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ToggleEntenda por que o município de Roraima, que se expande sobre Terra Indígena São Marcos, enfrenta décadas de conflito, impactos socioambientais e uma conciliação que pode legalizar a invasão. Na foto acima área urbana se aproximando das comunidades (Foto cedida por Glênio André/Comunicador indígena-APITSM).
Pacaraima (RR) – “Eles vendem um lote, invadem mais, constroem barracos. Estão cercando nossas aldeias”, descreveu Marcello Makuxi. Histórias como as relatadas pelo coordenador da Associação dos Povos Indígenas da Terra São Marcos (Apitsm) se repetem por toda a Amazônia, com a diferença de que nesta o Estado é o grande invasor. Em 1995, a sede urbana de Pacaraima, município na fronteira do Brasil com a Venezuela, foi criada por lei estadual sobreposto ao território homologado para os povos indígenas quatro anos antes. O conflito se arrasta na Justiça há mais de três décadas, e nesse tempo o que mais se viu é uma cidade engolindo uma área que deveria ter sido protegida.
Essa contínua invasão gera traumas para os povos Taurepang, Macuxi e Wapichana das comunidades no entorno da área urbana. Além do avanço sobre suas terras, eles amargam os impactos de um crescimento descontrolado que resulta em danos ambientais visíveis. “Os problemas continuam”, reforçou Giselda de Freitas, a 1ª tuxaua macuxi da comunidade Ouro Preto.
A pressão sobre a Terra Indígena (TI) São Marcos se intensifica com o rápido crescimento de Pacaraima. A cidade de Roraima, a 214 quilômetros da capital Boa Vista, registrou um aumento populacional de 85,04% na última década, saltando para 19.305 habitantes em 2022 e se tornando o município brasileiro com maior expansão demográfica no período. Impulsionada pela contínua migração venezuelana, Pacaraima se transformou em uma extensão da cidade vizinha Santa Elena de Uairén, onde a mistura de português e espanhol no comércio local criou o “portunhol”.
A migração em massa tem suas consequências e preocupa o povo da TI São Marcos. Dados obtidos por meio de imagens de satélite e sobrevoos de drones feitos pela Apitsm revelam a extensão dessa ocupação: Pacaraima saltou de 72 imóveis no ano 2000 para 2.036 até 2024. Este avanço desordenado, sem consulta prévia, consome gradualmente o território. “Cada um desses pontos é um pedaço do nosso território que vira cidade sem perguntar pra gente”, lamentou Marcello Makuxi.
A situação é agravada pela atuação de invasores que, segundo denúncias da Apitsm, têm se aproveitado da situação para vender ilegalmente terrenos dentro da Terra Indígena. “Ele [refere-se a um invasor] está vendendo aqueles terrenos a cinco mil [reais], sendo que está dentro da nossa comunidade”, denunciou Giselda de Freitas. A carta denúncia, assinada por 129 membros de diversas aldeias, aponta líderes de ações de garimpo ilegal desde 2021, causando desmatamento na Serra Pacaraima e contaminação de rios que abastecem diretamente as comunidades Ouro Preto, Fonte Nova e Nova Morada. O documento informa ainda que as “áreas desmatadas, estão sendo ilegalmente vendidas para imigrantes venezuelanos e outros não indígenas brasileiros”.
A carta cita a participação do Exército em ações anteriores para conter os crimes, mas ressalta a falta de “monitoramento constante”. Na assembleia de fevereiro de 2025, com Ministério Público Federal, Tribunal Regional Federal, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Prefeitura de Pacaraima, foi reafirmado que “a área urbana não pode mais avançar sobre as áreas das comunidades da Terra Indígena São Marcos”, ressaltou o manifesto.
Foi proposto aos indígenas e autoridades, também em fevereiro, uma conciliação para ocorrer ainda este ano, e decidir o desfecho do município de Pacaraima. O processo é público e é aguardado com expectativa. “A gente tá na fase da consulta [para saber se os indígenas vão para a conciliação], mas do mesmo jeito a invasão continua, não parou, segue o povo avançando”, criticou Giselda.
