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ToggleÁguas, ventos e sol: Brasil já larga na frente na transição energética, mas impactos socioambientais de novos projetos e investimentos em termelétricas preocupam
Por Ellen Nemitz
O Brasil ainda é o país das águas no que tange à produção de energia elétrica. Em 2022, segundo o Anuário 2023 da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), último disponível até o fechamento desta reportagem, 63% da nossa energia foi produzida em hidrelétricas, uma fonte que, em que pesem os fortes impactos nos ecossistemas, contribui significativamente para uma produção de energia livre dos chamados Gases do Efeito Estufa (GEE) — aqueles que contribuem para as mudanças climáticas, como dióxido de carbono e óxido nitroso, por exemplo, oriundos da queima de combustíveis fósseis.
A matriz renovável inclui ainda outras fontes, como usinas eólicas, solares e o uso da biomassa — juntas, respondem por mais de 87% da energia centralizada produzida no Brasil. Parte desta energia é autogerada e não injetada no sistema, ou seja, utilizada para consumo próprio. Em 2022, as usinas de autoprodutores geraram 125,6 TWh, o que equivale a 19% do total de energia elétrica ofertado no Brasil, segundo dados da EPE compilados pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA).
Contamos, ainda, com eletricidade advinda de origem nuclear e das mais de 3 mil usinas termelétricas, muitas delas movidas a combustíveis fósseis, em geral o gás natural, mas também carvão mineral e petróleo. As usinas termelétricas movidas a biomassa proveniente de resíduos orgânicos e agrícolas, por exemplo, vêm se consolidando no país, segundo o IEMA, com significativa redução das emissões e menor impacto ambiental, como explica o professor Fernando de Lima Caneppele para a Série “Energia” do Jornal da USP.
De 2001 a 2023, dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) sobre a geração centralizada (que excluem dados da autogeração distribuída, um setor em forte crescimento no Brasil) mostram que passamos de 133 para 215 usinas hidrelétricas (UHE), além de 689 Centrais Geradoras (CGH) com capacidade inferior a 5 MW de energia e 428 Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs de 5 a 30 MW de potência). Isso faz do país, hoje, uma potência hidrelétrica. Paralelamente, o boom das eólicas (EOL) e solar fotovoltaica (UFV) foi ainda mais significativo: passamos de sete unidades geradoras com a força dos ventos para 1.016, e de nenhuma unidade de placas solares para 18.197 – só de 2018, ano do primeiro aumento expressivo de parques, a 2023, o aumento foi de quase 700%. Considerando a capacidade instalada por cada fonte, o aumento foi também um dos mais consideráveis: as eólicas tinham estruturas capazes de gerar apenas 21 MW em 2001 e em 2022 este potencial subiu para 23 GW, energia capaz de abastecer cerca de 10 milhões de residências. As fotovoltaicas sequer contribuíam no início do século, mas duas décadas depois respondem por 7 GW (somente potência centralizada). Além disso, a Aneel contabiliza mais de 2 milhões de sistemas com painéis solares instalados no país, que contribuem com mais que o triplo da potência instalada centralizada.
Parte do aumento expressivo das eólicas e solares se deve aos recursos naturais do Brasil. Ventos que sopram com especial força na região nordeste e a grande incidência solar, em que pesem diferenças regionais, nos colocam na dianteira para essas modalidades – ambas são favoritas para dominar a matriz elétrica no horizonte de 2050. “O mesmo sistema solar fotovoltaico instalado, por exemplo, na Alemanha, no Reino Unido ou no Japão, que são países líderes no uso da energia solar, no Brasil gera o dobro da eletricidade, graças a nossa abundante irradiação solar”, comenta o presidente-executivo da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), Rodrigo Sauaia.
Sauaia destaca ainda que esta fonte de energia não produz ruídos e os equipamentos podem ser reciclados após o fim da vida útil. Segundo ele, cerca de 97% dos módulos como vidros, metais e polímeros podem ser reintegrados às cadeias produtivas. Além disso, a energia fotovoltaica é bastante versátil e financeiramente competitiva — com uma redução de custo de 86% nos últimos 10 anos, segundo dados que ele cita da Bloomberg Energy Finance — e pode ser instalada em diferentes portes, alimentando desde um carro elétrico ou uma pequena vila até estados inteiros. Isso contribui para a geração de energia de baixa emissão de forma descentralizada, o que explica, por exemplo, a sua escolha para o programa Minha Casa Minha Vida. “Nossa expectativa agora é trabalhar com o governo para construir casas com geração própria de energia solar e reduzir a conta de luz das famílias em até 80 a 85%”, afirma.
A pegada de carbono da nossa energia
O consumo de energia no Brasil pode ser dividido essencialmente em três setores: residencial, comercial e industrial. No total, a rede demanda cerca de 573 TWh por ano (dados de 2021, últimos consolidados pela EPE, que incluem autoprodução não injetada na rede). Considerando apenas o consumo de eletricidade do Sistema Integrado Nacional (SIN), o montante é de 500 TWh.
De acordo com este mesmo recorte temporal, cerca de 76 milhões de lares consomem 151 TWh, sendo a energia elétrica o carro-chefe nestes locais. Há ainda uma parcela menor de fornecimento por lenha e gás, por exemplo. Enquanto isso, as indústrias utilizaram naquele ano um total de 182 TWh e o setor de serviços 87 TWh. Outras classes consumidoras respondiam por 81 TWh.
Neste cenário de consumo e produção majoritariamente por fontes não fósseis, as emissões brasileiras de Gases do Efeito Estufa (GEE) não se devem majoritariamente às fontes de energia, que respondem por aproximadamente 18% – ou 412,48 milhões de toneladas de CO2 –, segundo dados de 2022 da Plataforma SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa). Quase todo o restante é proveniente do uso do solo, especialmente para agricultura, e do desmatamento, que somam cerca de 75% das emissões.
As fontes renováveis exercem grande papel na redução das emissões. Dados da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) indicam que, em 2022, 26,88 milhões de toneladas de CO2 foram evitadas pelo uso da energia dos ventos — o equivalente à emissão de cerca de 22 milhões de automóveis de passeio. E, de 2012 até o momento, segundo a Absolar, a fonte solar ajudou a evitar as emissões de mais de 41 milhões de toneladas de CO2, considerando as características da matriz elétrica do país, figurando como a segunda maior fonte de energia brasileira na soma entre geração centralizada e distribuída, que totalizam, segunda a associação, cerca de 35 GW (painéis solares residenciais, por exemplo, entram nesta conta).
A participação do setor de energia nas emissões pode variar de acordo com a intermitência das fontes renováveis. Por exemplo, o ano de 2021 registrou a maior alta nas emissões de gases do efeito estufa no setor de energia em relação ao ano anterior dos últimos 50 anos: um aumento de 12,5%, de 387 para quase 435 milhões de toneladas, segundo relatório do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). O salto foi muito devido à seca que impactou sobremaneira as hidrelétricas e impulsionou o uso das termelétricas. De 2022 para 2023, com as cheias recordes na Amazônia, houve redução de mais de 5% no uso das térmicas.
De acordo com dados do Ministério de Minas e Energia, em 2020 o Brasil ocupou a 12º posição no ranking de emissões por uso de energia no mundo — atrás dos Estados Unidos, Índia, China, Rússia, Japão, Alemanha, Irã, Coreia do Sul, Indonésia, Canadá e Arábia Saudita.
Hidrelétricas estão com os dias contados?
A confiabilidade das hidrelétricas, em um contexto de secas crescentes e mais severas, é cada vez menor. Segundo o MapBiomas, do início dos anos 1990 a 2021 perdemos cerca de 15% da superfície hídrica em nosso território. Secas históricas como a de 2021 no Centro-Sul e a de 2023 no Norte já anunciam que o país das águas está cada vez mais seco. Se chove menos, essas usinas geram menos energia. A solução pode ser, como em 2021, apelar para as usinas termelétricas movidas a gás, um combustível bastante poluente e cuja extração traz impactos consideráveis no meio ambiente.
De acordo com o Anuário 2023 da EPE, o ano de 2022 registrou uma queda acentuada na participação dos combustíveis fósseis na oferta energética brasileira, pois o arrefecimento da seca e a volta da potência das hidrelétricas trouxe a redução do uso das termelétricas. Dos 677 TWh produzidos, apenas 8,5% provinha de usinas termelétricas movidas a carvão e gás natural. No ano anterior, com a forte seca que afetou sobremaneira a produção de energia hidrelétrica, 18,7% da nossa produção foi derivada de combustíveis fósseis. Ou seja, depender das águas pode ser menos seguro do que se pensava antigamente. Os dados sobre a diminuição da participação hidrelétrica em 2023, quando a seca paralisou a produção na hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira, ainda não foram divulgados.
Óleo e gás podem sujar nosso futuro
Em que pese nossa matriz elétrica ser de fato notadamente renovável, tanto o setor elétrico e, principalmente, o de transporte, ainda precisam de óleo e gás para funcionar.
