Por Philip M. Fearnside e Walter Leal Filho
O Brasil caminha para um futuro desastroso se o aquecimento global escapar de controle humano, fazendo com que o país deve assumir um papel de liderança no combate às mudanças climáticas, aproveitando a oportunidade da COP 30. Isto exige liderar por exemplo com mudanças rápidas nas atuais políticas do governo brasileiro. Em 21 de março publicamos um editorial explicando isto na conceituada revista Science, disponível aqui. A seguir apresentamos essas informações em língua portuguesa.
A 30ª Conferência das Partes (COP 30) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas será realizada em novembro de 2025 em Belém, na Amazônia brasileira. Para que a COP 30 seja eficaz em liderar o mundo para reverter seu curso desastroso em direção a um ponto de inflexão climática, será necessário não apenas interromper o desmatamento, mas também implementar uma rápida eliminação mundial da combustão de combustíveis fósseis [1]. No entanto, como anfitrião da conferência, o Brasil não está liderando pelo exemplo. À medida que os participantes se preparam para a COP 30 nos próximos meses, é importante que a reunião seja usada não apenas para concordar com novas medidas globais para combater as mudanças climáticas, mas também para encorajar o país anfitrião a mudar as práticas atuais.
Com exceção do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas do Brasil, praticamente todos os poderes do governo do país estão promovendo atividades que aumentam as emissões de gases de efeito estufa [2]. Por exemplo, o Ministério dos Transportes pretende abrir vastas áreas da floresta amazônica à entrada de desmatadores através do “trecho médio” de 408 km da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) [3 ] e estradas secundárias associadas [4]. A vasta área de floresta [5] aberta por essas estradas contém carbono suficiente [6] para empurrar o aquecimento global [7] para além de um ponto de viragem irreversível [8].
O Ministério da Agricultura subsidia a transformação de pastagens em soja, que é um importante motor [9] da desflorestação porque, quando a terra se torna mais valiosa para a soja do que para o gado, os fazendeiros (incluindo aqueles fora da Amazónia) vendem as suas terras [10] aos plantadores de soja e usam os lucros para comprar áreas muito maiores de floresta tropical amazónica barata para novas fazendas [11] em áreas mais remotas. Cada hectare de pastagem convertido em soja pode causar vários hectares de desflorestação. A agência de regularização fundiária do Brasil legaliza reivindicações ilegais de terras [12] e ocupações em terras governamentais (um dos principais impulsionadores da desflorestação [13] e estímulo para novas reivindicações ilegais). Paralelamente, o Ministério de Minas e Energia está abrindo novos campos de petróleo e gás [14] na floresta amazônica [15] e em áreas offshore, incluindo seu plano de perfuração na foz do Rio Amazonas [16], perto do local da próxima COP.
O plano atual do Brasil [17] é continuar a perfurar petróleo até que o país atinja “o nível [econômico] dos países desenvolvidos”, o que é uma fórmula para o desastre climático. Em 2021, a Agência Internacional de Energia emitiu um relatório [18] apresentando o argumento para não abrir novos campos de gás ou petróleo no mundo, restringindo a extração aos campos existentes que devem reduzir suas taxas de extração a zero até 2050. Isso ocorre porque novos campos implicam extração de longo prazo. Por exemplo, o campo proposto [19] na foz do Rio Amazonas levaria 5 anos para começar a produzir petróleo e outros 5 anos para pagar o investimento, e como ninguém iria querer parar com lucro zero, a iniciativa implica extração nas próximas décadas — muito depois que o mundo tiver que abandonar os combustíveis fósseis.
A liderança do Brasil na luta contra o aquecimento global faria todo o sentido, não apenas pela oportunidade proporcionada pela realização da COP 30 e pela importância das próprias emissões potenciais do país, mas também pelo impacto catastrófico no Brasil se o aumento da temperatura escapasse ao controle humano. O Brasil perderia sua floresta amazônica [20 ], incluindo o papel vital que desempenha na reciclagem da água que abastece a grande São Paulo, a quarta maior cidade do mundo. A bacia hidrográfica que inclui São Paulo recebe de 16% [21] a 70% [22] de sua precipitação anual de água reciclada pela floresta amazônica [23] e transportada como vapor de água [24] pelos ventos conhecidos como “rios voadores”. A perda até mesmo da menor dessas estimativas deixaria a cidade sem água [25] em anos de seca extrema como 2014 [26] e 2021 [27], e as mudanças climáticas em curso devem aumentar muito a frequência de secas severas ali. A região semiárida densamente povoada do Nordeste do Brasil se tornaria um deserto [28], e as grandes populações ao longo da costa atlântica do Brasil seriam expostas ao aumento das tempestades [29] e dos níveis do mar [30]. O agronegócio brasileiro e sua agricultura familiar sofreriam grandes impactos [31]. Secas de severidade “sem precedentes” [32] são esperadas no Brasil, e a frequência de secas severas aumentaria em pelo menos 10 vezes [33]. “Surpresas climáticas” [34] como as enchentes de 2024 [35] no Rio Grande do Sul se tornariam mais comuns.
A COP 30 enfrenta grandes desafios para atingir seus objetivos climáticos. Uma parte fundamental disso é conter as emissões da Amazônia e, para isso, o maior desafio é obter uma mudança radical nas políticas do governo brasileiro, tanto sobre os impulsionadores do desmatamento quanto sobre a extração de combustíveis fósseis [36].
A imagem que abre este artigo mostra as obras do Parque da Cidade Cop30, em Belém (Foto: Rafa Neddermeyer/COP30 Amazônia/PR).
NOTAS
[1] UNFCCC (United Nations Framework Convention on Climate Change). 2023. Technical dialogue of the first global stocktake. Synthesis report by the co-facilitators on the technical dialogue. UNFCCC, Bonn, Alemanha.
[2]. Vilani, R.M., P.M. Fearnside & C.J.S. Machado. 2025. Brazilian President Lula’s Climate Authority Challenge: Pragmatism versus Coalition Politics. Environmental Conservation.
[3] Fearnside, P.M. 2022. Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial. Amazônia Real.
[4] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020. Trans-Purus, a última floresta intacta. Amazônia Real.
[5] Santos, J.L., A.M. Yanai, P.M.L.A. Graça, F.W.S. Correia & P.M. Fearnside. 2023. Impacto simulado da BR-319. Amazônia Real.
[6] Fearnside, P.M. 2020. TransPurus: Amazonia’s biogeochemical cycles depend on the fate of the region’s largest block of intact forest. American Geophysical Union (AGU) Fall Meeting 2020. Session No. GC009 “Tropical Forest Biogeochemical and Carbon-Water Cycle Coupling: Observations, Modeling, and Feedbacks III,” Paper Number: GC009-0015. ESS Open Archive.
[7] Pereira, C.C., D.J. Rodrigues, R.A. Salm & P.M. Fearnside. 2025. Amazon projects pose risks to Brazil and the World. BioScience 75: art. biaf002.
[8]. Ferrante, L., M.B.T. de Andrade, L. Leite, C.A. Silva Junior, M. Lima, M.G. Coelho Junior, E.C. da Silva Neto, D. Campolina, K. Carolino, L.M. Diele-Viegas, E.J.A.L. Pereira & P.M. Fearnside. 2021. BR-319: O caminho para o colapso da Amazônia e a violação dos direitos indígenas. Amazônia Real.
[9] Fearnside, P.M. 2021. O desmatamento da Amazônia. Amazônia Real.
[10]. Arima, E.Y., P. Richards, R. Walker & M.M. Caldas. 2011. Statistical confirmation of indirect land use change in the Brazilian Amazon. Environmental Research Letters 6: 024010.
[11] Richards, P.D., R. Walker & E.Y. Arima. 2014. Spatially complex land change: The Indirect effect of Brazil’s agricultural sector on land use in Amazonia. Global Environmental Change 29: 1-9.
[12] Fearnside, P.M. 2023. Lula e a questão fundiária na Amazônia. Amazônia Real, 17 de janeiro de 2023.
[13] Berenguer, E., D. Armenteras, A.C. Lees, P.M. Fearnside, A. Alencar, C. Almeida, L. Aragão, J. Barlow, B. Bilbao, P. Brando, P. Bynoe, M. Finer, B. M. Flores, C.N. Jenkins, C. Silva Jr, C. Smith, C. Souza, R. García-Vilacorta & N. Nascimento. 2024. Drivers and ecological impacts of deforestation and forest degradation in the Amazon. Acta Amazonica 54(Special 1): art. e54es22342.
[14] Fearnside, P.M. 2023. O leilão do “Fim do Mundo” para exploração de gás e petróleo. Amazônia Real, 14 de dezembro de 2023.
[15] Fearnside, P.M. 2020. Os riscos do projeto de gás e petróleo “Área Sedimentar do Solimões”. Amazônia Real, 12 de março de 2020.
[16] Fearnside, P.M. 2025. O Lula acordará para a crise climática? Amazônia Real.
[17] Pupo, F. & J. Gabriel, 2024. Brasil vai explorar petróleo até ter nível de país desenvolvido, diz ministro de Energia. Folha de S. Paulo. 03 de abril de 2024.
