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Mídia brasileira desvia o foco das vítimas e atiça crise diplomática Brasil-Israel – Intervozes – CartaCapital

Mídia brasileira desvia o foco das vítimas e atiça crise diplomática Brasil-Israel – Intervozes – CartaCapital

Enquanto este artigo é lido, mais vidas palestinas são perdidas no que pode ser descrito como um dos conflitos armados mais sangrentos e covardes da história recente. O cenário em Gaza é desolador, com relatos de jovens, crianças e mulheres vivendo um pesadelo. A gravidade dos ataques — a escolas, hospitais e o alarmante número de civis afetados — coloca em questão não apenas as ações de Israel, mas também a abordagem que a mídia ocidental e brasileira reservam à crise.

Gaza alcançou a triste marca de 10 mil mortes em apenas um mês de ofensiva, um número assombroso que superou rapidamente as baixas de toda a guerra na Ucrânia, por exemplo. . Atualmente, já são mais de 30 mil mortes em Gaza, sendo 68% das vítimas crianças e mulheres, segundo dados da Organização Mundial da Saúde Além das vítimas fatais, são milhares de feridos em hospitais precarizados pelo conflito, milhares de desalojados que buscam refúgio em países vizinhos e outros milhares passando fome ou enfrentando epidemias, como a do coronavírus. Os dados evidenciam  uma crise humanitária de proporções assustadoras, segundo dados de outubro de 2023.

Uma análise do Intervozes sobre o tratamento dado pelo Jornal Nacional e o Jornal da Record às declarações do presidente Lula esta semana sobre o genocídio em Gaza revela  a tendência dos meios de comunicação brasileiros em priorizar vozes críticas à declaração de Lula, evocando e sublinhando uma crise diplomática grave. A cobertura da mídia demonstra uma escolha editorial que acaba por desviar a atenção do cerne do conflito e suas implicações humanitárias.

Em visita ao continente africano, o presidente Lula se posicionou novamente pelo imediato cessar-fogo, e caracterizou o que está acontecendo em Gaza é um genocídio. Desde o início do conflito, Lula deu declarações criticando as ações terroristas do Hamas e se solidarizando com as mortes civis tanto do lado palestino quanto israelense. Porém, a última declaração, onde o presidente também compara a ofensiva israelense ao holocausto, causaram frisson na mídia nacional.

Na última segunda-feira, 19 de março, o Jornal Nacional destinou quase 15 minutos da edição ao imbróglio. Foram ouvidas oito fontes que comentaram as declarações do presidente Lula e as reações de Israel e do governo brasileiro. Das oito, seis criticaram de forma veemente o posicionamento de Lula, enquanto apenas uma – do vice-presidente Geraldo Alckmin – buscou localizar o posicionamento do Brasil e do governo com relação ao conflito. A outra fala destoante foi a de Mauro Vieira, ministro das Relações Exteriores do Brasil que, em nota, convocou o embaixador brasileiro de volta ao país. A nota oficial, porém, é repercutida com seu conteúdo factual, sem espaço para posicionamento, opinião ou aprofundamento da declaração do chefe de Estado brasileiro.

Para as demais fontes, no entanto, o espaço foi bem maior e vieses políticos, históricos e religiosos puderam ser explorados. Foram repercutidos os seguintes posicionamentos: Confederação Israelita do Brasil (Conib) e Instituto Brasil-Israel, ministro das relações exteriores de Israel, Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp), Monique Sochaczewski, historiadora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e Rubens Ricupero, ex embaixador nos EUA, Itália e Nações Unidas. As fontes foram unânimes em classificar como um “erro” o posicionamento de Lula, que foi considerado por elas como “desequilíbrio” ou “distorção perversa da realidade”.

Na mesma noite, o Jornal da Record deu amplo espaço a fontes que repudiaram a fala de Lula, destacando ainda que a declaração foi elogiada “pelo grupo terrorista Hamas” e que acarretou uma “grave crise diplomática”. Foram dez fontes ouvidas diretamente ou por meio de notas e declarações em redes sociais. Destas, apenas duas – da primeira dama Janja e do vice-presidente Geraldo Alckmin – aprofundaram a posição de Lula e do Brasil ante à tragédia humanitária em curso. Uma das fontes chegou a classificar a declaração de Lula como antissemita. Outra pessoa ouvida defendeu que os palestinos estão sofrendo “por causa do Hamas e não por causa de Israel e que qualquer país faria o mesmo se tivesse suas fronteiras invadidas”, contribuindo dessa forma para o aumento da desinformação sobre o conflito.