A Amazônia Real esteve no local em junho, e pôde observar casas em reformas e inúmeros imóveis à venda. A cidade fronteiriça já foi o destino de férias de centenas de famílias que possuíam casas de veraneio no município roraimense. A maior parte da mão de obra nos mercados de Pacaraima é de estrangeiros, assim como o grande número de clientes – migrantes que compram comida e atravessam a fronteira com os alimentos para suas famílias. Muitos, nos últimos anos, optaram por ficar na cidade do Brasil. Uma migração em massa que tem suas consequências e preocupa o povo da TI São Marcos.
‘O lixo era jogado aqui‘
Na comunidade Ouro Preto, há um lixão que simboliza alguns dos mais graves exemplos dos impactos ambientais e de saúde causados pela expansão de Pacaraima. Por cerca de 25 anos, os moradores viviam rodeados de lixo da cidade, despejado na entrada da aldeia. A pilha de sujeira dificultava o acesso dos indígenas à comunidade, hoje com 175 pessoas. “Tudo quanto era lixo, tudo eles despejavam na estrada. A nossa água, que consumíamos, era praticamente do chorume que vinha do lixão”, informou a tuxaua Giselda de Freitas, referindo-se ao líquido poluente que escorria para o rio Miang, fonte de água também para outras comunidades da região.
As consequências para a saúde foram desastrosas. Giselda relembrou a proliferação de moscas e urubus, o mau cheiro que impregnava o ar, e o adoecimento dos moradores. “As crianças e os mais velhos adoeceram de problemas intestinais e de pele quando o lixo era jogado aqui. Tinha muita mosca, e nossa água não prestava mais”, denunciou a indígena, reforçando que a água continua imprópria para consumo e banhos até hoje.
Para dar um basta à situação, em novembro de 2023, as lideranças decidiram acampar às margens do local onde caminhões da Prefeitura despejavam os resíduos sólidos. “Montamos acampamento e não saímos de lá. Se bobeasse, jogavam lixo mesmo assim”, contou Giselda, que também coordena a Casa de Apoio à Saúde Indígena em Pacaraima. Mesmo após a intervenção do Ministério Público Federal e a assinatura de um termo que proíbe o despejo, a sujeira que já estava lá não foi removida. “Disseram que em até seis meses fariam a retirada. E até agora, nada. Parece que esqueceram. Mas a gente não esquece.”
Apesar da firmeza da maioria das lideranças contra a conciliação, há diferentes visões dentro da comunidade indígena. A ex-liderança Adelina Ribeiro, por exemplo, reconhece o lixão em Ouro Preto como um problema grave, mas é mais cautelosa em se posicionar sobre a retirada da área urbana. “Sou contra [a retirada da área urbana]. Eles precisam de nós e nós precisamos deles. Ali é onde tá nosso banco, nosso hospital, nosso posto, supermercado”, explicou ao ser questionada sobre a retirada de Pacaraima da TI São Marcos.
Diante da possibilidade de manter o município, Giselda defende que Pacaraima seja um município indígena, citando Uiramutã como referência. “Nós não temos capacidade de também ter um município indígena? Capacidade de também possuir um local, um supermercado, uma loja. Nós não temos essa capacidade? Temos, é só querer.”

Embora na visita da reportagem não se tenha notado a presença de bichos e insetos, o mato ainda encobre parcialmente o lixo que não foi retirado, e plásticos de embalagens são visíveis sobrevoando a entrada da aldeia. Para tentar mitigar a falta de água potável, a prefeitura perfurou um poço, mas a solução está longe de ser ideal. “Conseguimos um poço, mas ele é muito longe. As pessoas têm que caminhar bastante para pegar água limpa. Isso dificulta o dia a dia e não resolve o problema de saúde de forma adequada”, explicou a tuxaua Macuxi.
A situação crítica de Ouro Preto foi retratada no documentário E para os índios, o lixo!, uma produção da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Instituto de Antropologia e Núcleo Histórico Socioambiental, que contrasta a ausência do poder público com a luta da comunidade. Uma pesquisa de conclusão de curso de antropologia da UFRR, de José Raimundo dos Santos, detalha que a comunidade nasceu como resistência ao avanço não indígena e que o despejo de lixo foi uma retaliação do município. “Chamava a atenção, do então estudante, ‘o descaso dos governantes com a população indígena’”, acrescentou o antropólogo.
