Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Cultura oceânica nas escolas propaga conhecimento desde a infância

Cultura oceânica nas escolas propaga conhecimento desde a infância

“Eu pensava que o mar era só para gente se divertir, não sabia que o oceano era tão importante para nossa vida”, é o que conta Sophia Spaolonzi, 10 anos, estudante do 5º ano do Ensino Fundamental da rede municipal de Santos, litoral de São Paulo. Mesmo morando toda sua vida de frente para a praia, Sophia só refletiu sobre o impacto desse ecossistema quando sua escola passou a incorporar a cultura oceânica no currículo.

Santos foi o primeiro município do mundo a estabelecer a cultura oceânica como política pública no currículo escolar, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). A Lei Municipal nº 3.935 entrou em vigor no ano letivo de 2022 e ficou conhecida como “Currículo Azul”. Apesar de não conter a palavra “obrigatório”, o texto determina que todas as escolas da rede municipal de ensino devem promover a cultura oceânica de forma transversal, desde a educação infantil até o ensino fundamental e educação de jovens e adultos. Trabalhar “transversalmente”, basicamente, significa não se restringir a uma disciplina ou componente curricular, mas que esse assunto faça parte do cotidiano da escola. Dentre inúmeros exemplos, em uma aula de História, pode-se enfatizar o papel do oceano na globalização e na colonização europeia. Em Português, podem ser lidos textos sobre o ecossistema marinho.

Segundo estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o estuário de Santos é um dos locais mais contaminados por microplásticos de todo o planeta. A pesquisa comparou dados internacionais, de mais de cem estudos de 40 países, com amostras de ostras e mexilhões coletados em três regiões da cidade litorânea paulista em julho de 2021.

O lixo é um dos grandes desafios para o município, assim como para o contexto mundial. “Existem múltiplas ameaças em jogo. Além dos microplásticos que estão sendo carreados pelos rios, tem a questão da pesca predatória, o uso abusivo dos recursos que o mar nos dá, questões ligadas à acidificação do oceano, dentre outros”, explica Fabio Eon, coordenador de Ciências Humanas e Sociais e Ciências Naturais da UNESCO no Brasil.

De acordo com ele, é indispensável estimular o maior conhecimento sobre o oceano, desde o ensino básico até as pesquisas nas universidades. “O oceano cobre 70% da superfície do planeta e é a nossa principal fonte de oxigênio, mas ainda conhecemos muito pouco. Apenas 5% de todo o oceano é mapeado pela pesquisa científica”, aponta.

A cada duas respirações, uma depende do oceano

Para Eon, a cultura oceânica nas escolas é fundamental para o Brasil avançar nos compromissos da Década do Oceano, declarada pelas Nações Unidas em 2017 e que está sendo realizada oficialmente de 2021 a 2030, quando os países devem dar destaque ao assunto. “A escola é o primeiro local em que se socializa. Aprender esse conceito logo cedo pode fazer dessa criança um adulto mais consciente, correto e que entenda a noção de educação para a cidadania global, capaz de compreender que as mudanças climáticas nos afetam como humanidade, para a sobrevivência da nossa própria espécie”, explana.

O ensino transversal da cultura oceânica ajuda o país a progredir na Agenda 2030, que estipula os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que todas as nações signatárias devem atingir para “proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade”, conforme é estipulado pela Nações Unidas (ONU). “Eles são importantes porque impõem uma meta atingível e um desses é sobre o mar, o ODS 14, sobre Vida Marinha”, ressalta Eon.

Em Santos (SP), projeto “Embaixadores do Século XXI” ensina a cultura oceânica com música, leitura e atividades sobre reciclagem. Foto: Matheus Melo

Crianças podem ser “embaixadoras” da sustentabilidade

A legislação de Santos faz parte de um conjunto de ações que o município vem executando em prol da educação ambiental, como projetos nas escolas que incluem compostagem, coleta de óleo e de resíduos para reciclagem. A Unidade Municipal de Educação João Papa Sobrinho é destaque nesse sentido, porque criou, ainda em 2020, uma iniciativa focada em cultura oceânica, o Embaixadores do Século XXI,  que hoje reúne 29 estudantes do 4º e 5º anos do Fundamental.  

