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Duplo feminicídio no Pará exige justiça de gênero na COP30

Duplo feminicídio no Pará exige justiça de gênero na COP30

Belém (PA) – Era manhã de 3 de novembro e o Estado do Pará organizava os últimos preparativos para a primeira Conferência do Clima da ONU na Amazônia brasileira, a COP30. Na zona rural de Novo Repartimento, região sudeste paraense, duas mulheres extrativistas ocupavam-se de mais uma jornada de coleta de amêndoas do coco babaçu. Mas Antônia Ferreira dos Santos, 53 anos, e Marly Viana Barroso, 71, não voltaram  para casa no horário previsto.

As famílias de Antônia e Marly começaram a procurar logo que sentiram a falta delas e divulgaram nas redes sociais. Iniciaram as buscas por conta própria numa região de mata. As extrativistas foram encontradas pelos familiares por volta das 22 horas, a cerca de dois quilômetros da estrada do Polo Pesqueiro, local que fica próximo ao centro da cidade de Novo Repartimento, localizada na região de Tucuruí, a mais de 500 quilômetros de Belém.

Quebradeiras de Coco Babaçu Antônia Ferreira dos Santos e Marly Viana Barroso, assassinadas no município de Novo Repartimento , sudeste do Pará ( Foto: Reprodução Miqcb).

Com a aproximação da Cúpula dos Líderes, no dia 6, e o clamor dos movimentos de mulheres e de partidos de esquerda, que dispararam pedidos de pressa nas investigações ao governador Helder Barbalho (MDB), uma operação foi montada para procurar Antônia e Marly. A Polícia Civil anunciou a prisão, no dia 11, de Danilo Carneiro da Silva, que confessou o duplo homicídio.

De acordo com a Delegacia de Novo Repartimento, Antônia estava parcialmente despida, o que levantou a suspeita de crime de violência sexual – uma grave violação violência de gênero. Ela teve o pescoço cortado. Ambas as vítimas apresentavam ferimentos de marcas de golpes de arma branca (faca). 

Os corpos das quebradeiras de coco babaçu foram levados para o Instituto Médico Legal (IML). Em nota, a Polícia Técnica havia informado que “o prazo para a entrega dos laudos à autoridade policial de Novo Repartimento é de dez dias, a contar do dia 3 de novembro, podendo ser prorrogado por igual período, ou mais, a depender da complexidade do caso, do qual as investigações estão em sigilo”.

Para mulheres que participaram da COP30, que começou no dia 10 e terminou em 22 de novembro, os assassinatos de Antônia e Marly ocorreram por ódio ao gênero, isto é, feminicídio. Para a líder quilombola e quebradeira de coco babaçu do Maranhão, Maria Nice Machado, conhecida como dona Nice, secretária de Mulheres do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), a violência contra as mulheres extrativistas não ocorre só no Pará e é resultado direto do machismo e da resistência dos homens em aceitar o protagonismo feminino, principalmente das mulheres que lutam pela terra. 

A liderança quilombola ressaltou que as mulheres são as principais responsáveis pela preservação da floresta e dos territórios tradicionais. “Somos competentes e capazes. Não tem nenhuma poluição, nenhuma devastação feita por mulher. Somos nós que defendemos a floresta. Nós somos as guardiãs. Claro que tem homem que contribui com a gente, mas muitos não aceitam mulher ter posição nem ocupar lugar nenhum”, afirmou. A extração da palmeira nativa é a base da agricultura familiar nesta parte da Amazônia Oriental.

As cobranças dos movimentos de mulheres às autoridades judiciais pela tipificação de casos de feminicídios na Amazônia têm repercutido muito após o julgamento da morte da artista venezuelana Julieta Hernández, no Amazonas.  Uma juíza classificou o crime apenas como latrocínio e ocultação de cadáver. 

Revolta nos movimentos sociais

Mural dos Mártires no Espaço Chico Mendes, na COP30 em Belém, reúne fotos de pessoas que viveram e lutaram pela Amazônia (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real/2025).

As quebradeiras de coco babaçu são grupos formados por mulheres de comunidades extrativistas do Maranhão, Tocantins, Pará e Piauí, que tiram seu sustento da palmeira de babaçu, uma espécie de palmeira originária do Brasil que pode atingir até 30 metros de altura.

As mortes de Antônia e Marly provocaram revolta entre os moradores do município e organizações de movimentos sociais na COP30, já que elas eram moradoras antigas da comunidade e conhecidas por sua atuação como extrativistas na região. 

O Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) emitiu nota de repúdio à violência brutal sofrida pelas extrativistas e exigia respostas imediatas do governador Helder Barbalho e  da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social, para que fossem tomadas providências urgentes de perícia e abertura de investigações para elucidar o crime.

“Trabalhavam honestamente e foram atacadas enquanto exerciam seu ofício tradicional. Foram violentadas, assassinadas e arrancadas de suas famílias, de sua comunidade e da floresta que defendiam. É uma violência cruel que atinge toda a nossa luta, nossa história e nossa dignidade”, diz um trecho da nota.

O MIQCB reforçou o contexto grave de violência enfrentado pelas quebradeiras de coco babaçu, que sofrem ameaças, expulsões, assédios, criminalização e ataques crescentes em seus territórios.

De acordo com os últimos dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), só nos últimos 10 anos (2015-2024) foram registrados 393 ataques, que resultaram em assassinatos no campo, envolvendo sem-terra, indígenas, posseiros, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais.

Quebradeiras são alvo de machismo

O movimento também solicitou atuação da Secretaria de Estado das Mulheres e da  Secretaria de Estado de Igualdade Racial e Direitos Humanos  (SEIRDH) no apoio às famílias de Antônia e Marly, além da proteção da comunidade e acompanhamento do Ministério Público para identificar e punir os responsáveis pelo crime. 

Dona Nice, secretária de Mulheres do CNS, relembrou de um caso semelhante também no Maranhão. Maria José Rodrigues, de 78 anos, e José do Carmo Correia Júnior, de 38, foram esmagados por palmeiras que, segundo denúncias, teriam sido derrubadas propositalmente por um fazendeiro na Comunidade Bom Lugar, em Penalva, a cerca de 250 quilômetros de São Luís.

Maria Nice Machado, secretária de Mulheres do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) e liderança quilombola do Maranhão. (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real/ 2025).

“Um fazendeiro mandou matar uma quebradeira de coco. Ele queria matar 50 mulheres e não conseguiu. A mulher é muito inteligente, é muito preparada, é trabalhadeira. A hora que a mulher começa a trabalhar e ganhar seu espaço, os homens invejam isso e acabam matando”, disse dona Nice.

A líder quilombola do Maranhão defendeu punições rigorosas para os crimes de feminicídio contra as mulheres extrativistas. “Tem que ter uma lei para punir e prender esses homens que matam as mulheres, os próprios companheiros. Eu, como secretária de Mulheres do CNS, trabalho com a Amazônia, com os biomas brasileiros e com todas as mulheres do mundo. Nós não aceitamos que as mulheres sejam mortas e massacradas porque os homens não concordam. Tem que ter punição, tem que ter cadeia. Eu sou contra e não aceito isso de jeito nenhum”, afirmou Maria Nice Machado.

Violência histórica

Como parte das atividades do Espaço Chico Mendes na COP30, é realizado o Encontro Nacional das Mulheres Extrativistas ( Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real/2025).

Letícia Santiago de Moraes, vice-presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), afirmou que Antônia e Marly foram assassinadas por defender a floresta. Ela destacou ainda que a juventude do movimento extrativista recebeu a notícia com grande tristeza, especialmente por ocorrer em um momento em que o mundo discute a crise ambiental na COP30 dentro de um território sagrado, o território amazônico. 

