A promessa de um desenvolvimento baseado na floresta, que já foi um símbolo internacional de sustentabilidade da Amazônia, hoje se fragmenta no Acre. Trinta anos após a criação da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, a floresta dá lugar ao pasto, os seringueiros perdem apoio estatal e a direita conservadora ocupa o vácuo deixado por um projeto político em colapso. O legado de Chico Mendes, mais do que nunca, se equilibra entre a memória e o avanço de um modelo que, na prática, o desmente.
Rio Branco – Há 40 anos, os defensores da floresta recebiam ameaças de mortes através de recados, telefonemas ou abordagens veladas na rua. Agora, elas são virtuais e o ódio é amplificado por engajamento nas redes sociais. O seringueiro Raimundo Mendes de Barros, conhecido como Raimundão, primo de Chico Mendes, tem sido alvo desses ataques que chegam pelo WhatsApp. Tudo começou após a deflagração da Operação Suçuarana do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em 5 de junho, que visa combater o desmatamento e a pecuária irregular na Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes.
Um grupo do programa de mensagens da empresa Meta, intitulado “Manifestação pacífica” e com mais de mil seguidores de Xapuri e outros municípios, foi criado em 6 de junho. Entre os administradores do grupo estavam agricultores, pecuaristas e políticos locais. Não escondiam a raiva que sentiam de Raimundão: para eles, o seringueiro seria o responsável pela operação porque um de seus filhos trabalha no ICMBio.
A Amazônia Real teve acesso a trechos das ameaças à Raimundão. Em um áudio, uma pessoa diz: “Por causa desses caras [família de Raimundo Barros] a gente tem que virar tudo bandido, entendeu? Fazer igual aqueles caras de São Paulo: eles chegaram e meteram a bala, é o único jeito pra acabar com eles. É o único jeito, a Lei está do lado deles”.
O caso foi denunciado pela família e investigado pela Polícia Federal, que chegou a três pessoas responsáveis pelo grupo virtual. Em 13 de agosto, em audiência na comarca de Xapuri, o juiz Luís Gustavo Alcalde Pinto conduziu um acordo entre o acusado, Antonio de Lima Nunes, e Raimundão. Nunes, que havia gravado e publicado dois áudios difamatórios, reconheceu as ofensas.
“Esse pessoal aí são uma desgraça, esse pessoal aí”, dizia Nunes em um dos áudios. “Não deixa ninguém trabalhar do lado de casa de Sibéria aqui, esse pessoal aí. E esse pessoal desse Raimundão aí, se eles puderem detonar com a vida do cara, eles detonam esse pessoal, eles são uns desgraçados.”
Aos 80 anos, Raimundão representa a memória viva dos defensores da Amazônia. Nas décadas de 1960 e 1970, ao lado de Chico Mendes, Wilson Pinheiro e Ivair Higino, eles se uniram para interromper o ciclo de destruição então em curso no Acre. Sob o pretexto de fazer o Estado desenvolver, o então governador Francisco Wanderley Dantas iniciou um processo de convencimento para que pessoas da região Sul migrassem para ocupar as terras acreanas com gado. Vieram com vontade de transformar a floresta em pasto. E, assim, a história de ameaças se repete, e como diria Karl Marx, desta vez como farsa.
O agressor virtual concordou em pagar a Raimundão uma indenização de mil reais e se comprometeu a não repetir as ofensas, demonstrando remorso. A Amazônia Real procurou Nunes, mas ele deu o assunto por encerrado após a audiência.
O avanço da boiada
Operação Suçuarana na Resex Chico Mendes (Foto: ICMBio).
Maria Alexandrina, que vive há 53 anos na Resex Chico Mendes, é testemunha de um tempo que parece não existir mais na Amazônia. Ela lembra de quando o clima era previsível, as safras tinham hora certa e as famílias viviam da castanha e da borracha. Hoje, afirma que a floresta mudou “totalmente”, e não para melhor. “O que conheci antigamente mudou totalmente. Muito. Algumas coisas mudaram para melhor, outras mudaram para pior.”
O que piorou, segundo ela, tem relação direta com o desmatamento. “O clima fica diferente, muito mudado. Ninguém sabe mais quando é que vai chover, quando vai fazer frio, quando é o tempo das plantas. Às vezes planta e a produção não dá que preste.” O resultado dessa mudança é visível na vida cotidiana: “Tem lugar que não tem água para beber, já está secando devido à temperatura, o clima todo diferente. Prejudica o meio ambiente, prejudica a sobrevivência das pessoas”.
Para Alexandrina, essa mudança no clima e na falta de políticas públicas eficazes para garantir renda às famílias extrativistas são a raiz do problema. “Quem mora na floresta tem o tempo da seringa, o tempo da castanha, é por safra. Não é todo dia que a gente vai lá e tira o produto. Chegou um tempo que tinha que parar, e aí o preço da castanha era muito ruim, e o da borracha, pior ainda. Às vezes passamos anos sem vender um quilo de borracha. Aí as pessoas iam viver de quê?”