[18] IEA (International Energy Agency). 2021. Net Zero by 2050: A Roadmap for the Global Energy Sector. IEA, Paris, França. 222 p.
[19]. Brown, S. 2023. Mouth of the Amazon oil exploration clashes with Lula’s climate promises. Mongabay. 28 de abril de 2023.
[20] Flores, B.M., E. Montoya, B. Sakschewski, et al. 2024. Critical transitions in the Amazon forest system. Nature 626: 555–564.
[21] Yang, Z. & F. Dominguez. 2019. Investigating land surface effects on the moisture transport over South America with a moisture tagging model. Journal of Climate 2, 6627-6644.
[22] van der Ent, R.J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continents. Water Resources Research 46: W09525.
[23] Zemp, D.C., C.-F. Schleussner, H.M.J. Barbosa, R.J. van der Ent, J.F. Donges, J. Heinke, G. Sampaio & A. Rammig. 2014. On the importance of cascading moisture recycling in South America. Atmospheric Chemistry and Physics 14: 13337–13359.
[24] Martinez J.A. & F. Dominguez. 2014. Sources of atmospheric moisture for the La Plata River Basin. Journal of Climate 27: 6737–6753.
[25] Fearnside, P.M. 2021. As lições dos eventos climáticos extremos de 2021 no Brasil: 2 – A seca no Sudeste. Amazônia Real, 20 de julho de 2021.
[26] Finke, K., B. Jiménez-Esteve, A.S. Taschetto et al. 2020. Revisiting remote drivers of the 2014 drought in South-Eastern Brazil. Climate Dynamics 55: 3197–3211.
[27] Getirana, A., R. Libonati & M. Cataldi. 2021. Brazil is in water crisis — it needs a drought plan. Nature 600: 218-220.
[28] Oyama, M.D. & C.A. Nobre. 2004. Climatic consequences of a large-scale desertification in northeast Brazil: A GCM Simulation Study. Journal of Climate 17:3203-3213.
[29] Gramcianinov, C.B., J. Staneva,·R. de Camargo &·P.L. da Silva Dias. 2023. Changes in extreme wave events in the southwestern South Atlantic Ocean. Ocean Dynamics 73: 663–678.
[30] Montanari, F., M. Polette, S. M.P. Queiroz & M.B. Kolicheski. 2020. Estimating economic impacts of sea level rise in Florianópolis (Brazil) for the year2100. International Journal of Environment and Climate Change 10: 37-48.
[31] Assad, E.D., R.R.R. Ribeiro & A.M. Nakai. 2019. Assessments and how an increase in temperature may have an impact on agriculture in Brazil and mapping of the current and future situation. In: C. Nobre, J. Marengo & W. Soares (Eds). Climate Change Risks in Brazil. Springer, Cham, Suiça. p. 31–65.
[32] Kay, G., N.J. Dunstone, D.M. Smith, R.A. Betts, C. Cunningham & A.A. Scaife. 2022. Assessing the chance of unprecedented dry conditions over North Brazil during El Niño events. Environmental Research. Letters 17:064016.
[33] Price, J., R. Warren, N. Forstenhäusler, C. Wallace, R. Jenkins, T.J. Osborn & D.P. Van Vuuren. 2022. Quantification of meteorological drought risks between 1.5 °C and 4 °C of global warming in six countries. Climatic Change 174: art. 12.
[34] Schneider, S.H., B. Turner & H. Garriga. 1998. Imaginable surprise in global change science. Journal of Risk Research 1: 165-185.
[35] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2024. Surpresas climáticas: A Amazônia e as lições da enchente catastrófica no Rio Grande do Sul. Amazônia Real, 03 de julho de 2024.
[36] Esta é uma tradução de Fearnside, P.M. & W. Leal Filho. 2025. COP 30: Brazilian policies must change. Science 387: 1237. PMF foi apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq (406941/2022-0; 312450/2021-4), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas-FAPEAM (0102016301000289/2021-33), FINEP/Rede CLIMA (01.13.0353-00), e INPA (PRJ15.125).
Sobre os autores
Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador 1A de CNPq. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 800 publicações científicas e mais de 750 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
Walter Leal Filho possui graduação em Ciencias Biologicas pela Universidade Federal da Bahia, doutorado em ecologia pela University of Bradford e doutorado pela London Metropolitan University, ambos no Reino Unido. Ele é professor no Departamento de Ciências Naturais, Manchester Metropolitan University, Manchester, Reino Unido; WSB Merito University, Wroclaw, Polônia; e Faculdade de Ciências da Vida, Hamburg University of Applied Sciences, Hamburgo, Alemanha.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor