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Como o WhatsApp ajuda a monitorar a crise climática na Amazônia

Como o WhatsApp ajuda a monitorar a crise climática na Amazônia

Pesquisadores, ribeirinhos e indígenas se unem em um grupo no aplicativo, permitindo a troca entre o conhecimento tradicional e o científico. Imagem acima da estiagem de 2023 em Porto Praia, no território do povo Kokama, em Tefé (Foto: Marizilda Cruppe/ Greenpeace).


Manaus (AM) – Um grupo no WhatsApp com mais de 650 pessoas está diante de um desafio sem precedentes. Eles se uniram para enfrentar o problema das mudanças climáticas na Amazônia. Batizado de “Boletim das Águas – Médio Solimões”, o grupo reúne grande parte das lideranças ribeirinhas e indígenas do Amazonas, além de pesquisadores das Geociências do Instituto Mamirauá, idealizadores da iniciativa. 

O grupo no WhatsApp foi criado no início de 2023 e fornecia informes quinzenais. Diante de uma nova grande seca, o número de participantes saltou de 250 pessoas, em abril deste ano, para 657 em agosto. Essa expansão permitiu o ingresso de novos parceiros e demandou a produção de boletins diários. Até mesmo órgãos públicos como o Serviço Geológico do (SGB) e a Defesa Civil se integraram à iniciativa.

Durante o dia, boletins meteorológicos são a principal informação disparada no grupo. Debates são levantados a respeito das chuvas, do clima, do tempo e do nível dos rios a partir de gráficos, tabelas e textos, com lideranças de diferentes territórios contribuindo e fazendo análise das estações de monitoramento dos rios. 

“A mudança começa quando o próprio cidadão toma a iniciativa”, diz Erivan Miranda, um dos participantes do grupo. Pescador e artesão da Vila Acanauí, localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Buá-Buá, no município amazonense de Japurá, ele é um dos mais atuantes dentro do Boletim das Águas. “Precisamos agir em defesa de nós e dos que estão ao nosso redor, porque a administração pública fala muito e age pouco.” 

Na região onde vive Miranda, tudo indica que não haverá uma seca. Em uma das conversas com Ayan Fleischmann no grupo Boletim das Águas, o pescador chamou a atenção para a falta de estudos no rio Japurá, que tem se mostrado resiliente à seca. Esse fato poderia trazer algumas respostas por ser um dos rios que mais levam água ao Solimões. 

“O que temos visto é que os rios da margem esquerda do Solimões (Içá, Japurá, Negro) ainda estão com um bom volume, enquanto os rios que vem do sul (como Juruá, Purus, Madeira) já estão muito secos e em vários trechos já em situação crítica”, explicou Ayan Fleischmann ao pescador.

Fleischmann é hidrólogo e coordenador do grupo de pesquisa em Geociências do Instituto Mamirauá. Foi dele a ideia de levar informações aos ribeirinhos da região do rio Solimões. No começo, o Boletim das Águas era impresso e distribuído às comunidades, de duas em duas semanas. Não demorou muito para que o pesquisador percebesse que aquela não era a melhor forma de comunicação.

“A gente se deu conta que estava faltando uma conexão maior entre nós do Instituto e as comunidades para poder divulgar melhor. O boletim impresso era difícil de levar porque dependia da nossa ida às comunidades”, lembra. O grupo no WhatsApp emergiu como a melhor solução, mesmo que a internet ainda não seja acessível a todos na Amazônia.

No mesmo barco

Oficina Pré-Seca RDS Amanã na comunidade de Vila Nova do Amanã (Foto cedida por Caroline Reucker.).

Manter a comunicação e os diálogos em torno da crise climática têm feito pessoas como Erivan Miranda participarem de debates e pensarem em estratégias junto à ciência. “A gente fica sabendo os acontecimentos que acontecem em região diferente e é muito bom se manter informado. Saber a necessidade de cada um e como fazer para resolver cada situação”, afirma o pescador, que agora sabe como cada município está enfrentando seus problemas climáticos. 