Sem alternativas, parte da comunidade decidiu migrar para a criação de gado. “Foi a coisa mais fácil que eles encontraram para sobreviver, que dá dinheiro mais fácil. Mas eu não concordo com esse desmatamento desmazelado. A pessoa pode manejar, criar 30, 40 cabeças de boi, sem precisar derrubar tudo”, admite. Alexandrina conta que o avanço do corte raso na floresta se intensificou durante o governo Jair Bolsonaro (PL). “O presidente que eu tô falando deu essa chance pro pessoal derrubar, brocar. E o pessoal dizia: ‘Agora o presidente liberou, a gente vai criar gado’. E brocaram mesmo. Foram quatro anos de grande desmatamento.”
Alexandrina teme que a proibição de novos roçados leve a fome para dentro da Resex Chico Mendes, pois não há outras alternativas. “Acho impossível proibir as pessoas de colocar seu roçadinho. Se não colocar, vai passar fome, porque não tem de onde tirar. Hoje é muita família para morar.”
A moradora também denuncia que recursos anunciados para apoiar produtores não estão chegando às comunidades. “Às vezes a gente vai para reunião e dizem: ‘Vai sair tantos mil para fulano’. Mas não chega na mão dos produtores. Por quê? A gente precisa comer, se vestir, comprar remédio, e muitas vezes é difícil.”
Na colocação onde Alexandrina vive, no Seringal Sibéria, comunidade Simitumba, a terra é familiar. “Antigamente era meu tio e meu pai. Hoje somos uns dez ou onze moradores, todos da família. Nada é vendido. Mas só com castanha e seringa não dá para viver.”
O colapso do projeto de poder
Trinta anos após a criação da Resex Chico Mendes, o modelo idealizado pelo líder sindical que uniu seringueiros, ambientalistas como Marina Silva, e governos de esquerda, como o de Jorge Viana, enfrenta um colapso: a floresta virou pasto, os extrativistas perderam apoio estatal e a direita conservadora ocupa o vácuo deixado pela esquerda.
Ex-prefeito de Xapuri por três mandatos, Francisco Ubiracy Machado, o Bira, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), acompanhou a transformação do que chama de “modelo de floresta industrializada”, que se trata da geração de empregos na cidade com base em produtos manejados da floresta. Com mais de três décadas de vida política e comunitária no município-símbolo da luta de Chico Mendes, Bira aponta que o embate entre floresta e boi nunca cessou.
Para ele, o avanço do agro dentro da Resex Chico Mendes foi financiado, em parte, por grandes pecuaristas de fora, que usam dos próprios extrativistas. “O desmatamento dentro da reserva está sendo financiado. Não é o pequeno que faz por consciência. Ele faz porque não tem alternativa. E quem banca são os grandes.” O problema acabaria, na visão do político, com a retirada do gado arrendado ou de “meia”, que nem mesmo pertence aos seringueiros. Isso porque pequenos moradores foram convencidos a abrir pasto para terceiros em troca de vacas ou promessas de lucro. O seringueiro pegava, desmatava, fazia o pasto e colocava o boi, mas nunca lucrava com essa operação.
Bira defende que a floresta só se sustentará se “der dinheiro em pé”, já que o avanço do agronegócio na Resex parece mais atrativo para as novas gerações. “A juventude hoje quer andar de moto, e Hilux. Não vive mais só do ideal do sindicato, da escola pensada pelo Chico Mendes. A gente precisa que a floresta dê renda real. Caso contrário, o modelo extrativista não se sustenta.”
O ex-prefeito esclarece que as experiências de economia sustentável foram sendo desmontadas a partir de 2018. A fábrica de preservativos, por exemplo, que gerava mais de 200 empregos diretos e envolvia mais de 500 famílias que forneciam a borracha, foi paralisada ainda no governo de Tião Viana (PT) e não voltou a funcionar mais nas duas administrações de Gladson Camelí (PP), um governador representante do agronegócio.
No governo Viana, a fábrica recebia um montante de 1 milhão de reais por mês para funcionar. A venda da borracha, que era gerenciada pela Fundação de Tecnologia do Estado do Acre (Funtac), passou a ser feita apenas por iniciativa das cooperativas, assim como a Fábrica de Castanha de Xapuri. A empresa francesa Veja/Vert Shoes começou a comprar a borracha diretamente dos extrativistas, pagando em dobro por serviços ambientais. Algo em torno de 10 reais a mais por quilo para a produção do solado de seus sapatos. Esse valor leva em conta a preservação e as condições em que a borracha é extraída. O fato de ser produzida em uma reserva extrativista atribui mais qualidade e legado ao produto. O quilo da borracha normalmente varia entre 12 a 13 reais e com o incentivo (10 reais) tem preço final entre 22 a 23 reais.

Extração do látex no Seringal Cachoeira, na Resex Chico Mendes (Foto Bruno Kelly/Amazonia Real/2018).
