No meio da mata, o farfalhar das folhas denuncia o movimento na copa das árvores. De repente, emergem dois pontos peludos de cor acinzentada. O que mais chama atenção nessas criaturas são suas caudas longas e sua aparência felpuda, que traz na fronte uma barba ruiva que se estende até a barriga. Estamos diante de um casal de zogues-zogues-de-mato-grosso, considerado um dos primatas mais ameaçados do planeta. O macaco é uma espécie amazônica, mas seu lar está restrito ao norte de Mato Grosso, numa infeliz sobreposição ao Arco do Desmatamento. A dupla de macacos avistados vive num fragmento de floresta de apenas 4 hectares, no quintal de um proprietário rural.
O drama deste casal isolado e as ameaças que rondam o futuro da espécie, encurralada pelo desmatamento, foram contadas por ((o))eco em uma reportagem em novembro de 2022. Pouco mais de um ano depois, um projeto de turismo de base comunitária que envolve o plantio de um corredor florestal começa a tomar forma na região com o objetivo de mudar o destino dos zogues-zogues-de-mato-grosso (Plecturocebus grovesi), considerado um dos 25 primatas mais ameaçados do mundo.
O fragmento onde vive o casal “ilhado” está localizado no assentamento Gleba Mercedes, em Sinop, no norte de Mato Grosso. Mais especificamente no “quintal” de Armando Antônio, um paranaense de 61 anos e um dos tantos que vieram do sul para ocupar esta região da Amazônia. A minúscula floresta é rodeada por pastos por um lado e pelo rio Matrinxã por outro. Uma mudança nessa paisagem, entretanto, está em curso.
Quando a água divide a floresta
A fragmentação que ameaça o casal de zogue-zogues isolado não ocorreu apenas pelo desmatamento. A implantação da usina hidrelétrica de Sinop, que entrou em funcionamento em setembro de 2019, mudou drasticamente a paisagem. Com o represamento feito pela usina, o Matrinxã, então um pequeno córrego, virou um largo rio. Naquele trecho são cerca de 300 metros de uma margem a outra.
No final de janeiro, a área foi palco de um mutirão com a participação de moradores e diversos atores regionais para o plantio de um corredor florestal. As sementes de 47 espécies nativas foram distribuídas ao longo de aproximadamente 1 hectare, onde a floresta irá renascer e fazer a conexão com outro fragmento.
Uma vez estabelecidas as árvores, o corredor vai mais que triplicar a extensão de floresta disponível para os macacos, de 4 para quase 15 hectares.
A iniciativa de restauração florestal é um dos braços do programa Caminhos do Rio, coordenado pelo Instituto Ecótono em parceria com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Fundação De Amparo Ao Ensino, Pesquisa e Extensão Do Norte De Mato Grosso (FAEPEN/MT), com recursos da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico (SEDEC-MT) e Instituto Centro de Vida (ICV). A restauração conta ainda com apoio da Embrapa Agrossilvipastoril de Sinop, do Projeto Arborescer (projeto de extensão da UFMT), do Grupo de Ecologia Aplicada de Sinop (GECAS-UFMT) e do GEAS/UFMT Sinop; e as sementes são da Embrapa e da Rede Sementes Portal da Amazônia. Foi firmado também um convênio com a prefeitura de Sinop, para ceder equipamentos e pessoal ao projeto.
O programa tem como missão promover o desenvolvimento sustentável de base comunitária no norte de Mato Grosso como ferramenta para manter a floresta em pé, com os objetivos de aumentar o habitat de quatro primatas amazônicos ameaçados de extinção e implementar o turismo de observação de fauna em um assentamento rural.
“A região do futuro corredor florestal é um ecótono Amazônia-Cerrado, e essa zona de transição com sua enorme biodiversidade tem um potencial turístico que é nosso grande aliado para manter as florestas em pé. Infelizmente, as florestas de Sinop e região estão desaparecendo a uma velocidade alarmante, porque são alvo de especulação imobiliária, de construção de grandes empreendimentos e arrendamento de terras para plantio de grandes extensões de soja e milho. É um grande desafio manter as florestas em pé, e felizmente temos muitas pernas pra correr contra o tempo, junto com a comunidade escolar da Gleba Mercedes e moradores que tem primatas como vizinhos. O poder que a atividade de plantar um futuro corredor florestal e monitorar espécies ameaçadas exerce no engajamento das pessoas é muito grande”, conta a diretora executiva do Instituto Ecótono, Christine Steiner, uma das coordenadoras do projeto.
Apesar do seu tamanho claramente insuficiente, apenas no fragmento florestal da propriedade do Seu Armando, por exemplo, vivem três espécies de macaco. Além do zogue-zogue, o quintal abriga o sagui-do-mato-grosso (Mico schneideri) e até mesmo o macaco-aranha-da-cara-preta (Ateles chamek). A ideia é implementar uma trilha na propriedade para o avistamento das três espécies, todas elas ameaçadas de extinção, e promover o primate watching – o turismo baseado na observação de primatas.
Além de Armando, a iniciativa busca envolver outros proprietários rurais, assentamentos e moradores da região para consolidar um roteiro com pontos de apoio, hospedagem e que contemplem diferentes destinos onde seja possível encontrar uma variedade de espécies.
O coordenador do MAB, Silvio Roberto da Silva, que coordena o projeto ao lado de Christine, destaca a importância de trazer o turismo como alternativa de renda para o assentamento, que foi fortemente impactado pela usina hidrelétrica de Sinop, com o alagamento de parte do território. “É importante para que essas famílias que perderam parte de suas terras tenham condições de ter uma renda a partir do turismo, a partir das pessoas que vão observar esses primatas ali. E também para mostrar como é possível a gente iniciar um processo de reflorestamento em volta deste lago, para que as famílias possam utilizar, assim como os animais”, aponta Silvio.
O projeto também prevê a formação de guias especializados na observação de fauna e capacitados para identificar os primatas. A ideia é que estes guias – e os próprios moradores locais – possam contribuir com o monitoramento dos primatas através de seus registros e relatos, numa rede de ciência cidadã local. Junto a isso, o projeto busca trabalhar a sensibilização da comunidade escolar sobre a importância da floresta em pé e o potencial turístico da observação de fauna.
O próprio corredor será um ponto turístico, onde visitantes poderão saber mais sobre a flora da região e os diferentes métodos de restauração florestal.
“Nós estamos fazendo a capacitação com alguns condutores locais, muitas atividades de educação ambiental na escola ali próxima, para falar pras pessoas do zogues-zogues-de-mato-grosso. Porque as crianças nem sabiam que é um bicho super ameaçado”, explica o primatólogo Gustavo Canale, professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e assessor técnico do projeto sobre o zogue-zogue-de-mato-grosso.
Além disso, a expectativa é que o pequeno corredor seja apenas o começo de um esforço maior de restauração para devolver a floresta ao habitat do zogue-zogue. “Estamos fazendo ali um piloto. Porque é uma área que a gente não conhece o solo, algumas características do relevo, nem as plantas que vão vingar ali na região. E a ideia é, a partir desse piloto, acompanhar o desenvolvimento para que depois a gente possa replicar em outros lugares. Então estamos focados nesse 1 hectare. Dando certo vamos atrás de recursos para replicar em mais áreas”, completa o pesquisador da UFMT.
Para acompanhar o sucesso da restauração, estudantes da UFMT estão encarregados do monitoramento do crescimento e mortalidade de plântulas (estágio inicial das plantas) e da fauna das duas matas que serão interligadas, feito mensal e quinzenalmente, respectivamente.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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