No dia 7 de agosto, por iniciativa dos próprios ribeirinhos, foi lançado no grupo mais um meio de comunicação: áudios semanais com resumo do Boletim das Águas para facilitar a acessibilidade das comunidades à informação. Em uma área de dimensões maiores que a de países, encontrar mecanismos de trocas de saberes e conhecimento científico tem o potencial de mudar o jogo.

“A gente fez uma enquete ali no grupo e dá para ver que tem gente desde Tabatinga, Benjamin Constant descendo o médio Solimões até Itacoatiara, já no rio Amazonas. Na calha do Rio Japurá, no rio Juruá, tem gente representada. Então é um fórum bem interessante de troca de informação e a gente tem tentado trazer esse engajamento dos ribeirinhos para discutir o nível do rio”, explica Fleischmann. 

Fora o Boletim das Águas, o grupo já promoveu a oficina “pré-seca”, reunindo 51 líderes de comunidades ribeirinhas e indígenas locais. O principal tema de debate foi o impacto da seca do ano passado e as ações de prevenção para secas futuras. Priscila  Alves, engenheira ambiental e pesquisadora bolsista do Instituto Mamirauá, tem se dedicado a coletar a percepção das pessoas nas zonas rural e urbana com relação ao impacto das cheias e das secas. 

“Essa é uma parte extremamente importante porque as pessoas sofrem os processos e na maioria das vezes elas não são ouvidas. Então se não sabe o que a pessoa precisa, você ajuda conforme o que acha que ela precisa”, reflete Priscila  Alves. 

Água potável?

Imagem da estiagem de 2023 na Comunidade Porto Praia, do povo indígena Kokama (Foto Marizilda Cruppe/Greenpeace).

Na aldeia e na comunidade São Francisco do Aiucá, do povo Miranha, próxima ao município de Uarini, não existe poço ou água encanada para as atividades do dia a dia. Diante de uma seca contínua e pouca chuva, Pedro Silva, presidente da aldeia, vê seu povo ameaçado pela escassez de água. A região fica acima da Aldeia Porto Praia, uma das áreas mais afetadas pela seca de 2023. 

“A aldeia não tem água potável, a água que a gente usa tanto para tomar como para fazer a comida a gente apara da chuva. A gente tem um reservatório de mil litros onde a gente reserva essa água da chuva. Todos os moradores daqui da comunidade tem seu próprio tanque, então a gente usa bastante água da chuva e água do rio praticamente só para tomar banho”, conta. 

No ano passado, Pedro relata que o apoio não foi recebido diretamente dos governos federal e do Amazonas, mas de outras organizações e da Defesa Civil local. Foram distribuídas cestas básicas. Nenhum representante oficial visitou a comunidade e ninguém soube das necessidades. “Se o governo tiver de fazer alguma coisa pela gente é através de captação de água da chuva, um tratamento adequado também, por que aqui a gente não tem tratamento algum”, cobra. 

O rio está secando

Imagem de 2023 da estiagem do rio Solimões, em comunidade de Alvarães (Foto: Defesa Civil).

Maria Auxiliadora Oliveira, da aldeia Assunção do povo Kokama, que fica à margem esquerda do Solimões, próximo ao município de Alvarães, enfrenta dilemas parecidos: o rio está secando muito rápido. Em breve, a aldeia terá uma praia enorme na frente, e apesar de ter um poço, ele seca quando a estiagem é forte. 

Foi o que ocorreu em 2023, quando ela e outras pessoas ficaram sem ter como se locomover, sem água, sem escoar seus produtos e perderam parte das plantações. Não era possível acessar também as áreas de manejo da RDS Mamirauá. A falta da presença do governo federal e estadual também é outra semelhança com a Aldeia de Pedro. 

“Já estamos com dificuldade, porque como não encheu o suficiente não deu para alagar,  então o igarapezinho que a gente anda não encheu, então ele já está seco. A gente já está com dificuldade de locomoção para chegar do outro lado, para chegar na roça e já está tendo essa dificuldade toda”, explica a moradora. 