Essa visão histórica é aprofundada pela visão do cientista político e professor da Universidade Federal do Acre (Ufac) Nilson Euclides. Ele argumenta que “o Acre nunca foi de esquerda’’ e o eleitorado acreano sempre foi conservador, apesar dos 20 anos de governos petistas.
Em Xapuri, em particular, os seringueiros que por décadas sustentaram a economia local com a extração do látex começaram a ser sistematicamente expulsos de suas terras. O desmatamento em larga escala avançava sobre territórios tradicionalmente ocupados, sem qualquer garantia de permanência para as famílias que ali viviam. É quando o movimento seringueiro, liderado por Chico Mendes, fincou as bases do que mais tarde se tornaria uma das experiências políticas mais singulares da Amazônia: a Florestania.
A ideia, que unia preservação ambiental, cidadania e desenvolvimento sustentável, não era apenas um slogan de campanha, mas um projeto que emergia com a força de movimentos sociais e da crescente onda progressista que se espalhava pelo Brasil. Em 1998, a vitória de Jorge Viana ao governo do Acre consolidou esse projeto (ele permaneceu no poder de 1º de janeiro de 1999 até 1º de janeiro de 2007).
A partir do governo de Tião Viana, o PT trouxe muitos conservadores para dentro de seu governo, desfigurando o projeto original e focando em políticas mais alinhadas ao agronegócio, explica o cientista político,. Assim como o irmão Jorge Viana, Tião também teve dois mandatos consecutivos, de 2011 a 2019.
Euclides critica a falta de uma política de formação de eleitorado e de alternativas econômicas para os extrativistas. “Aquela ideia lá de sustentabilidade, ‘o governo sustentável raiz’, vamos chamar assim, ela vai se diluindo no tempo”, explica ele, acrescentando um tom crítico. No caso da Resex Chico Mendes, afirma, era necessário uma real mobilização para as populações que participaram, de fato, de sua construção e não serem apenas um “slogan” para estrangeiros interessados na Amazônia.
O cientista político explica que a tendência das pequenas propriedades é a de serem vendidas para a ampliação de grandes fazendas para que, no fim, haja pressões políticas como as que houveram após a operação Suçuarana. “A extrema direita sempre ofereceu soluções fáceis para problemas complexos. A pecuária no Acre é extensiva, não é de confinamento. Então, você precisa de um boi por hectare. Se forem 100 hectares serão 100 bois.”




O prefeito de Xapuri, Maxsuel Maia (segundo da esquerda para direita) no local onde ocorrerá a ExpoXapuri, feira do agronegócio, em setembro (Foto: Prefeitura de Xapuri) e agentes na Operação Suçuarana na Resex Chico Mendes (Foto: ICMBio).
Preservar não enche o prato
Em entrevista à Amazônia Real, o atual prefeito de Xapuri, Maxsuel Maia (PP), falou sobre a operação Suçuarana. Em junho, moradores pró-agronegócio reagiram com protestos, bloqueando a BR‑317 em Xapuri, denunciando a falta de diálogo e pedindo uma nova demarcação da Resex Chico Mendes – a unidade foi criada em março de 1990 com cerca de 970 mil hectares no Acre.
“Existe uma legislação, ela tem que ser cumprida, você tem uma limitação para trabalhar na área. Agora, muitas vezes essa limitação ela não garante a essas populações uma qualidade de vida, uma vida digna”, justifica Maia. Ele cobra do governo federal alternativas. “Não, você não pode derrubar, você não pode queimar” ok, Estado, e quais são as alternativas que você vai me oferecer para que eu permaneça dentro da reserva, não derrube, não queime mas sobreviva?”
O prefeito defende a política “racional” do passivo ambiental, que consiste em delimitar entre dois e três hectares por unidade produtiva extrativista para o desenvolvimento de sistemas agroflorestais. Para ele, é possível manter a agricultura do extrativismo da castanha e da borracha ao mesmo tempo que fortalece outras agriculturas alternativas ao gado. “O principal culpado é o próprio Estado, houve ocupação irregular e o Estado estava ausente. Só depois que as pessoas se estabeleceram é que o Estado chegou e disse ‘você tem que sair’”, afirmou.
A Resex Chico Mendes abriga cerca de 20 mil pessoas, distribuídas em sete municípios. De acordo com o próprio órgão, cerca de 80% da reserva possui alguma situação de irregularidade. Maia é contra a expulsão das famílias que vivem de modo irregular na reserva e defende a diferenciação entre invasores e ocupantes tradicionais que estão irregulares. “Existem famílias que nasceram ali, que os pais nasceram ali, que estavam desde antes da área de reserva. Para essas pessoas tem que ser dado um tratamento diferente”, defende.
No Acre, esse desafio não é apenas preservar o passado, mas construir um futuro onde o lema da “Florestania” seja um um caminho real de dignidade e não uma palavra perdida no imaginário amazônico.

Operação Suçuarana na Resex Chico Mendes (Foto: ICMBio).
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