Desde agosto, em reuniões conduzidas pelo ministro Gilmar Mendes, estão sendo realizadas discussões sobre a constitucionalidade do marco temporal e tentativas de encontrar soluções (Foto: Antonio Augusto/STF/ 02/10/2024).
Brasília (DF) – A ministra dos povos Indígenas Sonia Guajajara participou nesta quinta-feira (02) da reunião da comissão especial conciliatória do Supremo Tribunal Federal (STF) criada pelo ministro Gilmar Mendes para discutir a lei do marco temporal. Sentada ao lado do cacique Raoni Metuktire, Sonia Guajajara declarou que a discussão no STF é sobre o futuro da relação dos povos indígenas com o estado brasileiro e colocou seu ministério à disposição para a busca de consenso com objetivo de melhorar a relação entre indígenas e não indígenas.
“O que estamos discutindo é o futuro das relações do Estado brasileiro com os povos indígenas neste território nacional. O que estamos discutindo aqui é o fim dos esbulhos da terra indígena, o racismo estrutural e o preconceito que sofremos todos os dias”, afirmou a ministra. A audiência teve transmissão online para quem tinha acesso à plataforma Zoom. A Amazônia Real assistiu à reunião.
O cacique Raoni, por sua vez, criticou a tese do marco temporal. “Vocês estão vendo que estão acontecendo muitas coisas na Terra. O planeta está ficando quente. Os rios estão secando. Devemos pensar em como vamos solucionar isso, devemos preservar e cuidar da floresta”. Nesta quinta-feira (03), Raoni se reuniu com Gilmar Mendes, cobrando o fim do marco temporal e que um possível apoio do ministro se transforme em ações concretas.
A ida de Sonia à reunião da comissão especial do STF aconteceu um dia depois do ministro Gilmar Mendes determinar que o Ministério dos Povos Indígenas indique cinco representantes indígenas [um de cada região] para participar das audiências. No dia 28 de agosto, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), principal organização indígena do país, se retirou da comissão especial por discordar da criação e do andamento da comissão.
A Amazônia Real procurou o MPI para saber se a ida da ministra já estava agendada ou aconteceu devido à decisão do ministro Gilmar Mendes e se o órgão vai atender a determinação do ministro e de que maneira. O MPI não respondeu.
A comissão de conciliação foi instituída por Gilmar Mendes para discutir a constitucionalidade da Lei do Marco Temporal. Ela começou no dia 5 de agosto e será encerrada em dezembro. Na segunda reunião, a Apib se retirou, com a leitura de uma carta. No documento, a Apib diz que encontrou um ambiente “aflitivo” e que foi informada que a lei do marco temporal aprovada no Congresso não seria suspensa, “não obstante toda violência que ela tem gerado nos territórios”.
No manifesto, a entidade ainda falou em “visões ultrapassadas e inadequadas sobre a garantia dos direitos indígenas” presentes na comissão especial. “Diante de condições inaceitáveis – e até humilhantes – impostas aos povos indígenas na audiência de conciliação, o juiz conciliador disse que uma saída dos povos indígenas os tornaria responsáveis pela ‘espiral de conflitos’. Isso é uma violência atroz”.
Lideranças indígenas ouvidas pela Amazônia Real disseram que na primeira reunião, do dia 5 de agosto, não havia informações transparentes sobre como seriam as regras das reuniões. Os indígenas avaliaram que havia atropelos jurídicos e que a comissão poderia resultar em perda de direitos. As lideranças temem que indígenas pró-garimpo e pró-agronegócio passem a ter espaço na comissão no lugar da Apib.
O coordenador da Apib, Dinaman Tuxá, afirmou que a comissão deixou os povos indígenas sem clareza sobre os termos e regras do processo conciliatório. Ele questiona os reais benefícios da participação indígena, e afirma que a Apib está montando estratégias para debater sobre o que está sendo construído na comissão e fora dela.
“Estamos acompanhando os efeitos que esse debate de conciliação vai gerar em torno da política indigenista como um todo, sobre a questão da indenização [de latifundiários], a questão da mineração [em terra indígena]”, disse Dinamam Tuxá à Amazônia Real.
Segundo a liderança, a Apib retirou-se do espaço afirmando que não participaria de negociações que envolvam o marco temporal ou violações aos direitos indígenas garantidos pela Constituição de 1988 e pela Convenção nº 169 da OIT.
“Reforçamos que a Apib saiu da conciliação por entender que nós já estávamos num cenário bastante insalubre, um cenário que só nós estávamos com os direitos ameaçados. Já entramos na comissão de conciliação perdendo”, defendeu o coordenador da entidade.
A advogada Auzerina Makuxi, da Apib, ressalta que, embora a organização tenha se retirado da mesa de conciliação, a entidade continua acompanhando as discussões e as ações da comissão especial. Auzerina explicou que a Articulação está organizando junto às bases [organizações indígenas locais] audiências paralelas para decidir conjuntamente os próximos passos.
“A Apib não está se escusando de dialogar com a Corte. Foi muita conquista entrar no STF enquanto Apib. Chegamos em 2020 e desde então mantivemos diálogo ativo com a corte. Recentemente estivemos nos gabinetes do ministro, demonstrando que estamos abertos a continuar o diálogo, mas não para entregar nossos direitos. Estar naquela mesa não traz nenhum benefício para nós. De um lado, tem a bancada ruralista, o agro. Nós estamos em minoria. E o que estamos fazendo lá, se a Constituição garante nossos direitos às terras tradicionalmente ocupadas e é contrária ao marco temporal?”, afirmou.
A advogada lembrou que o papel do ministro Gilmar Mendes é declarar a constitucionalidade do direito, com a derrubada da lei do marco temporal aprovada no Congresso. “A lei fomenta violência. Indígenas estão morrendo porque o agronegócio percebe que a lei está do lado deles apoiando. E eles se sentem mais encorajados a exercer a violência contra os povos indígenas”.
Segundo Auzerina, ao instituir a comissão, o STF está se escusando [dispensando] de exercer o papel de guardião da constituição.
“Estar em um local daquele só para legitimar a retirada do que já é nosso, que está previsto na Constituição?”, indaga a advogada indígena.
Auzenira Makuxi (Reprodução Flickr).
Ivo Makuxi, advogado do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que tem acompanhado as audiências, alertou que a comissão pode acabar fortalecendo a vigência da lei, apelidada de “Lei do Genocídio Indígena” por lideranças indígenas, ao permitir sua discussão novamente.
Para o advogado, a criação da comissão de conciliação fragiliza a decisão do STF que reconheceu os direitos indígenas como cláusula pétrea, ou seja, que os direitos indígenas são intransponíveis e inalienáveis. Outro risco é de que a discussão possa permitir a regulamentação de atividades econômicas destrutivas, como a mineração, em terras indígenas.
O advogado do CIR também alertou que discussões na comissão podem ser usadas por ruralistas para votar o marco temporal. “Isso é o nosso receio, de que algumas propostas podem ser distorcidas para travar demarcação de terras e relativizar nossos direitos. E isso pode perpetuar as violências e a paralisação de várias demarcações”.
Ivo Macuxi diz que o mais urgente é a suspensão da lei do marco temporal e o respeito à Constituição que trata sobre os direitos dos povos indígenas.
“As lideranças esperam que o STF respeite a constituição e não legitime todas as violências praticadas até agora contra nosso povo. Na minha opinião o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] deveria pautar essa discussão, ou seja, acompanhar e fortalecer diálogo intercultural entre o poder judiciário e os povos indígenas. Os povos indígenas há muitos anos vêm buscando o diálogo com o Estado brasileiro, sem nenhuma pressão”.
Mesmo que faça parte de um governo de coalizão, Ivo espera que o presidente Lula assuma o compromisso de garantir os direitos indígenas, e confronte forças contrárias dentro de seu governo para travar as demarcações.
“A postura do governo federal pode ser uma estratégia para levar adiante os projetos desenvolvimentistas, principalmente na Amazônia. O governo nunca deu resposta sobre qual será o impacto socioambiental do novo PAC nas terras indígenas. Não queremos mais violências contra o nosso povo”.
Kleber Karipuna, liderança e também diretor da Apib, avalia que “a comissão criada por Gilmar Mendes pode gerar um atraso ainda maior da dívida que o Estado brasileiro tem para com os povos originários na demarcação de suas terras”.
Ele destaca o perigo de a comissão “dar brecha para a negociação de atividades econômicas em terras indígenas, sobretudo relacionadas à mineração”, bem como criar precedentes para a revalidação do marco temporal, tese que o STF já havia declarado inconstitucional.
Especialistas contra direitos indígenas
A próxima reunião da comissão será no dia 14 de outubro. Na reunião do dia 23 de setembro, a comissão convidou especialistas para apresentar suas propostas de conciliação. Entre os convidados, estavam notórios defensores do agronegócio, do garimpo e do marco temporal, como Aldo Rebelo e Nelson Jobim, que foram ministros durante os governos petistas.
Também participou o indígena Arnaldo Zunizakae, do povo Paresi, sojicultor que trabalha com agricultura mecanizada para a produção de monocultura. Apoiador de Bolsonaro, o projeto de Zunizakae, no Mato Grosso, foi vitrine da política indigenista do então governo de extrema-direita.
Participaram da sessão, falando em defesa dos indígenas, Eloy Terena, do Ministério dos Povos Indígenas, e Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental (ISA).
À Amazônia Real, Márcio Santili disse que foi convidado na condição de especialista para fazer um depoimento de 30 minutos. “Falei do caráter consensual com que foi aprovado o Capítulo dos Índios na [Assembleia] Constituinte e da inconveniência de se tratar de direitos de minorias na base de maiorias circunstanciais.”
“O risco está em tornar essa comissão em instância deliberativa, por votos. Creio que o marco temporal vai cair e que o centro da discussão serão as indenizações por terra nua, como outra comissão desse gênero decidiu na semana passada num caso específico do Mato Grosso do Sul. Foi muito importante a edição de quatro portarias declaratórias de terras a serem demarcadas, pelo ministro da Justiça. Mas o governo pode e deve acelerar os processos pendentes”, declarou Santili, em referência ao acordo do STF que garantiu aos indígenas a posse da Terra Indígena (TI) Ñande Ru Marangatu, em Mato Grosso do Sul.
Pelo acordo, celebrado em 25 de setembro, a União indenizará os proprietários da terra, que deverão deixar o local em até 15 dias. Após esse prazo, a população indígena poderá ingressar no espaço de forma pacífica.
A região era alvo de disputas violentas entre indígenas e fazendeiros e culminou na morte do jovem Neri Guarani Kaiowá, atingido por um tiro na cabeça no dia 18 de setembro. O episódio provocou revolta entre os indígenas, entidades defensoras dos povos originários e a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara.
Ações no STF
A comissão especial para tentar conciliar acontece em um momento tenso dos direitos dos povos indígenas, no qual a principal preocupação é com os rumos da Lei do Marco Temporal aprovada no Congresso após o julgamento no STF que derrubou a tese jurídica defendida pela bancada ruralista.
Desde então, foram apresentadas quatro ações questionando a validade da lei (ADI 7582, ADI 7583, ADI 7586 e ADO 86) e uma pedindo que o STF declare sua constitucionalidade (ADC 87).
O ministro Gilmar Mendes instituiu a comissão de conciliação em abril deste ano e determinou a suspensão, em todo o país, dos processos judiciais que discutem a constitucionalidade da lei 14.701/2023 até que o Tribunal se manifeste definitivamente sobre o tema.
“Nossa intenção, em poucas palavras, é tentar reconciliar as posições jurídicas possíveis e encontrar soluções pacíficas para resolvermos todos os interesses em litígio: tanto dos indígenas quanto dos não indígenas, declarou o ministro em decisão, acrescentando que o esforço da comissão é em prol da construção de uma solução para os “impasses institucionais e jurídicos advindos da Lei 14.701/2023”.
Mendes, no entanto, fez uma ressalva: “Qualquer resposta advinda dos métodos tradicionais não porá fim à disputa político-jurídica subjacente, merecendo outro enfoque: o da pacificação dos conflitos, na tentativa de superar as dificuldades de comunicação e entendimentos”.
Ainda de acordo com o STF, os encaminhamentos feitos após o fim do ciclo de audiências serão levados aos 11 ministros do Supremo, que podem considerá-los durante o julgamento de mérito das cinco ações.
A comissão reúne integrantes do governo federal, representantes indígenas e da sociedade civil. As propostas e encaminhamentos realizados devem ser levados aos 11 magistrados, para que possam ser analisados no julgamento de mérito das cinco ações que tratam da Lei do Marco Temporal na corte.
No primeiro encontro da comissão, em 5 de agosto, o chefe de gabinete de Mendes e coordenador da audiência, Diego Viegas, acusou a Apib de querer esvaziar a comissão de conciliação, afirmando que as negociações não serão interrompidas pelo posicionamento da articulação.
Kleber Karipuna, da Apib, avalia que o ministro Viegas usou um “tom de ameaça” para o movimento indígena, insinuando que a Proposta de Emenda à Constituição 48 seria aprovada no Congresso caso a Articulação se retirasse. A reportagem procurou o STF e o ministro Diego Viegas sobre a declaração de Kleber Karipuna, mas não teve resposta.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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