Sophia Spaolonzi relata que conseguiu levar a mudança de comportamento para dentro de casa. “Minha mãe tinha um comércio na época que entrei para o projeto e que gerava muito lixo. Agora, esse resíduo está sendo levado até a escola para destinar à reciclagem”, conta. Para além dos novos conhecimentos, ela destaca que um dos maiores pontos positivos foi trabalhar em equipe. “É algo que vou levar para a vida”, declara. No Embaixadores do Século XXI, são os próprios alunos que desenvolvem ideias de campanhas, entram em sala de aula para apresentar as ações e mobilizam colegas e responsáveis para participarem das atividades, como levar esponja usada para destinar à reciclagem.

Na escola, todas as disciplinas abraçaram a cultura oceânica. “Na capoeira, a professora abordou a conexão do oceano com a vinda dos africanos para o Brasil. Na Cozinha Experimental, foi feita a reflexão de qual tipo de alimento que o mar nos oferece, como o atum. Na Horta, as crianças começaram a bucha vegetal, substituta sustentável da esponja. Cada um trabalhou dentro do seu espaço”, ressalta, orgulhoso, o inspetor Renato Rodrigues, coordenador e idealizador do Embaixadores do Século XXI.

Pelo menos 16 municípios no Brasil já possuem legislação sobre cultura oceânica

Com a legislação do Currículo Azul, agora todas as demais escolas do município precisam entrar nessa onda. “Não é só mais uma tarefa para os professores fazerem pontualmente, precisa ser transversal, estar presente em todas as disciplinas, durante todo o ano letivo”, ressalta o secretário de Meio Ambiente e autor da lei, Marcos Libório. De acordo com a Prefeitura, todo o corpo docente das 86 escolas municipais, que atendem a 27 mil alunos, já passou por uma formação feita pela Secretaria de Educação.

Depois da lei pioneira, surgiram normas semelhantes em outros municípios e estados. Hoje, pelo menos outras 15 cidades discutem ou já aprovaram legislações de incentivo à cultura oceânica nas escolas, segundo o Maré de Ciência, programa de extensão da Unifesp, dedicado ao tema.

Veja no mapa quais são:

Cultura oceânica ainda é pouco explorada nos currículos escolares

No contexto federal, o Brasil ainda trata com timidez a cultura oceânica. É o que constatou a pesquisadora Carmen Pazoto. Junto ao grupo do Laboratório de Genética Marinha e Evolução da Universidade Federal Fluminense (LGME-UFF), ela observou os documentos que norteiam o ensino fundamental e médio no Brasil: Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e Referenciais Curriculares Estaduais. Como resultado, notaram que, de um total de 640 mil palavras, apenas 19 eram relacionadas com o oceano e ambientes marinhos. “Já tinhamos observado que, naquele momento, havia essa lacuna no cenário global. No currículo da Inglaterra, só se citava três vezes o oceano. Na Austrália, não tinha nenhuma menção”, informa Pazoto, que é bióloga marinha e também professora do 6º ao 9º ano do ensino fundamental.

O levantamento foi feito de 2019 a 2021. Posteriormente, Pazoto fez uma pesquisa entrevistando professores. “A principal barreira citada é justamente a ausência do tema no currículo de forma explícita. E tem a cobrança de abordar o conteúdo que cai nas provas como o Enem, que não contemplam a cultura oceânica”, revela. “Além disso, os livros didáticos focam muito em ambientes terrestres e deixam o oceano em segundo plano”, complementa.