“Infelizmente, são mais duas mulheres, são mais duas vidas, são mais duas defensoras de direitos que se vão por esse sistema, que é um sistema extremamente violento. Especialmente com as defensoras da floresta, que mantêm o seu modo de vida a partir da floresta viva. Não existe floresta sem pessoas. Nós somos essas pessoas e nós somos essas mulheres que temos as nossas vidas ceifadas diariamente por existir”, afirmou em entrevista à Amazônia Real.

A liderança lembrou que o Pará é um dos Estados com maior índice de assassinatos de mulheres líderes ligadas à pauta socioambiental. O levantamento sobre conflitos no campo da CPT apontou 68 ameaças de morte, 8 tentativas de assassinato e 3 assassinatos no Estado apenas em 2024. O CNS, junto ao MIQCB, cobra do governo brasileiro e Estado do Pará proteções efetivas às mulheres e aos povos da floresta.

A Marcha Mundial das Mulheres (MMM) publicou uma nota se somando às exigências do MIQCB por investigação, identificação e punição dos responsáveis, além de proteção para as famílias das vítimas e para a comunidade. A organização afirmou que o Estado do Pará, que recebeu a COP30 sob uma lógica de militarização do território de Belém, é o mesmo local que lidera índices de violência contra militantes dos direitos humanos.

“Enquanto exerciam o cuidado e sustento de suas famílias, comunidades e da natureza, tiveram suas vidas ceifadas pelo patriarcado capitalista. Não se trata de um caso isolado e sim mais uma manifestação da violência patriarcal racista e sistemática que a extrema direita e o agronegócio impõe sobre a vida das mulheres defensoras e guardiãs dos seus territórios”, disse a MMM.

Em nota, o Comitê Chico Mendes reforçou que o assassinato de Antônia e Marly não é um fato isolado, e que reflete o contexto de violência estrutural e apagamento histórico que atinge as quebradeiras de coco e outros povos e comunidades tradicionais. “A repressão territorial, as ameaças de expulsão, a criminalização e o assédio são instrumentos da lógica predatória que busca converter a floresta em pasto ou commodity, desrespeitando o direito legítimo de subsistência e a Constituição Federal”, expressou.

O Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) demandou, em nota nas redes sociais, investigação rigorosa, responsabilização dos culpados e apuração de todo o contexto do crime, incluindo possíveis mandantes e envolvidos. “No Brasil, é comum que crimes contra lideranças e defensoras da natureza sejam encomendados por quem se esconde atrás de cargos e interesses econômicos, e isso não pode mais se repetir”, justificou a organização.

A Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) também emitiu nota repudiando o crime, que faz parte de um “projeto de morte que avança sobre a Amazônia, movido pela expansão do agronegócio, do desmatamento e da grilagem, que vê nas mulheres extrativistas, negras, ribeirinhas, indígenas e camponesas obstáculos à exploração predatória da terra”. E acrescentou: “Eles matam as lideranças para abrir caminho. Querem silenciar as mulheres e derrubar os babaçuais”.

A organização ressaltou que já havia denunciado as ameaças e os riscos enfrentados  pelas mulheres quebradeiras de coco babaçu, em articulação com o Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense (FMAP), inclusive no Tribunal das Mulheres do X Fórum Social Pan-Amazônico (Fospa), realizado em Belém no ano de 2022.

O que dizem as autoridades

De acordo com Vera Tavares, ouvidora da Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos (SEIRDH), ao tomar conhecimento do crime à secretaria agendou reunião com o delegado geral da Polícia Civil, Raimundo Benassuly Jr, e o delegado do interior, Hennison José Jacob Azevedo, para buscar informações e saber do andamento do inquérito policial. 

