Por Ismael Machado
Barcarena (PA) – Maria do Socorro Costa da Silva, ou simplesmente “Socorro do Burajuba”, nasceu em Caraú, às margens do rio São Francisco, no município de Barcarena (PA). Sua vida, como a correnteza do rio, foi moldada pela água, pela terra e pelo tempo. Ainda jovem, corria entre os igarapés, nadava com destreza e carregava na cabeça o vestido de festa para não molhar. Era assim que ela atravessava os braços de rio que cortavam o seu quintal — e também a sua juventude — com a leveza de quem acreditava no mundo.
As lembranças desse tempo são um relicário que Socorro do Burajuba, como também é conhecida, conserva com ternura e revolta. Ela lembra da fartura: os peixes, os camarões, as frutas no quintal, as lavagens de roupa no rio, a tia batendo o sabão na pedra e o riso das mulheres como trilha sonora de uma vida simples, porém plena. Havia ali uma dignidade ribeirinha, uma força silenciosa que sustentava a comunidade.
Foi também no rio que Socorro viveu seu primeiro amor. Um engenheiro de olhos claros, mais velho, que chegou à região num fusca branco transportado pela balsa— Ele veio ver máquinas, obras e o que chamavam de “progresso”. Ela, com olhos de adolescente curiosa, viu o homem e viu também a mudança que ele trazia. O namoro nasceu na beira do rio, mas carregava, já naquele instante inaugural, o prenúncio de uma entrega — não apenas amorosa, mas territorial. “O amor veio do rio, mas trouxe também o olhar entreguista”, ela diz hoje, com um misto de lucidez e mágoa.
O tempo passou. O sítio virou estrada. O igarapé secou. O tatu e a paca deixaram de cruzar o caminho. A água — que era doce, limpa, fonte de sustento — tornou-se ameaça. Socorro começou a ver gente adoecendo. “Em 2003, já tinha muita gente doente”, lembra. E, pouco a pouco, a desconfiança virou denúncia. Em 2007, tornou-se ativista, para fazer jus ao nome que carrega. Em 2009, enfrentou pela primeira vez, de peito aberto, as grandes mineradoras que se instalaram em sua terra.
O quintal, antes generoso, agora é território de perda. As frutas morrem antes de amadurecer. O poço não dá água boa. O cheiro da água traz náusea e o gosto provoca diarreia. Ainda assim, Dona Socorro continua ali, firme, como uma árvore retorcida pelas intempéries, mas que insiste em dar sombra.
Ela carrega um laudo como quem carrega uma sentença: o lençol freático está contaminado, a água não serve para o consumo humano. Ela aponta para as folhas das árvores, cobertas de fuligem preta pela manhã, e fala do pitiú que sente quando toca na água. Lembra dos peixes mortos. Da época em que tudo era diferente.
Hoje, quando ouve falar da COP 30, diz com amargura: “Não fomos convidados, não fomos ouvidos. Somos mercadoria negociada. Só se fala em crédito de carbono, não se fala da vida que está morrendo aqui.” Mas Socorro não é do tipo que se cala. Seu corpo, sua memória e sua fala são resistência viva.
Ela é, ao mesmo tempo, testemunha e guardiã. A mulher que viu o rio dar e o rio tirar. Que amou com pureza, acreditou no futuro, e hoje enfrenta, com a dureza dos que sabem demais, o peso da destruição.
Mas enquanto houver luta, há também amor. Socorro do Burajuba segue amando o rio — mesmo doente, mesmo ferido — porque sabe que ali mora a origem de tudo: da sua história, da sua gente, da sua coragem.
Socorro do Burajuba denunciou os crimes ambientais da mineradora de alumínio, a norueguesa Hydro (Foto: Nailana Thiely/Amazônia Real/04/06/2025).
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