A pesquisadora acredita que políticas públicas devem enfatizar a necessidade de ensinar o tema, como o faz a legislação de Santos, e que seria interessante que a BNCC e PCN incluíssem essa perspectiva nitidamente. “O currículo nacional demora muito tempo pra ser mudado. Por isso, o meio que temos de implementar a cultura oceânica hoje é pelo projeto político pedagógico nas escolas”, comenta Carmen Pazoto. 

No entanto, a assessoria do Ministério da Educação (MEC) informou à reportagem do ((o))eco que o tema não está em discussão interna no momento. Fabio Eon, da UNESCO, explica que existe um Plano Nacional e um comitê de Implementação da Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, mas é liderado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). “Sei que o MEC vai ter um papel importante na implementação da Década, mas é um tema relativamente novo. Como UNESCO, temos acompanhado uma troca de conversas muito intensa entre a nossa sede e o MEC para ver como esse ministério pode se engajar mais nessa discussão”, declara. O professor Ronaldo Christofoletti informou que o Maré de Ciência também está em diálogo com a pasta para estimular a incorporação do tema na BNCC.

Formação para professores é necessária

Os professores sentem a necessidade de serem melhor preparados para ensinar sobre o assunto. É o que constatou tanto Pazoto quanto Alexander Turra, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), professor da Universidade de São Paulo (USP) e responsável pela Cátedra UNESCO para Sustentabilidade do Oceano. Ele participou de estudo que identificou a presença e frequência de relações entre as Competências Específicas (CE) da BNCC e os princípios da cultura oceânica, com base em conteúdos das Ciências da Natureza. “Só vamos ter efetivamente o oceano sendo tratado nas escolas se tivermos basicamente três coisas: políticas públicas e campanhas, formação continuada de professores e a disponibilidade de materiais educativos de suporte ao professor e de trabalho com os alunos”, concluiu, após sua investigação, que também traz luz a quais os gargalos e potenciais desse ensino no país. 

Considerando esse contexto, o LGME-UFF, do qual a pesquisadora faz parte, realiza o projeto Onda Cultural na Escola, apoiando escolas do litoral do Rio de Janeiro no fomento À cultura oceânica. “Aplicamos um conteúdo diferenciado, não fugindo do que está no currículo, mas aprofundando em temas relacionados ao oceano. Aproveitamos todas as curiosidades, fazemos experimentos, aulas de campo e com jogos”, descreve a pesquisadora.”O principal impacto que consigo ver é a mudança na percepção do aluno em relação a questões problemáticas. Passam a enxergar que a praia deixa de ser só areia e água e passa a ser vida”, declara.

Escola Azul promove o ensino transversal por todo o país

Independente da distância que estejam do mar, todas as escolas podem e devem promover o entendimento de como o oceano influencia a nossa vida e de como as nossas ações o impactam. Essa é a ideia propagada pelo movimento Escola Azul, que iniciou em Portugal em 2017 e “atracou” no Brasil oficialmente em 2020. “Existem alguns valores para essa educação oceânica, como ser transdisciplinar, não pode estar dentro de uma disciplina só, tem que estar baseada em projetos, o aluno tem que ser protagonista, dentre outros fatores. Foram criados alguns critérios e as escolas que se propusessem a isso ganhariam um selo de Escola Azul”, esclarece Ronaldo Christofoletti, professor do Instituto do Mar, da Unifesp, e coordenador do Maré de Ciência, que articula o Escola Azul nacionalmente. 

A proposta é que qualquer escola possa aderir à iniciativa voluntariamente, fazendo adaptações à realidade local. Para o futuro breve, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o programa planeja distribuir bolsas de incentivo para professores e estudantes, para criar clubes de cultura oceânica em todas as regiões do país. Até o fechamento desta reportagem, 260 escolas já receberam o selo Escola Azul, em todas as regiões do país. Qualquer membro da comunidade escolar pode candidatar sua instituição no site do programa.