Entre as duas entradas de matérias sobre a questão, uma nota coberta veiculou imagens do sequestro, pelo Hamas, de uma mãe e dois filhos e trouxe números sobre civis mantidos reféns pelo grupo terrorista. As imagens foram divulgadas pelo exército israelense, o que reforça  o desequilíbrio narrativo da matéria, ao enfatizar as ações realizadas em outubro passado e não as consequências atuais do conflito. No retorno à agenda diplomática, o apresentador destaca: “especialistas em relações internacionais avaliam a declaração de Lula como desastrosa. Segundo as análises, a fala causa problemas  diplomáticos ao Brasil”.

Na mesma edição, o jornal ainda abre espaço para posicionamento das Frentes Evangélicas no Congresso Nacional. Na sequência, é veiculada declaração do vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos-SP) que classifica a postura de Lula como “desequilibrada” e justifica a ofensiva israelense. A matéria finaliza com a informação de que um grupo de deputados reúne assinaturas para um pedido de impeachment contra o presidente sob a justificativa de que Lula teria cometido crime de responsabilidade ao expor o Brasil ao perigo de guerra. “São necessárias 171 assinaturas. Até o início da noite, 97 parlamentares já haviam assinado”, declarou a apresentadora.

Ao destacar mais intensamente as reações negativas e minimizar ou ignorar contextos e vozes que oferecem uma perspectiva diferente, a mídia brasileira influencia a formação da opinião pública, potencialmente perpetuando uma visão unilateral do conflito.

Lula, ao condenar as ações do Hamas, não deixou de criticar severamente Israel: “O Brasil condena o Hamas, mas o Brasil não pode deixar de condenar o que Israel está fazendo na Faixa Gaza”. A comparação feita por Lula entre a situação em Gaza e os atos de Hitler foi amplamente repercutida, porém, focando em potenciais repercussões diplomáticas em vez de lançar luz sobre as questões humanitárias denunciadas na declaração do Presidente. A escolha editorial da mídia  fortalece narrativas que não refletem a complexidade do conflito.

No raiar da última terça-feira, 20,  o editorial d’O Estado de S. Paulo manteve a ofensiva contra a declaração de Lula e cravou:  “ao dizer que guerra de Israel contra o Hamas equivale ao Holocausto, Lula avilta a história, a memória dos judeus assassinados pelos nazistas e os interesses do Brasil”. Com o título “Vandalismo Diplomático” o Estadão abre fogo contra o presidente brasileiro acusando-o de antissemitista, “esquerdista raivoso” e “demiurgo”.

Voltando ao Grupo Globo, no Bom dia Brasil e no Jornal Nacional de terça, 20, o tom de crítica se manteve, embora tenha amenizado com abertura de foco para a posição do Brasil em Haia, contrária à ofensiva de Israel,  e com espaço para posicionamentos do Estado brasileiro. Houve destaque também para  projeto de resolução do Conselho de Segurança da ONU que pedia “um cessar-fogo imediato” em Gaza.

O que chama atenção é que, resguardada as particularidades da linha editorial e do posicionamento político dos veículos, a cobertura é hegemonicamente pouco empenhada em construir o histórico do conflito, quase sempre circunscrito como um ato de defesa – legítimo de Israel contra o Hamas.

A cobertura pouco aprofundada não se limita a descontextualizar declarações. Ela se estende a uma narrativa que frequentemente retrata Israel como vítima em uma cruzada em legítima defesa e que retrata o genocídio do povo palestino como uma guerra contra o Hamas, ignorando a ocupação prolongada e as ações de um governo de extrema-direita que tem exacerbado as tensões. Organizações internacionais classificam Israel como um Estado de apartheid, acusação que raramente é explorada na mídia brasileira.

Conforme o Direito Internacional Humanitário, a ocupação de um território durante um conflito deve ser temporária e quem ocupa deve administrar o território ocupado, levando em conta o bem-estar da população da área.

Além da cobertura do conflito, a mídia tem demonstrado uma tendência ao silenciamento de décadas, raramente questionando a legalidade ou mesmo a moralidade da ocupação israelense da Palestina. A narrativa frequentemente ignora o direito internacional e a condição dos palestinos como um povo sob ocupação, vivendo condições descritas por organizações como a Anistia Internacional como um apartheid.

Racismo e cobertura midiática

Este silenciamento é agravado por um racismo recorrente na cobertura de conflitos internacionais. A cobertura da guerra na Ucrânia versus a situação na Palestina ilustra este ponto, com declarações que destacam a surpresa e a indignação com o sofrimento de europeus, enquanto o sofrimento prolongado no Oriente Médio é normalizado ou ignorado. David Sakvarelidze, ex-procurador-geral adjunto da Ucrânia, expressou à BBC um sentimento que ressoa profundamente com essa disparidade: “É muito impactante para mim porque vejo europeus com cabelos loiros e olhos azuis sendo mortos todos os dias com mísseis de Putin, seus helicópteros e seus foguetes”.

Essa observação mostra a surpresa e o choque que o sofrimento dos ucranianos,  indivíduos que se assemelham ao estereótipo europeu desperta em alguns observadores.

Da mesma forma, um apresentador inglês da Al Jazeera, Peter Dobbie, contrastou os refugiados ucranianos com aqueles do Oriente Médio e do norte da África, descrevendo os primeiros como “pessoas prósperas de classe média” que “não são obviamente refugiados tentando fugir de áreas do Oriente Médio que ainda estão em grande estado de guerra; essas não são pessoas tentando fugir de áreas do norte da África, elas se parecem com qualquer família europeia com a qual você moraria ao lado”. Tal comparação revela uma visão profundamente enraizada de quem merece empatia e quem é o “outro”.

Interior do hospital Nasser após os primeiros bombardeios de Israel.
Foto: AFP

Contra esses absurdos, a frase de Aimé Césaire nos traz uma importante reflexão sobre o tema: “O que eles não podem perdoar a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem… é o crime contra o homem branco, e de ter aplicado à Europa práticas coloniais que até então só tinham sido reservadas para os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África”. Césaire aponta para a hipocrisia de um mundo que se indigna com as atrocidades quando elas ocorrem na Europa, mas permanece insensível às mesmas práticas em outras regiões.

Essas reflexões evidenciam não apenas uma discrepância na cobertura midiática mas também uma profunda injustiça na maneira como determinados povos são reconhecidos pela mídia brasileira e ocidental.

Neste sentido, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) através de comissão que o Intervozes integra emitiu uma série de recomendações aos veículos de comunicação brasileiros sobre a cobertura midiática dos conflitos na Faixa de Gaza.

O CNDH denuncia ainda o regime de apartheid israelense, fato não abordado pelos veículos de imprensa brasileiros, que também não mencionam que o avanço de Israel sobre os territórios palestinos produziu o “maior campo de concentração a céu aberto do mundo”, de acordo com as organizações Anistia Internacional e Human Rights Watch.

“É extremamente constrangedor que a mídia brasileira esconda, de forma deliberada, que há um processo de colonização em curso naquela região, na qual o Estado de Israel é evidentemente o colonizador, controlando, inclusive, o abastecimento de itens essenciais com água, luz e alimentação”, destaca a recomendação.

O que a mídia não diz sobre a situação palestina

Cumpre terminar este texto com informações e dados da Anistia Internacional pouco explorados pela mídia brasileira e ocidental:

  • Desde 1967, Israel mantém uma ocupação em Gaza e na Cisjordânia, incluindo também Jerusalém oriental, anexada ilegalmente.
  • A ocupação israelense da Palestina é a mais longa e uma das ocupações militares mais letais do mundo.
  • Na Cisjordânia existem pelo menos 300 assentamentos e postos avançados israelenses ilegais, incluindo em Jerusalém Oriental, com população de mais de 700 mil colonos israelenses.
  • Ao longo dos anos, a ocupação israelense, que implementou um sistema de apartheid aos palestinos, evoluiu para uma ocupação permanente, violando o direito internacional.
  • Durante 56 anos, os palestinos têm vivido encurralados e oprimidos, com aspectos das suas vidas cotidianas controlados pelas autoridades israelenses, as quais impõem restrições de acesso à terra e aos recursos naturais, à liberdade de circular, trabalhar e ter uma vida digna.
  • Na Faixa de Gaza ocupada, os palestinos foram sujeitos a diversas ofensivas militares: pelo menos 6 entre 2008 e 2023, além de um bloqueio terrestre, aéreo e marítimo, que ajudou Israel a manter o controle e a ocupação de Gaza.
  • Hoje, em Gaza, os civis enfrentam um risco iminente de genocídio. Isso evidencia as consequências da permissão para que as violações sistemáticas cometidas por Israel continuassem impunes por tanto tempo, ferindo o direito internacional.
  • As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Carta Capital e são de total responsabilidade do autor.
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