A secretaria foi acompanhada de representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos. Em nota, a secretaria informou que: “nessa ocasião, a SEIRDH entregou ao delegado um documento e solicitou urgência na elucidação do crime, além de reivindicar que o acompanhamento de todos os passos fossem informados. A secretaria também pediu que fossem realizadas  patrulhas rurais e uma reunião com os moradores para discussão da violência naquela área”.

A Polícia Civil do Pará informou que instaurou inquérito policial para apurar o duplo feminicídio de Antônia e Marly, que segue com a investigação sob sigilo. “A instituição tem concentrado esforços na solução do crime, com equipes realizando diligências para identificar e localizar os suspeitos, além de esclarecer a motivação. A PC também presta apoio à família das vítimas”, disse nota enviada à imprensa.

No dia da prisão preventiva do suspeito Danilo Carneiro da Silva, em 11 de novembro, um dia após a abertura da COP30 pelo presidente Lula, em Belém, as autoridades policiais soltaram uma nota oficial em que conta a tipificação do crime de duplo feminicídio contra as extrativistas. “A Polícia Civil, por meio de ação integrada entre a Superintendência Regional do Lago de Tucuruí, Delegacia de Novo Repartimento, Seccional Urbana de Tucuruí, Delegacia de Homicídios de Tucuruí e Núcleo de Apoio à Investigação (NAI) de Tucuruí, realizou a prisão de um homem suspeito de ter cometido o crime de duplo feminicídio”.

A nota explica também como foram as diligências para localizar o suspeito em Novo Repartimento: “com base em análise técnica de elementos informativos, oitivas de testemunhas, exame detalhado de imagens de câmeras de segurança e nos elementos colhidos, foi possível identificar o principal suspeito do crime [Danilo Silva], reconhecido em registros de vídeo circulando na região no mesmo período em que as vítimas foram vistas pela última vez”.

As autoridades também revelaram como se deu a confissão dele: “durante o interrogatório, o investigado confessou a prática do crime, apresentando detalhes que corroboram com os elementos de informação colhidos durante a investigação.

Gênero na COP30

Zona Azul da COP30 em Belém (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real/2025).

Durante a Conferência do Clima da ONU, os países aprovaram um Plano de Ação de Gênero de Belém  (GAP). A iniciativa amplia o orçamento e o financiamento sensíveis ao gênero e promove a liderança de mulheres indígenas, afrodescendentes e rurais, mas não cita as mulheres quilombolas, vítimas de violência no campo. 

Batizado com o nome da cidade-sede, o “Plano de Ação de Gênero de Belém” valerá para o período inicial de 2026 a 2034. Ao anunciar a aprovação do documento no sábado (22), o presidente da COP30, embaixador André Corrêa do Lago, foi interrompido por uma salva de palmas efusiva dos negociadores. Nos bastidores, a diplomacia de países ricos, como Austrália e o bloco de países europeus, conseguiu barrar a inclusão do termo “quilombola“, restando a expressão genérica “mulheres afrodescendentes”. 

A ONU Mulheres saudou a aprovação do Plano de Ação de Gênero e disse que o documento é um roteiro para ação nos próximos nove anos. E disse estar pronta para trabalhar com os países para que esse plano “se torne uma ferramenta de implementação inclusiva, efetiva e sustentável, para ações climáticas responsivas a gênero que beneficiem mulheres e meninas em toda a sua diversidade”, afirmou Sarah Hendriks, Diretora da Divisão de Políticas, Programas e Intergovernamental da ONU Mulheres.

Segundo a ONU, a decisão introduz elementos importantes sobre saúde, violência contra mulheres e meninas e mecanismos de proteção para defensoras ambientais, trabalho de cuidado, trabalho decente e empregos de qualidade, transições socialmente justas, além do reconhecimento de fatores interseccionais que moldam suas realidades, abrangendo mulheres com deficiência, mulheres indígenas, mulheres de comunidades rurais e remotas e mulheres e meninas afrodescendentes. (Colaborou Kátia Brasil)


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