Belém (PA) – O município de Anapu, no Pará, permanece como um dos epicentros de conflitos agrários e ambientais da Amazônia, vinte anos após o brutal assassinato da missionária Dorothy Stang, ocorrido em 12 de fevereiro de 2005. Seu legado de luta pela reforma agrária e pelo desenvolvimento sustentável continua vivo, mas enfrenta retrocessos significativos diante do avanço da grilagem, do desmatamento e da violência no campo.
A persistência dos conflitos territoriais e agrários
Anapu está inserido em uma das regiões mais conflituosas do Brasil em relação à posse da terra. A criação de assentamentos e Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), como os que Dorothy ajudou a implantar, gerou forte reação de madeireiros, grileiros e grandes fazendeiros, que veem essas iniciativas como um entrave à exploração predatória da Amazônia.
O município está situado na região sudoeste do Pará, uma área conhecida por sua biodiversidade e, ao mesmo tempo, por ser palco de intensos conflitos agrários. A construção da rodovia Transamazônica na década de 1970 abriu a região para a ocupação desordenada, atraindo migrantes, grileiros, madeireiros e grandes proprietários de terras. A falta de planejamento e de políticas públicas eficazes resultou em um cenário de caos fundiário, onde a grilagem de terras públicas e o desmatamento ilegal se tornaram práticas comuns.
Os dados sobre a violência agrária no município são alarmantes. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde a morte de Dorothy Stang, dezenas de trabalhadores rurais e lideranças comunitárias foram assassinados na região. Líderes camponeses continuam sob ameaça, vivendo sob constante medo de represálias por defenderem o direito à terra e à floresta.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2018 o município de Anapu registrou três assassinatos relacionados a conflitos agrários. No mesmo período, o estado do Pará contabilizou um total de 16 mortes em decorrência de disputas fundiárias. Uma das vítimas foi Márcio Rodrigues dos Reis, liderança em Anapu, assassinado em dezembro de 2019.
Segundo a CPT, dos estados em que mais se registraram conflitos por terra em 2023 destacam-se a Bahia (202 ocorrências), seguida do Pará (183), Maranhão (171), Rondônia (162) e Goiás (140). Do recorte por região, a que apresenta maiores números de conflitos por terra é a região Norte (700 ocorrências), que acumula 40,6% do total, seguida da Nordeste (530). A Comissão Pastoral da Terra (CPT) ainda não publicou o relatório completo “Conflitos no Campo Brasil 2024”. São dados que sugerem o quanto o Pará, apesar de intensa propaganda do governo estadual, ainda se mantêm como um celeiro de conflitos violentos na luta pela posse da terra (e da água). O relatório completo “Conflitos no Campo Brasil 2024” está previsto para ser lançado em abril de 2025.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tem sido pressionado a dar continuidade à regularização fundiária e à criação de novos assentamentos, mas enfrenta desafios burocráticos e políticos. Em 2022, a Justiça Federal determinou que o instituto criasse assentamentos em áreas conflituosas na gleba Bacajá, o que poderia beneficiar centenas de famílias. No entanto, a falta de infraestrutura e a demora na execução tornam os trabalhadores rurais ainda mais vulneráveis à violência dos invasores.
Entretanto, projetos que buscam sustentabilidade enfrentam resistências e dificuldades estruturais. Os produtores familiares lidam com dificuldades no acesso a crédito, falta de assistência técnica contínua e pressão de setores ligados ao agronegócio, que dificultam a adoção de modelos mais sustentáveis.
O próprio conceito de PDS, promovido por Dorothy Stang como alternativa à monocultura e ao desmatamento, perdeu força nas últimas décadas. A implementação desses projetos esbarra na dificuldade de garantir segurança jurídica para os assentados e na falta de apoio governamental consistente. Além disso, muitos assentamentos sofrem invasões por grileiros que desmatam e vendem terras ilegalmente.
Retrocessos e a pressão sobre a floresta
O desmatamento e a grilagem continuam sendo as maiores ameaças ao futuro de Anapu. Durante os anos de desmonte das políticas ambientais no Brasil, especialmente entre 2019 e 2022, com o governo de Jair Bolsonaro, a floresta sofreu ataques intensos, com a retirada de fiscalização ambiental e a redução de recursos para órgãos como o Ibama e o ICMBio. O avanço do desmatamento ilegal e das queimadas na região reflete diretamente o enfraquecimento dessas políticas.
Um exemplo preocupante é a situação da Terra Indígena Apyterewa, uma das mais desmatadas do país nos últimos anos. A pressão de invasores e a exploração ilegal de recursos naturais têm levado a conflitos constantes entre indígenas e madeireiros.
No entanto, medidas recentes do Governo Federal conseguiram reduzir o desmatamento na TI Apyterewa, onde vive o povo Parakanã, em 97% no primeiro semestre de 2024, um avanço significativo que demonstra a eficácia das ações de fiscalização quando implementadas de forma rigorosa. A Vila Renascer, principal núcleo de invasores, foi totalmente desocupada em dezembro de 2023, contribuindo para essa diminuição.
Ainda assim, a exploração predatória da terra continua sendo um problema. Em Anapu, grileiros vendem ilegalmente terras públicas destinadas a projetos de reforma agrária e áreas protegidas, incentivando a destruição da floresta. A conivência de setores políticos e econômicos com essa prática faz com que a impunidade prevaleça, mesmo diante de evidências e denúncias frequentes.
