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Brocas nos tempos da Vovó

Brocas nos tempos da Vovó

“Nos países desenvolvidos, os hábitos de comida e bebida estão implicados em seis das dez causas mais importantes de mortalidade (enfermidades do coração, câncer, diabetes, apoplexia, arteriosclerose, doenças hepáticas e crônicas e cirrose), assim como em outras muitas desordens não fatais, mas potencialmente incapacitadoras, como a osteoporose e ou a diverticulose.” *


É incontestável a ascensão de adoecimentos indistintos sobre a humanidade. Em cada esquina, em cada diálogo, mesmo casual, as temáticas se repetem: dores aqui, ali, internações variadas, lotações em UTIs, mortes, doenças indiagnosticáveis e cujas referências impactam populares e até mesmo letrados de academias. É o que está posto no atual cenário da modernidade desenvolvimentista em expansão acelerada e descontrolada.

Um breve olhar no tempo redesenha a que traz em sua matriz, em seu processo evolutivo cicatrizes de lutas variadas: de apropriação de territórios, produção de alimentos a modos de vida sustentáveis.  Apesar da intensidade dos conflitos tribais, aquelas populações zelavam pela qualidade dos solos, cultivo de alimentos saudáveis por entenderem que a sobrevivência das espécies vem a partir de cuidados essenciais com a base produtora, com o tipo de cultivos e com a qualidade do que ingerimos. Só pra recordar: a gênese de todo esse processo produtivo brotara no período “Neolítico” – a chamada “Idade da Pedra Polida”. Ali nascera a agricultura, a partir das íntimas relações e identificações das mulheres com a “Divina Fêmea Universal”. Coube às mulheres tal desempenho e com relevância. Inspiradas na Sabedoria das Matriarcas as mulheres inventaram os primeiros instrumentos de diálogo e de cuidados com a Mãe Terra. O que ainda hoje se cultiva sobre soberania alimentar, agricultura orgânica, devemos às Fêmeas que nos antecederam.

Em síntese, era a sabedoria ancestral, a coletividade pluriversa manifestada em práticas de cuidados, em sentimentos de amorosidade para com todos os seres independentemente da espécie, em jeitos solidários de lidar com o universo/diverso na tessitura da Teia da Vida” *.

Após essa viagem no meu tempo extradimensional, atrevo-me a mais este rascunho literário.  A provocação fluíra após visita a um supermercado do meu Estado – um “hiper” -, conforme a conceituação imperialista da linguagem. Naquela manhã, saí atrás de comprovações, de testemunhos relativos à origem de queixumes incessantes sobre obesidades, diabetes, hipertensão, infecções urinárias, hepatites, gastrites, esofagites e uma infinidade de códigos que se sobrepõem ao entendimento e ao alcance interpretativo da maioria de vítimas de tais situações. Deparei-me ali com um número significativo de consumidores advindos de comunidades rurais, em maioria mulheres jovens (filhas e netas de velhas amigas, minhas conterrâneas das terras baixas).

Era visível o interesse daquelas jovens mulheres por escuta. Percebia-se nas expressões angustiadas busca por respostas paliativas ou soluções imediatas para as mazelas acumuladas em suas jornadas.  Em nenhum momento, associavam as debilidades da saúde aos componentes/ingredientes presentes nos produtos apelidados de alimentos nos quais acabavam de investir os últimos centavos.

Nas sacolas (nada retornáveis) identifiquei pacotes de macarrão, arroz, lácteos, feijão, salsicha, linguiça, sardinha em lata, latas de óleo, calabresa, frangos congelados, biscoitos e etc. Na base da maioria das embalagens, discretamente, um “T” sobre um triângulo identificando a origem da produção – transgênica.

(O tempo/espaço disponíveis para detalhar o volume de inquietações conflitantes sobre aquela realidade são insuficientes e limitados… Há muito a expressar!)

Foram muitas abordagens. De minha parte, trouxe lembranças da qualidade de vida de nossas comunidades rurais: cultivo de espécies variadas, plantas medicinais, ornamentais, frutíferas, hortas e etc. Da parte delas, apenas queixas sobre doenças variadas, sequelas sem perspectivas alvissareiras… As dores físicas e o volume de mazelas ali expostas silenciaram a tentativa dialética. A dormência crítica sobre a realidade dos adoecimentos as distanciava ainda mais de quaisquer ligações/relações com a sacola de produtos a que chamam de alimentos. Aproveitei a brecha e rememorei vivências na Comunidade rural* onde nasci e me desenvolvi na companhia das mães e avós das jovens interlocutoras.  

Na contramão do padrão “fast-foodista”, resgatei as “brocas” de nossas avós, o tempo em que consumíamos alimentos originais, a maioria já esquecidos, desconhecidos e até discriminados pelos próprios nativos. Lembrei nutrientes e sabores presentes no “cará-roxo*, “cará-do-ar”*, no “mari-mari”*, “piquiá”*, “pajurá”*, “uixi”*, “castanha sapucaia”*, “pupunha”*, no “ariá””*… Os sucos naturais sem as nocividades de refrigerantes… Os mingaus de banana, de farinha de tapioca, de “crueira*; o “pé-de-moleque” regado à castanha; enfim, a macaxeira, quebradinhos de tapioca… Resgatei também a “pajiroba”*, a “manicuera”*, o “tarubá”* servidos nos antigos “puxiruns”* com cheiros de roças, de saberes naturais, de curandagens, de banhos de rio, de viagens de canoa, de pescarias com tarrafa e caniço, de água de cacimba, de “peconhas”*, de contos, canções e amores em noites de luar…

Sem reações acolhedoras! Apenas olhares dispersos e indiferentes qual ecos perdidos no vazio caótico produzido na mercantilização da vida… Configuravam-se ali alienígenas de si mesmas e do próprio tempo… Produtoras inconscientes das próprias mazelas sem qualquer conexão com a materialidade que as dilacera e ao mesmo tempo que as desafia ressaborizar de saúde plena o caldeirão da Amazônia Caboca a partir das brocas e temperos inventados na Sabedoria das Vovós.

Paro por aqui! De resto, só desafios para além das imposições dos Agros e Negócios. Viajo em dinâmicas de educação socioambientais de amplo envolvimento, de interação e expansão a percepções sobre os modos como nossas ancestrais se relacionavam com a Mãe Terra e sobre o que conservamos em nós para produzir, distribuir, consumir e seus reflexos para a saúde universal.

Só saudades das “brocas” da Vovó!


Falares de Casa

Ariá: Calathea allouia

Brocas: Gíria que indica comida

Castanha sapucaia: Lecythis pisonis

Cará-do-ar: Dioscorea bulbifera

Cará-roxo: Dioscorea trifida

Comunidade Vila Amazônia: Antiga Comunidade de Santa Maria, 5 956 km2, Município de Parintins. Projeto do Governo do Amazonas, nas décadas de 1920-30, cuja criação favoreceu a imigração japonesa.

Crueira: amido extraído da mandioca usado na culinária caboca.

Manicuera: bebida artesanal nativa da Amazônia.

Mari-mari: Cassia leiandra

Pajiroba: bebida artesanal dos nativos do Amazonas com leve fermentação usada em rituais e puxiruns.

Pajurá: Parinari montana

Pé-de-moleque: alimento amazônico a base de mandioca.

Peconhas: instrumento artesanal dos nativos da Amazônia, confeccionado com palha ou cipó; usado na coleta de frutos de palmeiras.

Piquiá: Caryocar villosum

Pupunha: Bactris gasipaes

Puxiruns: o mesmo que mutirão.   

Tarubá: bebida artesanal nativa da Amazônia.

Teia da vida: É a teia de relações pelas quais tudo tem a ver com tudo e em todos os momentos e em todas as circunstâncias. É o fundamento articulado de sistemas e subsistemas que a tudo e a todos engloba. (Leonardo Boff, p. 43. 2003)         

Uixi: Endopleura uchi

* (Alimentação, Sociedade e Cultura. Jesús Conteras e Mabel Gracia, Fiocruz, p. 187. 2011)


A imagem que abre este artigo é de autoria de Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência e mostra alimentos na campanha “Não aos Agrotóxicos”.


As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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