Superar desigualdades é desafio

Embora seja uma ação valiosa, promover a educação oceânica pode ser uma tarefa complexa. Em um país com tantos marcadores de desigualdade, seja de acesso à educação, estrutura familiar e até mesmo de distância ao mar, são muitos cenários diferentes para cada comunidade escolar. “Mesmo em cidades litorâneas, tem crianças que nunca aproveitaram um dia de praia, porque até mesmo pagar o ônibus pode ser difícil. Por isso, introduzir a temática é um desafio muito grande, porque existe esse distanciamento das crianças e dos professores com o tema e alguns alunos têm uma base difícil de compreensão, muitos chegam com defasagem de aprendizado. Desse modo, uma necessidade que a gente sentiu foi de aperfeiçoar a leitura e escrita enquanto desenvolvemos o projeto”, lembra Carmen Pazoto.

Alexander Turra corrobora, introduzindo o conceito de “racismo oceânico”. “Existe uma questão ética e moral muito importante. O racismo oceânico tem várias facetas e uma delas é a exclusão”, assinala. Para ele, é fundamental que, ao abordar a cultura oceânica, haja uma aproximação do que esse tema impacta na realidade de cada comunidade. “Não é só o oceano em si, mas qual a lógica disso para a sociedade, no dia a dia das pessoas? Se temos um oceano doente, é porque a sociedade está doente, pela pobreza, má distribuição de renda, fome, falta de saneamento, por uma série de fatores que causam o problema do lixo e do esgoto que vão parar no mar”, reflete.

O pesquisador observa ainda o efeito que a cultura oceânica pode ter sobre os outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: “Dá para combater a fome a partir do oceano, reduzir a pobreza, controlar o clima, trabalhar com o consumo sustentável, dentre outras possibilidades”.

Foi através dessa abordagem dos ODS que a secretária de Educação de Barcarena (PA), Ivana Ramos, se aproximou da cultura oceânica. O município fica a cerca de 1h de barco da capital do estado, Belém, e é banhado por rios. “Sinceramente, não faz parte da nossa realidade pensar no oceano, apenas nos rios. Mas, como dizemos agora, aqui o mar é marrom”, brinca a secretária. O trocadilho se refere às águas dos rios paraenses que são, em grande parte, turvas e de tons marrons, contrastando com a imagem do oceano azul e límpido.

“Foi um processo chegar a esse entendimento de que o mar tem influência direta com a nossa realidade. Começou lá em 2013, quando iniciamos, na gestão municipal, o debate sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), de forma muito branda”, recorda Ramos. Ao longo dos anos, a Prefeitura incorporou a discussão sobre ODS, tornando parte do planejamento local, de acordo com ela. “De repente, nos chega até aqui o conhecimento da cultura oceânica. Enxergamos como Barcarena é um local que deve ser impactado de diversas formas pelas mudanças climáticas”.

Justamente em Santos, no início deste ano, a secretária participou de um evento onde conheceu o Escola Azul. “Nós resolvemos participar. O tema já estava sendo discutido na rede de ensino municipal desde o ano passado, mas agora estamos garantindo o selo para todas as nossas escolas”, afirma. “Fizemos uma releitura do assunto, sob uma perspectiva amazônida e um olhar barcarenense. O mar, que era um conceito distante, hoje a gente vê como um conceito real”, diz.

Segundo ela, atualmente 72 escolas da rede municipal já estão implementando o Escola Azul, sendo considerado o maior case de sucesso do programa em termos de adesão municipal. Diferente de Santos onde há uma legislação que orienta nesse sentido, em Barcarena a adesão é totalmente voluntária. A secretaria oferece uma formação mensal para gestores, coordenadores e professores.

Esta reportagem foi apoiada pelo Edital Conexão Oceano de Comunicação Ambiental, promovido pela Fundação Grupo Boticário.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor

Compartilhe:

Facebook
Twitter
LinkedIn

Postes Recentes

FORMULÁRIO DE INSCRIÇÃO

Redes Sociais: