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Como uma fazenda foi comprada por R$ 1 milhão em refúgio de ararinhas-azuis

Como uma fazenda foi comprada por R$ 1 milhão em refúgio de ararinhas-azuis

Para encerrar uma causa envolvendo dívidas trabalhistas, a justiça federal chancelou a venda de uma fazenda em região do Nordeste onde exemplares da ararinha-azul são libertos desde meados do ano passado. O comprador afirma que a área será reflorestada.  

No início dos anos 2000, tráfico e desmate exterminaram a ararinha-azul na natureza. A espécie só vivia livre no interior da Caatinga. Depois de uma longa jornada de reprodução em cativeiro no exterior e de readaptação no , aves são soltas desde junho de 2022 no sertão baiano.

A reintrodução da espécie acontece no Refúgio de Vida Silvestre da Ararinha Azul, rodeado pela Área de Proteção Ambiental da Ararinha-Azul. As reservas foram criadas em 2018 para proteger ambientes favoráveis à espécie. Elas somam cerca de 120 mil ha nos municípios de Curaçá e Juazeiro.

Refúgios de vida silvestre são unidades de conservação de Proteção Integral que, ao contrário de parques nacionais, aceitam imóveis privados em seus limites, desde que não interfiram na conservação ambiental. Caso contrário, as terras devem ser desapropriadas e agregadas às áreas protegidas.

“Até o momento, não houve situações no RVS [da Ararinha Azul] que exigissem desapropriações”, afirmou por email a Assessoria de Imprensa do Instituto Chico Mendes de Conservação da (ICMBio), autarquia do Ministério do e Mudança do Clima (MMA).

Ao mesmo tempo, uma fazenda local está no epicentro de um imbróglio judicial envolvendo dívidas trabalhistas, servidores públicos, empresas brasileiras e estrangeiras e a conservação da ararinha-azul e da Caatinga, um bioma tão exclusivo do Brasil quanto a ameaçada ave.

Uma ararinha-azul no centro de reprodução e reintrodução em área protegida em Curaçá (BA). Foto: ACTP / Divulgação

Ex-servidora da Polícia Federal, ex-chefe do Ibama e da Estação Ecológica do Raso da Catarina, administrada pela ICMBio, Kilma Manso Raimundo da Rocha acionou a Al-Wabra Empreendimentos e Participações por dívidas trabalhistas acumuladas de 2014 a 2019.

A Al-Wabra é ligada à homônima do Catar criada pelo xeque Saoud Bin Mohammed Al Thani. O zoológico manteve ararinhas-azuis até 2014, quando faleceu Al Thani e as aves foram compradas pela alemã ACTP, sigla em inglês da Associação para Conservação de Papagaios Ameaçados. 

O valor inicial da causa foi estimado por Kilma da Rocha em R$ 600 mil, mas cálculos judiciais ajustaram o valor para R$ 815.164,48. As dívidas envolviam itens como não pagamento de salários mensais, 13º e férias, mostram documentos acessados pela reportagem.

Mesmo conectada a uma das famílias mais ricas do planeta, a Al-Wabra alegou não ter recursos para quitar a dívida. Uma das soluções encaminhadas no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região foi penhorar a Fazenda Concórdia, comprada em 2008 pela Al-Wabra e hoje dentro do refúgio da ave.

Buscando saldar outras despesas trabalhistas e evitar uma possível compra do imóvel de 2,3 mil ha por avessos à proteção da espécie, Ugo Eichler Vercillo e Leomar de Jesus Martins adentraram o processo movido por Kilma da Rocha contra a Al-Wabra. 

“O Sr. Leomar também tinha um processo trabalhista contra a empresa. Do meu lado, atuei para proporcionar uma solução para que a propriedade continuasse dentro do projeto de reintrodução da ararinha-azul”, afirmou Vercillo a ((o))eco. 

Na Fazenda Concórdia foi localizado o então último ninho de ararinha-azul livre na natureza, no ano 2000.

Martins já atuou como “mateiro” em ações para conservar aves na Caatinga. Vercillo é servidor federal licenciado desde novembro de 2021. Antes, ocupou cargos técnicos e de chefia em órgãos ambientais. Ele é hoje diretor-técnico da Blue Sky Caatinga, ligada à conservacionista alemã Blue Sky Global. 

Numa audiência em setembro deste ano no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, Vercillo ofereceu R$ 1.115.883,06 para encerrar o processo de Kilma Rocha contra a Al-Wabra. “Os recursos são da BlueSky”, afirma o servidor licenciado.  

Do total, a Al-Wabra receberá R$ 50 mil, Leomar de Jesus Martins ficará com R$ 100.718,58 e à Kilma da Rocha caberá R$ 965.164,48. Ao valor de sua dívida trabalhista foram acrescidos R$ 150 mil como “indenização pela perda de uma chance”, de obter no caso valores maiores com a penhora da fazenda.  

Agrônoma e mestre em Ciências Florestais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, Kilma da Rocha ajudou a criar, em 2002, a ong Eco – Organização para Conservação do Meio Ambiente, que busca reduzir conflitos entre agricultores e aves na Caatinga.

Obtidas na página do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, decisões ao longo do processo apontam que falta apenas uma perícia judicial e ajustes nos limites da Fazenda Concórdia junto a imóveis vizinhos para consolidar sua compra por Ugo Vercillo. 

“O georreferenciamento da área para emissão do Cadastro Ambiental Rural – CAR constatou que os confrontantes estão divergentes do que consta na matrícula do imóvel, tendo o cartório exigido a prévia retificação desses descritivos para posterior registro da venda”, descreve o material.

O mesmo documento detalha que a fazenda tem ao menos três casas, currais, “cercados com plantio de palmas, uma roça e uma cacimba no Riacho Panacu”. Vercillo afirmou à reportagem que o imóvel será destinado a “reflorestamento”, uma das ações da entidade.

Recuperar a Caatinga é chave para melhorar o ambiente onde a ararinha-azul é devolvida à natureza. Mudas e sementes de plantas nativas são cultivadas na área da espécie igualmente pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), mostrou ((o))eco. 

Freio para investigação

Mesmo chancelado pelo judiciário, o caso foi denunciado pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (RENCTAS) ao Ministério Público Federal (MPF). A ong questiona a lisura do processo, a atuação do servidor público e a fonte dos recursos que compraram a Fazenda Concórdia. 

A denúncia inclui a abertura da Blue Sky Caatinga por Vercillo em janeiro de 2021, enquanto estava na ativa em órgãos ambientais. A entidade civil avalia que foi violada uma lei de 2013 que trata de conflitos de interesses no trabalho de servidores federais. 

Vercillo afirma que sua “participação na empresa ocorreu em julho de 2022, após minha licença” e que não vê “elementos que possam configurar conflito de interesse” em suas ações.

“Meu trabalho no ICMBio e MMA viabilizou a transferência de animais para o Brasil, estabelecimento dos criadouros no Brasil, a criação das unidades de conservação, a soltura das ararinhas-azuis após 22 anos de sua extinção e o nascimento dos primeiros filhotes em vida livre após 37 anos”, destacou.

Por email, a Assessoria de Imprensa do ICMBio comentou à reportagem de ((o))eco que um “eventual conflito de interesse do servidor licenciado é uma avaliação de competência dos órgãos de controle”.

Na mesma representação ao Ministério Público Federal (MPF), a RENCTAS pediu a suspensão da compra da Fazenda Concórdia e uma investigação sobre a legalidade e a finalidade da compra de terras na área de ocorrência da ararinha-azul. 

Ararinhas-azuis voltando a voar livres em áreas protegidas na Caatinga. Foto: Cromwell Purchase / ACTP

Representações no Brasil da Al-Wabra, ACTP e Fundação Lymington compraram terras no refúgio da ararinha-azul para reforçar sua conservação, descrevem um artigo da revista Biodiversidade Brasileira, do ICMBio, e um trabalho publicado em 2020 por uma servidora da autarquia federal.

Questionada sobre essas negociações, a Assessoria de Imprensa do ICMBio informou, igualmente por email, que o “Instituto não acompanha transações de compra e venda de propriedades privadas no RVS” da ararinha-azul. 

Uma reportagem publicada pelo site Brasil de Fato em janeiro de 2021 mostrou que 33 pessoas físicas e jurídicas estrangeiras detêm ao menos 17,3 mil ha em unidades de conservação brasileiras. O número é a soma de 39 áreas em distintos pontos do país.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) controla a compra de imóveis rurais por estrangeiros no país, um processo que depende do tamanho e localização das terras. Em fronteiras ou áreas de segurança nacional, precisam de aval também do Conselho de Defesa Nacional (CDN). 

A reportagem de ((o))eco tentou contato com Kilma Manso Raimundo da Rocha, com Leomar de Jesus Martins e com a Al-Wabra Empreendimentos e Participações, mas não obtivemos retorno até a publicação desta reportagem. 



As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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