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Da crítica ao modelo de desenvolvimento às enchentes no Rio Grande do Sul

Da crítica ao modelo de desenvolvimento às enchentes no Rio Grande do Sul

A crise climática vivenciada pelo Rio Grande do Sul pode ser contada a partir das lutas em que se envolveu uma das mais tradicionais entidades do movimento ambientalista brasileiro, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), fundada em abril de 1971.

“A Agapan sempre criticou o modelo de desenvolvimento adotado pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil”, lembra o biólogo, arquiteto e ex-presidente da entidade, Francisco Milanez, que, com 14 anos de idade, aderiu à Agapan quatro meses após a fundação da entidade. O uso intenso, já naquela época, de agrotóxicos na agricultura gaúcha voltada à exportação – e que gerou solos compactados hoje resistentes à absorção das chuvas – constou da primeira denúncia institucional, lembra Milanez.

O autor das críticas foi o agrônomo José Lutzenberger, que havia sido diretor da Bayer, a gigante produtora de venenos agrícolas. Na primeira presidência da Agapan há 53 anos, Lutzemberger, com sua atuação, começou a antever, há mais de meio século, o desastre que abate o Estado.

Milanez, que até hoje não se desligou da entidade, segue linha semelhante. E, ao contar o início da longa trajetória pessoal – “um amigo que já estava na universidade me convenceu a entrar na Agapan” –, escancara que a relação entre causa e consequência que explica a História recente da mudança no clima.

“Ilhado” em sua casa em Porto Alegre quando me deu essa vídeo-entrevista, durante as chuvas intensas que destruíram 80% do Rio Grande do Sul em abril e maio, Milanez observa que as suas recordações, pessoais e institucionais, são paralelas à crise climática atual.

A sua formação política e a profissão escolhida também derivam da cosmovisão formada e consolidada na Agapan e nas causas contra os agrotóxicos, a defesa de direitos humanos associados ao meio ambiente, incluindo o clima e a palavra de ordem “A vida sempre em primeiro lugar”.

Milanez é especialista em Análise de Impactos Ambientais pela Universidade Federal do Amazonas e Mestre em Educação em Ciências, além de doutor em Educação em Ciências. “Entrei no curso de Engenharia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul porque os meus amigos achavam que eu era bom em matemática e física e fizeram a minha inscrição no vestibular, com arquitetura como segunda opção – que eu sequer havia pensado em fazer. Depois entrei na Faculdade de Direito, em 1976, no auge da ditadura, mais para conhecer e me defender. Só não fiz três disciplinas de Direito processual”, relembra Milanez, que não se formou.

Naquele mesmo ano, Lutzemberger lança o clássico “O Fim do Futuro? Manifesto Ecológico Brasileiro”, em que relaciona diferentes noções de tempo, entre passado futuro e presente para profetizar o agravamento da então emergente crise ambiental e as catástrofes provocadas pela forma de produzir e consumir intensamente tudo.

Milanez presidiu a Agapan em mais de uma oportunidade e ainda hoje integra a sua diretoria. No governo, propôs e coordenou o Plano Rio Grande do Sul Sustentável durante a administração de Tarso Genro (2011-2015) e se dedicou ao capítulo da produção de alimentos orgânicos e energias alternativas e outros. É proprietário da Empresa Saúde, da área de alimentação.

Escolhi morar em um lugar alto. Eu já esperava isso”

“Hoje eu sou um autônomo e na Agapan trabalho voluntariamente. Com as enchentes, tenho dificuldades para trabalhar profissionalmente, mas tenho demandas contínuas [por exemplo, durante a entrevista que me deu, ele atendia a mais dois outros repórteres no celular]. Recebemos aqui em casa famílias de refugiados climáticos e ficamos sem água, mas está tudo em ordem, na medida do possível. Tenho a sorte de não morar em um lugar atingido pelas enchentes”, conta.

Mas, rapidamente, ele próprio observa. “Em verdade, não é apenas sorte. Vim morar aqui porque é um lugar alto. Eu já esperava isso. Uma característica de minhas escolhas é morar em lugares altos”, observa, mostrando como as suas próprias opções de vida expressam a crítica ao modelo global de desenvolvimento baseado no uso extremo da natureza, que ele próprio, a Agapan e os ambientalistas gaúchos já faziam há mais de cinco décadas.