Ao passo que a diversificação das fontes é notável, a presença das usinas termelétricas segue preocupante. A linha do tempo da Aneel mostra que as usinas termelétricas, que são movidas a combustíveis fósseis, aumentaram mais de 400% em pouco mais de 20 anos: de 600 para 3.042. São usinas com vida útil de até quatro décadas que já foram construídas, já possuem contrato e possivelmente vão continuar operando.
Seus impactos vão desde a contribuição para as emissões até a queda significativa da qualidade do ar em regiões que concentram grande número delas, como Macaé, no Rio de Janeiro, explica o analista de projetos do IEMA, Felipe Barcellos e Silva. No longo prazo, ele afirma, essas usinas serão ainda menos interessantes do ponto de vista energético e ambiental, já que o avanço tecnológico aumenta a capacidade de armazenamento e transmissão das eólicas e solares, por exemplo, e reduz a necessidade de outras fontes adicionais.
O 3º Inventário de Emissões Atmosféricas em Usinas Termelétricas do IEMA, lançado em outubro de 2023, mostra que a produção de energia elétrica por termelétricas fósseis saiu de 30,6 TWh em 2002 para quase 69 TWh em 2022 (pico de 91,8 TWh em 2020), o que representou um aumento de 113% nas emissões do setor elétrico. O estudo analisou 72 usinas, responsáveis por gerar 31,1 TWh em 2022, dos quais 23,3 TWh (75%) foram produzidos a partir do gás natural, para gerar um panorama das emissões oriundas desta fonte.
Em 2022 foram emitidas, só por essas usinas mapeadas, 19,5 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (CO2e), com as térmicas a carvão liderando as taxas de emissões por quantidade de energia gerada — a líder em ineficiência é a Candiota III, que emitiu 1.318 tCO2e/GWh (12% de toda a emissão inventariada), contra 597 da décima colocada, Jaraqui, movida a gás natural. Cerca de um terço dessas emissões foram provenientes de apenas cinco usinas em Duque de Caxias (RJ), Manaus (AM), Santo Antônio dos Lopes (MA), Capivari de Baixo (SC) e Candiota (RS). Além disso, o estudo mostrou que 76% da eletricidade inventariada foi produzida em apenas cinco estados: Rio de Janeiro, Amazonas, Maranhão, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. De um modo geral, o sistema localizado no sul do país foi o maior responsável pelas emissões, respondendo por cerca de 40% do total, especialmente em Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Quatro empresas estão por trás das usinas que contribuem com 70% da geração fóssil no país: Petrobras (25%), Eletrobras (18%), Eneva (16%) e Fram Capital Energy (13%). A Petrobras apresentou uma redução de 10 milhões de toneladas em relação ao ano anterior, mas o IEMA salienta que a compra ou venda de ativos por uma empresa pode causar variações de um ano para outro que não necessariamente refletem uma política de descarbonização.
Quando se trata de eficiência, ou seja, a real produção de energia para cada tonelada de gases emitidos, a Engie vem para o topo da lista suja: foram 1.156 tCO2e/GWh, o que representa quase o dobro da média observada no SIN (637 tCO2e/GWh). Ainda segundo o relatório, em 2022 essa empresa era responsável por 100% da usina Pampa Sul, UTE com a segunda maior taxa de emissão do SIN. Enquanto isso, a Petrobras, líder em números absolutos de emissão, apresentou uma taxa de emissão de 419 tCO2e/GWh, 34% menor que a média das termelétricas a combustíveis fósseis do SIN, devido às tecnologias mais eficazes de produção.
No ano do estudo, havia também 60 térmicas fósseis de autoprodutores, que foram responsáveis por 34,6 TWh, ou 50% de toda geração fóssil no país. Segundo o IEMA, é comum que instalações industriais utilizem autoprodução de eletricidade para reduzir custos, sendo o setor de combustíveis o que mais utiliza esse recurso: em 2022, 65% (20,4 TWh) da eletricidade gerada nessa modalidade foi proveniente de usinas vinculadas à exploração de petróleo e gás ou ao refino de petróleo. Quando a geração de energia elétrica em uma usina autônoma excede o consumo próprio, o excedente pode ser injetado nas redes públicas de transmissão e distribuição.
Este cenário que indica um fortalecimento das usinas termelétricas fósseis é corroborado pela legislação. Por um lado, ainda não dispomos de uma regulamentação mais específica de renováveis, como as eólicas offshore — o Projeto de Lei n° 5932 de 2023, por exemplo, que regulamenta o aproveitamento de potencial energético offshore, atualmente aguarda análise no Senado Federal. Além disso, há outras regulamentações em tramitação, como o Marco Legal do Hidrogênio Verde.