A dimensão dos problemas ambientais e sociais decorrentes da ocupação foi documentada já em 2002. Naquele ano, o antropólogo Carlos Cirino, elaborou uma perícia técnica para a Funai sobre os impactos da urbanização para os indígenas de Pacaraima e Uiramutã. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, Cirino já ressaltava a poluição, desmatamento, alcoolismo, tráfico e violências. O estudo, disponibilizado para a reportagem, detalha as camadas de complexidade sobre a manutenção da cidade na fronteira, incluindo a “autorização” por parte dos indígenas, que à época não tinham uma ideia dos impactos.
“Cumpre observar que os índios reconhecem que não tinham consciência das transformações e prejuízos que do município produziria, quanto aprovaram a sua criação, por meio de um plebiscito, e nem o que significava o processo de municipalização: ‘Mas acontece que nós indígena que tamos aqui presente não sabiam o que o município ia trazer. Agora nós tamos vendo, tai a matança, vem muitas coisas’,” descreveu o antropólogo.
Sem negociação


Construção de casa na TI São Marcos e Marcello Makuxi, coordenador da Associação dos Povos Indígenas da Terra São Marcos (Fotos de Felipe Medeiros Amazônia Real).
A TI São Marcos, segunda mais antiga do Brasil após a do Xingu, vive um de seus momentos mais críticos. Marcello Makuxi, coordenador da Apitsm, revela a pressão do MPF para que as comunidades aceitem uma conciliação que pode redefinir os limites do território. Ele relata o tom das conversas: “Ah, vocês vão ficar sem isso, vocês vão ficar sem aquilo”, referindo-se a serviços básicos como saúde e educação.
Em 2004, indígenas tentaram delimitar a área urbana do município com cercas, mas foram atacados por não indígenas. Agora, com a tentativa de conciliação em curso, as lideranças temem um precedente perigoso. “Será o primeiro caso no Brasil onde indígenas negociam a exclusão de parte de seu território. E depois? Vão querer fazer o mesmo com fazendas, com lavouras”, refletiu Makuxi. Das 49 comunidades, 16 já foram consultadas.
Um exemplo concreto do histórico de ocupação ilegal é o casarão colonial da família do ex-governador de Roraima, Neudo Campos (PP). Foi o político que criou Pacaraima sem consulta prévia em 1995. Localizado no alto de um morro, às margens da delimitação territorial entre Brasil e Venezuela, a residência de cor rosa possui um amplo jardim. “Coisa da família real de Roraima”, definiu uma ex-funcionária. Em 2011, a Justiça Federal determinou a demolição da residência porque viola o acordo bilateral que proíbe construções a menos de 30 metros da linha divisória. Entretanto, o imóvel continua intacto, como constatado pela Amazônia Real.
Para Ivo Cípio Aureliano, advogado da Apitsm, a conciliação “viola a Constituição, que proíbe negociar terras indígenas”. Ele alerta que a expansão de Pacaraima já inspira outros Estados: “Onde há invasões, vão usar esse caso para pedir exclusões”.
A gestão da Apitsm é contra a conciliação. A tuxaua Giselda expressa sua recusa: “Não vou, não tem quem faça mudar a minha opinião de dizer não. Como é que eu vou vender uma coisa que eu vi o antepassado brigando pra nós ter”. Marcello Makuxi reforça a posição da Associação: “Meu tio foi morto defendendo essa terra na década de 90. E agora querem que a gente assine um papel entregando o que ele protegeu com sangue?”, disse.
No entanto, a Apitsm afirma que só se manifestará “após ouvir todas as lideranças” que representam mais de 10 mil indígenas, e que “a decisão da maioria será respeitada”. As lideranças pediram seis meses para consulta a todas as comunidades, mas “a maioria planeja não aceitar a conciliação”. “Será no nosso tempo!”, reforçou Marcello esclarecendo que as chuvas atrasaram o processo.
Hoje, nenhum imóvel em Pacaraima possui título definitivo devido à situação de o município se encontrar dentro da TI São Marcos. Essa situação fermenta um clima de hostilidade entre indígenas e não indígenas. Morador do município há 17 anos, o mototaxista José Augusto Freitas escolheu morar em Pacaraima pelo clima. Questionado sobre a possibilidade de o município deixar de existir, ele responde: “Vão ter que arrumar um lugar pra gente”.
Articulação do Estado


Mapa da Terra Indígena São Marco e Levantamento Loteamento Cadastral de Pacaraima (RR) (Fonte: PRF RR).