“Essa situação já era por nós conhecida desde 1974, por conta da Conferência de Estocolmo [a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, que pela primeira vez reuniu chefes de estado para tratar da degradação ambiental, que foi realizada junho de 1972 na capital da Suécia].

Naquela época já estávamos muito preocupados com a questão dos agrotóxicos. O Lutz (como ambientalistas se referem a Lutzemberger) saiu da Bayer [o conglomerado agroquímico que hoje fabrica até sementes transgênicas], onde ele era diretor e ganhava muito bem, justamente porque a empresa entrava naquele momento na área de agrotóxico. Conservacionismo já existia há séculos, mas a Agapan inaugura o movimento ambientalista como crítica ao modelo de desenvolvimento e como forma de viver, com valores de vida. Em Estocolmo, onde a cúpula foi só de meio ambiente, a disputa era essa”.

“A ONU levou 20 anos para reconhecer que era um problema de desenvolvimento, e a Rio 92 passou a ser a cúpula de meio ambiente e desenvolvimento. Mas, aí, já haviam lançado uma “contra distorção” do conceito, de 1983, de sociedade sustentável, para Desenvolvimento sustentável, como era definido pelo relatório O Nosso Futuro Comum, da Comissão Brundtland”.

Contradição: o pioneiro Estado ambientalista cujo governador retalha a lei

Inevitavelmente, a entrevista, marcada originariamente para tratar do perfil pessoal de Milanez, aborda o tema com o qual ele, de alguma forma, está envolvido desde 1971. As enchentes de agora, segundo ele, derivam da opção agropecuária. É uma contradição para o Estado que criou a legislação ambiental brasileira mas que, a partir de 2019, na primeira gestão do ainda governador tucano Eduardo Leite (PSDB), passou a retalhar 480 de seus pontos para beneficiar a especulação imobiliária e as monoculturas.

“Tudo era previsível. Quando tivemos as cheias em 2023, as pessoas diziam que aquele era um fenômeno que se repetia apenas de 70 em 70 anos e eu contestava: ‘não, viriam piores e mais frequentes cheias Um texto do Lutz, anterior ao livro ‘Fim do futuro? Manifesto ecológico brasileiro’, de 1976, já indicava essa situação”.

Vista aérea de Canoas, Rio Grande do Sul, em 5 de maio de 2024. Foto: Reuters/Folhapress

“Os grandes agricultores apoiam o plantio de soja na Amazônia, no Centro-Oeste e aqui, mas já tivemos três anos de seca e agora essa chuva que fez perder a safra. Na época em que eu plantava, [a seca] era de 10 em 10 anos. Eu disse em um debate na federação dos grandes agricultores, que agricultura é o ‘lobo da agricultura’, porque está envenenando a própria agricultura e a nós todos”. E continua.

“Tínhamos no Rio Grande do Sul, na metade norte, a floresta ombrófila mista, a floresta de araucária, e a metade sul, bioma pampa. A metade norte nós colonizamos, e os colonos cortaram floresta e mataram os indígenas. A partir de 1974, os militares priorizaram e financiaram a soja, que ocupou o norte do Estado, compactando o solo, que virou uma cerâmica impermeável. É isso que está fazendo essa chuva de agora”.

A crítica se estende: “Tiraram das encostas as matas que absorveriam boa parte da água e freariam as chuvas. Aí o rio aguentaria a água descendo. Mas, sem floresta, a água vai para o rio em alta velocidade, logo extravasa e vira enchente. Para piorar, tiraram também as matas ciliares e a terra vai para o rio, que assoreia. Cada vez menos chuva vai resultar em mais enchentes. Foi o que aconteceu em Muçum, a cidade mais atingida, e que não casualmente foi a que mais desmatou no ano passado”.

Solução? Basta cumprir a lei. É baratíssimo!”

Milanez estima que, para reverter a situação, “bastaria ao governo cumprir a lei, recompondo e cercando matas ciliares e a floresta de encosta, sem grandes investimentos, para não deixar o boi entrar. Em dois anos já se terá recomposta alguma vegetação, diminuirá a velocidade de água e os deslizamentos e aumentará a absorção de água. É tudo baratíssimo”.

Fiel ao modo Agapan de ser, ele preconiza ainda hoje, como saída para a humanidade, a reformulação da forma de produzir e consumir: “A sociedade tem que ter outra forma de viver. As coisas que poluem mais hoje são as guerras e o estilo de vida one way, descartável. Ambas precisam ser revisadas”.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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