Além da falta de água, outro problema com os rios secando abaixo da normalidade é a alta concentração de resíduos poluentes como metais pesados e rejeitos das áreas sem saneamento básico. Erivan Miranda lembra que na última estiagem as pessoas passaram mal. Com a água para sobrevivência sendo extraída diretamente do rio, ele teme pela poluição e pela contaminação com mercúrio. Em torno do Solimões, há garimpos em atividade.

A mudança da dinâmica do rio tem sido um tema recorrente do grupo no WhatsApp. “A gente não se recuperou da estiagem do ano passado. Então alguns bancos de areia se deslocaram e com a água que foi embora muito cedo nesse ano de 2024 eles ressurgiram e têm mudado o percurso do rio Solimões”, conta Donizete Cruz, integrante do Boletim das Águas. 

A mesma análise foi percebida por Ayan Fleischmann a respeito do assoreamento dos rios, que faz parte tanto do processo natural, chamado “terras caídas”, quanto da formação de praias pela dinâmica do rio.  “Ações como o garimpo ilegal que mexe no fundo do rio e muda a dinâmica de sedimentos, o próprio desmatamento, são processos que influenciam diretamente na dinâmica dos rios e podem influenciar na formação de praias, assoreamento de lagos e rios”, explica Ayan. 

Navegação no rio 

Orla de Tabatinga em 06 de agosto de 2024 (Foto cedida por Donizete Cruz).

Em Tabatinga, o nível do rio até 7 de agosto estava em 1,38 metro e tem descido cerca de 20 a 30 centímetros por dia. Isso faz com que as águas já estejam mais de 2 metros abaixo do que no mesmo período do ano passado. Com o município amazonense em estado de emergência desde 15 de julho, Emanuel Conde, motorista fluvial que trabalha no percurso de Tabatinga a Benjamin Constant, não esconde a preocupação com o isolamento que está por vir. 

“Trabalho numa embarcação de classificação miúda de 2 AB (8 metros), [o rio está] cada dia a piorar, cada vez mais estreito e raso. O que representa um perigo adicional são embarcações peruanas de grande porte, elas trafegam no percurso que fazemos muitas das vezes se encalhando ou provocando ondas enormes”, explica o motorista. 

Vivendo há 24 anos em Tabatinga, Emanuel afirma que do seu ponto de vista esta “será a pior seca em décadas”. “No ano passado foram intervir quando a situação já era precária, ou seja, tardia, seja do estadual ou federal. Esse ano até agora não está mudando nada em comparação com o ano anterior. Ouvi boatos que já foi aprovado dragagem dos rios, porém nada de concreto”, diz. 

Emanuel afirma que tem denunciado as irregularidades e comunicado às autoridades o cenário em que a navegação de Tabatinga se encontra, sem muito êxito, o que pode gerar uma situação de caos em Tabatinga, que é o município que mais tem sido impactado no Amazonas. 

“[2023] foi a pior seca que já enfrentei como profissional, não só para mim como para meus parceiros que já têm décadas de experiência. Houve muitos casos de embarcações encalhadas ou com muita dificuldade de chegar na região. Todos os dias ficamos preocupados com o nível do rio que não para de secar, já tem mais de 4 dias que seca 20 centímetros”, relata o navegador. 

Donizete Cruz, da Defesa Civil de Tabatinga, que também faz parte do Boletim das Águas onde publica diariamente a situação do município, diz já ter feito algumas ações como atualização de dados cadastrais das famílias afetadas e busca pela garantia de água potável para beber. Segundo Cruz, pelo menos 9 mil pessoas são impactadas diretamente por viverem na área rural do município de 66 mil habitantes. 

“Ainda não chegou nada, inclusive nós estamos contactando o Estado, o governo federal, para que deem celeridade nessa ajuda humanitária porque senão poderá ficar difícil de chegar nos locais”, afirma Cruz, que é secretário na Defesa Civil de Tabatinga. Em outras palavras, se o socorro demorar, os igarapés e o próprio rio vão secar. Já foram solicitados aos governos federal e estadual água, combustível e medicamentos. A previsão é que a situação se agrave até setembro, o auge da seca. “O município sozinho não vai conseguir lidar com essa situação. É por isso que a gente está pedindo ajuda.”

Cenário da seca no Amazonas

Gráfico com panorama sobre o estado dos rios na Amazônia Fonte e gráfico da SGB.

Conforme o último Boletim Hidrológico do SGB, três das cinco bacias do Amazonas já estão com o nível da água abaixo da normalidade: rios Purus, Madeira e Solimões. Tabatinga é a parte mais afetada, conforme explica Priscila  Alves, do Instituto Mamirauá. “Ele [rio em Tabatinga] encheu normal em dezembro, mas quando chegou em Janeiro, ele começou a ficar estável. Subia e descia um pouco e ficou assim. No começo de junho, começou a descer bem forte, então está bem difícil a situação”, diz.

Segundo Priscila, os níveis de precipitação ficaram bem abaixo do esperado, principalmente na parte sul da bacia do rio Amazonas. No lago Tefé, ela afirma que ainda não é possível deduzir nada, pois os registros da estiagem começaram em 22 de setembro de 2023 durante o colapso dos botos e tucuxis e não tem uma linha temporal. 

Muitas coisas interferem nos rios da Amazônia, o que para a ciência se torna um desafio. Dentre os fenômenos estão aquecimento global, El Niño, aquecimento dos oceanos e desmatamento. “As condições climáticas e hidrológicas da Bacia do Rio Amazonas, da Amazônia em geral é extremamente complexa, depende de vários fatores, é influenciada por muitas coisas e é difícil prever o que realmente vai acontecer”, afirma a pesquisadora. 

Comunicação sem retorno

Botos mortos por falta de oxigênio em Tefé (Foto: Miguel Monteiro/ Instituto Mamirauá).

Na seca de 2023, muitos jornalistas do Brasil e do mundo se locomoveram até as áreas críticas dos rios. Juntaram-se a pesquisadores e governantes que já estavam nas comunidades. Para este ano, Ruth Martins, moradora da comunidade Boca do Mamirauá, localizada na RDS Mamirauá, espera ver a cena se repetir. “Minha preocupação é que vai chegar a mesma coisa, muita promessa de  nossos representantes nas unidades e comunidades dizendo em ajudar e não chega nada”, diz. 

Os ribeirinhos, diante da visibilidade que a chegada dos jornalistas trouxe para o problema da seca, imaginavam que a situação deles poderia melhorar. Mas não foi o que aconteceu. Segundo Ruth, o cerco dos jornalistas representou uma oportunidade, mas na prática nada mudou. “Isso é muito ruim para nós moradores pertencentes das comunidades tradicionais em dar nossos depoimentos e a gente não ter uma resposta concreta”, conta. 

O pescador e artesão Erivan Miranda complementa a ideia de Ruth e cita a necessidade de aproximação da mídia. “A informação aqui é muito difícil por causa do jornalismo que está muito distante. Seria muito bom implantar um programa de jornalismo ou informação dentro do município para até ajudar no combate à ilegalidade da pesca, do desmatamento e dos garimpos”, afirma, reiterando a importância do Boletim das Águas. “Também nos dá mais força para combater os invasores até mesmo em nossa reserva, e esse apoio também é importantíssimo para levar informações sobre nossa região, sobre os acontecimentos”, diz. 

Segundo Fleischmann, o Boletim das Águas tem despertado nas comunidades essa necessidade de eles se engajarem nesse contexto de emergência climática. “Quem sofre os maiores impactos das secas e das cheias na região são os ribeirinhos e eles precisam ser protagonistas das ações de enfrentamento a esses eventos extremos que tem acontecido”, afirma. 

Emanuel Conde, navegador de Tabatinga, ressalta a importância do acesso à informação não-paga. “Estou no grupo que todos os dias divulgam os dados da medição, e pelo o que foi dito é feito de forma voluntária, sem receber nada em troca, o que é louvável”, finaliza em tom de agradecimento.

Na imagem acima, a orla de Tabatinga em 14 de julho de 2024 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

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