A grilagem é um dos principais problemas fundiários em Anapu. Ela envolve a falsificação de documentos para se apropriar de terras públicas, muitas vezes com o objetivo de explorar recursos naturais ou revender as terras. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), grande parte das terras em Anapu são públicas e deveriam ser destinadas à reforma agrária ou à conservação ambiental. No entanto, estima-se que mais de 60% dessas áreas estejam sob controle de grileiros.
Essas terras griladas sobrepõem-se a Unidades de Conservação. A Floresta Nacional (Flona) de Altamira, que faz parte do município de Anapu, sofre pressão constante de grileiros. Relatórios do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) mostram que áreas protegidas são invadidas para extração ilegal de madeira e expansão de pastagens.
A grilagem é frequentemente acompanhada de violência. Líderes comunitários e ambientalistas que denunciam essas práticas são ameaçados e, em alguns casos, assassinados. O assassinato de Dorothy Stang em 2005 pode ter sido um exemplo emblemático, mas outros casos continuam a ocorrer.
O desmatamento é uma das consequências diretas da grilagem e da expansão agropecuária. As áreas mais afetadas são aquelas próximas à rodovia Transamazônica e às margens de rios, onde a exploração madeireira e a conversão de florestas em pastagens são mais intensas. E esse desmatamento em Anapu está diretamente ligado à expansão da pecuária e da agricultura em larga escala, especialmente a soja. É preciso repetir: ‘a conversão de áreas de floresta para o cultivo de soja é um dos principais vetores de desmatamento na região’. Grandes fazendeiros e empresas usam terras griladas para expandir suas atividades, muitas vezes com a conivência de autoridades locais. Esse é um problema quase endêmico na região.
O legado de Dorothy Stang: entre a resistência e os desafios atuais
Dorothy Stang acreditava na possibilidade de um modelo de ocupação da Amazônia que equilibrasse produção e preservação ambiental. Seu assassinato, encomendado por fazendeiros da região, foi um alerta global sobre os perigos enfrentados por defensores da floresta. Contudo, vinte anos depois, os desafios permanecem os mesmos, e em muitos aspectos, até se intensificaram.
O legado de Dorothy se reflete na resistência dos trabalhadores rurais que continuam lutando por seus direitos à terra e na persistência de projetos sustentáveis que tentam criar alternativas ao desmatamento. No entanto, essa resistência ocorre em um cenário de forte retrocesso nas políticas agrárias e ambientais, tornando o futuro de Anapu incerto.
A luta pela Amazônia e pelos direitos dos trabalhadores do campo continua a ser travada em Anapu, mas sem uma mudança estrutural nas políticas públicas, o equilíbrio entre desenvolvimento e preservação ambiental permanecerá como um desafio distante. O município segue como um símbolo da disputa pela terra no Brasil – um território de resistência, mas também de violência e impunidade.
Duas décadas após a morte de Dorothy Stang, Anapu ainda enfrenta uma dura realidade: a violência no campo persiste, os projetos sustentáveis avançam lentamente e o desmatamento continua a ameaçar a floresta. Enquanto houver impunidade e conivência com crimes ambientais, a região permanecerá vulnerável às mesmas forças que mataram Dorothy em 2005.
“Passados 20 anos do assassinato de Dorothy, o contexto de violência no campo em Anapu permanece ceifando vidas, já que 20 trabalhadores foram assassinados em contexto de luta pela terra, houveram dois ataques com fogo à escola do assentamento, cresceu o desmatamento e as ameaças que vem aterrorizando famílias e marcando Anapu com o signo da violência. Do ponto de vista institucional, os órgãos públicos que deveriam regular a posse da terra, garantir assistência técnica e proteger os agricultores e agricultoras, são pouco efetivos e até mesmo ausentes, deixando os trabalhadores e trabalhadoras à própria sorte”, afirma Alcidema Coelho, do Comitê Dorothy Stang (PA).
Segundo ela, a luta de Dorothy permanece atual, “sobretudo frente a crise climática que se apresenta como um grande desafio, demonstrando que o modelo de produção capitalista é incapaz de avançar sem destruir o planeta e a vida humana. Nesse contexto, sem dúvida algumas, as mulheres tem assumido grande protagonismo na luta socioambiental e em defesa da Amazônia, com destaque para as mulheres indígenas e quilombolas”, ressalta.
O geógrafo e pesquisador da Universidade Federal do Pará, Bruno Malheiro, afirma que a primeira questão a se pensar é que as forças reacionárias que mataram Dorothy, principalmente depois do bolsonarismo, mais especificamente no Pará, ganharam musculatura e adesão. São grupos que estão mais fortes, saindo das sombras e ganhando representatividade política. “Hoje o questionamento da própria existência dos PDS ganha impulso e isso é uma das maiores ameaças por essas forças, que inclusive conseguem cooptar sujeitos locais”, afirma.
Anapu é um microcosmo dos desafios enfrentados pela Amazônia: grilagem, desmatamento, violência e desigualdade social. Vinte anos após o assassinato de Dorothy Stang, a região continua a lutar por justiça e sustentabilidade. Embora haja avanços, como o PDS Esperança e a atuação de organizações da sociedade civil, os retrocessos e ameaças persistem. O legado de Dorothy Stang nos lembra que a proteção da floresta e dos direitos das comunidades locais é uma luta contínua, que exige compromisso, coragem e ação coletiva. A esperança é que, com políticas públicas eficazes e participação social, Anapu possa se tornar um exemplo de desenvolvimento sustentável na Amazônia. É difícil imaginar? Talvez, mas é necessário.
A imagem que abre este artigo é de autoria de Alberto César Araújo e mostra o funeral de Dorothy Stang no meio da mata.
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