir o futuro da espécie.
Um levantamento realizado pelas equipes de dois centros de pesquisa do ICMBio, o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB) e o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP), aponta que o kaapori foi a espécie de primata que mais perdeu habitat nas suas últimas três gerações. No período, equivalente a 35 anos (1972 a 2020), a redução foi de 32,94%. Além disso, o estudo estima que, em toda a história, o macaco amazônico já perdeu cerca de 80% do seu habitat original. A pesquisa, que estimou os impactos da perda de habitat para os 190 mamíferos terrestres brasileiros, foi publicada no final do ano passado.
O tamanho da destruição das florestas que o kaapori precisa para sobreviver se reflete diretamente na população da espécie. Segundo os pesquisadores, a estimativa é que apenas entre 1972 e 2020 a espécie tenha sofrido uma redução populacional de 85,28%.
A projeção futura também não é animadora. Além dos impactos antrópicos diretos, com o avanço do desmatamento e da degradação das florestas, o habitat também pode ser comprometido pelos impactos da crise climática.
“Considerado um dos primatas mais ameaçados da Amazônia, o kaapori pode perder todas as suas florestas remanescentes nas próximas três décadas devido ao desmatamento e às mudanças climáticas”, alertam os pesquisadores em trecho do relatório Primates in Peril.
Os esforços de conservação
Uma coisa é clara, a luta pela conservação do kaapori precisa de pesquisa científica e da floresta em pé. Atualmente, o principal instrumento de política pública que visa garantir o futuro da espécie é o Plano de Ação Nacional (PAN) para conservação dos Primatas Amazônicos. Criado em 2017, ele contempla um total de 15 espécies, entre elas, o kaapori.
A coordenadora do PAN, Renata Bocorny de Azevedo, analista do CPB/ICMBio, reforça a importância da pesquisa sobre a espécie. “O projeto que a Tati vem desenvolvendo na Rebio Gurupi, única unidade de conservação de proteção integral onde a espécie ocorre, é fundamental para começar a entender essa espécie, que é uma das 25 mais ameaçadas do mundo, que tem uma distribuição bem pequena e que é muito pouco estudada”, destaca a servidora.
Todo ano, a pesquisadora envia um relatório com os dados coletados nas campanhas para o CPB, para compartilhar as informações sobre este ilustre desconhecido, e ajudar a planejar as ações prioritárias para proteger a espécie através do PAN.
“Desde 2018, superando dificuldades financeiras, logísticas e operacionais, com o apoio de vários parceiros, ela tem conseguido manter o projeto, que já é o maior esforço amostral realizado para a espécie”, acrescenta Renata.
Com um 1º ciclo de 5 anos (2017-2023), o PAN lista ações prioritárias para a conservação dos primatas. Duas delas beneficiam de forma mais direta o kaapori, explica a analista. A formalização do mosaico da Rebio do Gurupi, para fortalecer a gestão dessa região tão importante para a espécie; e solicitar o levantamento e monitoramento da espécie no Mosaico do Lago Tucuruí, no Pará, como medida compensatória da hidrovia do rio Tocantins.
Outras são mais gerais, “como realizar diagnósticos sobre a caça de primatas; realizar atividades de Educação Ambiental e Difusão Científica voltadas à redução da caça; e estabelecer e difundir protocolos de coleta de material para o estudo de agentes de doenças com potencial impacto nos primatas amazônicos”, explica a coordenadora.
Uma estratégia possível para apoiar a conservação do kaapori é o manejo ex situ, ou seja, aquele feito fora do ambiente natural da espécie. Isso significa manter e reproduzir uma população saudável de kaaporis em cativeiro, seja em zoológicos ou instituições de pesquisa, que podem ajudar a reforçar a população na natureza, se necessário.
De acordo com a coordenadora do PAN, atualmente existem apenas quatro indivíduos de kaapori em cativeiro, dois no Centro Nacional de Primatas, em Ananindeua, região metropolitana de Belém, no Pará, e dois no Zoológico de São Paulo. Ainda não existe, entretanto, nenhum programa para realizar o manejo ex situ da espécie.
A Reserva Biológica do Gurupi
A Rebio, criada em 1988, está a menos de cem quilômetros em linha reta da BR-010, rodovia que liga Brasília a Belém. A estrada, aberta ao longo da década de 60, foi uma das primeiras a conectar o centro-oeste com a Amazônia e com ela veio o desmatamento.
Apesar de ser uma área protegida do mais alto nível de proteção, que não permite nenhuma atividade de extrativismo, a reserva biológica já foi palco corriqueiro para prática de crimes ambientais como a exploração ilegal de madeira, a caça e a invasão – consolidada pela presença do gado.
A partir de 2007, a área protegida começou a se impor através da fiscalização mais ostensiva e de grandes operações para retirada de gado ilegal mantido no interior da Rebio e para fechar as serrarias clandestinas.
“Antes era o problema da madeira. Quando eu entrei esse era o maior problema. Começamos a enfrentar isso a partir da instalação da nossa base norte, em 2011, com a presença institucional constante na área, desestimulou a atividade, aumentou os riscos. Tinham cinco serrarias no entorno. Em 2016 só tinha sobrado uma e hoje não tem nenhuma”, conta a servidora Eloisa Mendonça, que trabalha na reserva desde 2010. Hoje em dia, conta, o crime atualizou sua estratégia e usa serrarias móveis para conseguir tirar madeira da reserva sem ser detectado.
A herança das décadas de exploração da madeira ainda pode ser facilmente vista nas vilas e cidades nos arredores da Rebio, como Açailândia e Ulianópolis, repletas de serrarias até hoje.
A regularização fundiária e remoção dos invasores segue como um dos principais problemas. De acordo com o MapBiomas, cerca de 14% da área da reserva é ocupada, ainda hoje, pela agropecuária. Em 2009, o percentual chegou a 18%, o equivalente a 48.887 hectares. As principais áreas desmatadas concentram-se justamente no norte e no sudeste da reserva.
Atualmente, a Rebio possui três bases, todas com presença constante da equipe do ICMBio. Uma no norte e outra no sul, e uma terceira na porção leste. O corpo de servidores da reserva aumentou no último ano, com a realização do concurso do ICMBio, e saltou de apenas três para 12. A área protegida conta ainda com 33 agentes temporários ambientais (ATAs), com contratos de até 2 anos.
Fortalecer a proteção na Rebio e nas outras áreas em que ocorre o kaapori é um dos passos fundamentais para garantir o futuro da espécie, aponta Tatiane. “Precisamos proteger o que já existe, criar novas unidades [de conservação] e ter mais pesquisa para saber onde tem kaapori. Porque nós não sabemos onde estão todas as populações remanescentes. Precisamos de mais pesquisa também”, sentencia a pesquisadora do Museu Goeldi.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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