Por outro, temos leis como a Lei nº 14.182/2021, que regulamentou a privatização da Eletrobrás, prevendo que “as futuras termelétricas a gás natural serão obrigadas a gerarem energia por pelo menos 70% das horas totais de um ano”. São chamadas de jabutis, termo que faz referência a emendas ou dispositivos inseridos em projetos de lei sem relação com o tema principal do projeto, que se “penduram” em uma tramitação para aproveitar o apoio e serem aprovadas mais facilmente.
Além disso, o Brasil é hoje o nono maior produtor de petróleo do mundo, com possibilidade de chegar à quarta posição em uma década, no atual ritmo de prospeção, de acordo com o relatório “O Brasil na geopolítica climática dos fósseis e os desafios para uma transição energética com justiça social” do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), lançado em 2022. O Brasil alia suas condições naturais de oferta de petróleo, com destaque para o pré-sal, aos incentivos econômicos e tributários. O recente relatório “Subsídios às fontes fósseis e renováveis (2018 – 2022): reformar para uma transição energética justa“, também do Inesc, mostra que o governo disponibilizou um total de R$ 80,9 bilhões em subsídios, no ano de 2022, aos combustíveis fósseis, um crescimento de 20% em relação ao ano anterior. Neste mesmo período, os subsídios às fontes renováveis foram de apenas R$ 15,5 bilhões, ou seja, menos de um quinto do montante destinado aos fósseis.
O peso dos transportes
O setor de transporte pode ser o nosso calcanhar de aquiles. A infraestrutura de transporte ainda é muito dependente do petróleo, em que pesem alguns avanços na eficiência e emissões dos combustíveis. O transporte de cargas no Brasil é essencialmente feito por rodovias. Caminhões, na maior parte das vezes, são movidos a diesel, um combustível cuja demanda deve seguir crescendo na próxima década, segundo a EPE. A malha viária no Brasil chega a 1,7 milhão de km, respondendo por 70% do setor, enquanto a ferroviária, que tem previsão de expansão no próximo decênio, alcança apenas 30 mil km (16% do transporte de cargas) e as hidrovias respondem por 64 mil km (14%). De forma similar, o transporte de passageiros é majoritariamente feito por estradas: 68% de forma individual e 25% coletivo.
Entre 2000 e 2019, o uso do diesel caiu ligeiramente, de 51% para 42%, dando lugar ao biodiesel e ao etanol, que cresceram de zero para 4% e de 12% para 21%, respectivamente. Enquanto a demanda energética deve crescer 1,6% ao ano, o RenovaBio, por exemplo, pretende gerar uma redução nas emissões por meio dos biocombustíveis de até 107 toneladas de CO2 equivalente. Segundo a EPE, a intensidade energética dos caminhões deverá seguir em declínio devido aos ganhos de eficiência energética e melhorias na infraestrutura rodoviária.
O transporte individual ainda é um ponto a evoluir na transição das cidades. A eletrificação da frota caminha a passos lentos por conta dos altos preços dos veículos elétricos e da limitada malha de abastecimento, além da inexistência de indústria doméstica de baterias e componentes. Atualmente, cerca de 2% dos novos licenciamentos são de carros elétricos e híbridos, e essa participação não deve chegar a 7% na próxima década, com um pouco mais de um milhão de unidades. Cenário semelhante se encontra no setor de ônibus, cujas unidades elétricas e híbridas mal devem chegar a 9% dos licenciamentos em dez anos.
Entre 2022 e 2032, a demanda energética do transporte de passageiros crescerá, em média, 2,6% ao ano no Brasil. A Medida Provisória n° 1205/23, que instituiu o Programa Mover (Mobilidade Verde e Inovação) com incentivos fiscais para empresas que investem em sustentabilidade automotiva e novas regras para diminuir o impacto ambiental do setor, traz algum alento.
No entanto, essa não é, de fato, a melhor resposta, uma vez que a produção massiva de baterias e a demanda por energia podem fazer esta modalidade ter impactos ambientais consideráveis. “Poderíamos simplesmente fazer uma transição energética transformando os carros a combustão que hoje estão nas cidades para carros elétricos, mas isso não muda nada o status quo, não muda a cidade como ela está. Então que tal se a gente fizesse, por exemplo, uma transição para uma mobilidade de baixas emissões, mas focando no transporte público, focando no transporte a pé, tentando reduzir desigualdades?”, exemplifica Barcellos e Silva, do IEMA.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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