A Procuradoria-Geral do Estado defende a proposta do prefeito Waldery D´Avila Sampaio (PP) de definir um perímetro urbano para a sede do município, que não ultrapasse os limites das comunidades indígenas ao redor. A Amazônia Real teve acesso ao processo. A área proposta é 7.946.242 metros quadrados, equivalente a aproximadamente 1.113 campos de futebol, com o objetivo de “contemplar o direito de propriedade para todos, tanto para o município por meio de emissão de título definitivos, área institucionais e outros, quanto para os munícipes”.
Segundo a PGE-RR, essa área representa apenas “0,12% (zero vírgula doze por cento) se comparado com o perímetro total da área da TI São Marcos obtida oficialmente na própria Funai”. O documento da PGE-RR destaca “expressamente, que não existe sobreposição em relação às áreas das comunidades indígenas nas proximidades da sede do município”.
O processo revela o uso da “máquina do Estado para sustentar a exclusão de Pacaraima”, incluindo um ofício com mapa situacional do Instituto de Terras e Colonização de Roraima (Iteraima). O documento é assinado pela então presidente Dilma Costa, investigada por grilagem de terras.
Apesar das autoridades atuarem para manter o município estratégico para o comércio, Marcello Makuxi relata a falta de diálogo. “Se eu disser que sentei com algum político para discutir direitos indígenas, estaria mentindo. Eles só aparecem para dizer que a gente ‘atrapalha o desenvolvimento’,” contou. “Se a gente aceitar negociar Pacaraima, amanhã vão querer fazer o mesmo com fazendas em Raposa (Serra do Sol), com garimpo no Yanomami. Não podemos abrir essa porteira.”
Desde o fim dos anos 1990, o Estado afirma que diversas reuniões foram realizadas para realizar a “consulta” aos povos indígenas. Segundo Ivo Cípio Aureliano, os registros mostram que muitos desses encontros não eram sobre a expansão urbana, mas “entrega de tratores, programas de governo e outros atos administrativos”. Ele denuncia que “usaram listas de frequência de reuniões para dizer que houve concordância com a sede urbana. Isso fere o princípio da consulta livre, prévia, informada e de boa-fé, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho [OIT], que o Brasil assinou”.
Com uma possível conciliação à vista há uma compensação financeira aos povos da TI São Marcos, o que ocorreu no caso do Linhão de Guri. Mas caso não avance, o processo pode se arrastar por mais 10 a 15 anos, com possibilidade de recursos até no Supremo Tribunal Federal. Para Ivo, “o problema não é só o dinheiro. O que está em jogo é o reconhecimento do direito à terra, que é um direito fundamental e inegociável”, concluiu.
A posição das autoridades

O procurador-geral da Prefeitura de Pacaraima, Rhyka Aguiar, respondeu aos questionamentos da Amazônia Real. Segundo ele, após a homologação do município, “na ausência de recursos e estudos técnicos para a implantação de um aterro sanitário levou os moradores a uma solução prática: a escolha de um local distante da ‘Vila BV8’ [nome anterior de Pacaraima] para o descarte do lixo, garantindo que o ‘lixão’ ficasse a alguns quilômetros de distância da área habitada.”
Apesar de todo o território ser área indígena, Aguiar defende a gestão. Conforme o procurador, a “comunidade indígena Ouro Preto foi formada entre os anos de 2009 e 2010, demonstrando que a ocupação da área por diferentes grupos ocorreu em momentos distintos”. Sobre o lixo que ficou no local, ele disse que o “antigo lixão foi completamente desativado e limpo, não havendo mais o acúmulo de resíduos no local”. E completou: “Os resíduos sólidos urbanos são agora direcionados para um centro de coleta na própria cidade, de onde são transportados para o aterro sanitário construído no município de Amajari.”
O advogado, que também atende no seu escritório particular em Boa Vista, nega invasões e garimpo ilegal na região. “É importante ressaltar que a prefeitura de Pacaraima não possui registros ou notícias de invasões de terras ou atividades de garimpo nas cercanias da cidade. A relação entre indígenas e não indígenas sempre foi pautada pela boa convivência e harmonia no município, contribuindo para o crescimento conjunto da cidade”, disse Rhyka.
A reportagem questionou, via assessoria de comunicação, a Funai, MPF e TRF, mas ainda não teve respostas. O texto será atualizado se os órgãos se manifestarem.

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