Em 20 de outubro, o IBAMA aprovou a licença para o primeiro poço “de pesquisa” de petróleo na foz do rio Amazonas, contradizendo não apenas as conclusões de especialistas externos (por exemplo, [1-3], mas também os pareceres formais da própria equipe técnica do IBAMA [4, 5]. A recente “simulação” de resposta a um derramamento de petróleo, que apresentou resultado negativo e exigiu diversas medidas corretivas, além de uma segunda “simulação” [6], apenas serviu para acelerar a aprovação. As lições a serem aprendidas com esse histórico recente são altamente relevantes para a aprovação pendente do projeto de reconstrução da rodovia BR-319.
Assim como o projeto da foz do Amazonas, a BR-319 tem enormes consequências ambientais que vão muito além do que é considerado no processo de licenciamento. O licenciamento para o projeto da foz do Amazonas se concentra na capacidade da Petrobras de transportar a fauna aquática resgatada para uma base de apoio em terra dentro de um prazo específico, em caso de derramamento de óleo, mas o impacto do projeto é muito mais amplo: um derramamento de óleo se espalharia por oito países, segundo o IBAMA [7], e, com a profundidade da água no local sendo o dobro da profundidade no local do desastre de 2010 no Golfo do México, onde foram necessários cinco meses para conter o vazamento, espera-se que o óleo continue a vazar na foz do Amazonas por um período muito mais longo.
O projeto também abre caminho para a aprovação de muitos outros blocos de perfuração (até 47 apenas na foz do Amazonas) [8] e coloca em movimento um processo econômico que leva à extração e queima de petróleo muito além do momento em que o mundo inteiro deverá cessar o uso de combustíveis fósseis [9-11]. Isso o torna um fator crucial para a continuidade do uso de combustíveis fósseis, o que implica ultrapassar o ponto de inflexão no sistema climático global, levando o aquecimento global a um estado fora de controle humano e devastando o Brasil e grande parte do mundo [11].
Também como no projeto Foz do Amazonas, o licenciamento da BR-319 mal arranha a superfície dos verdadeiros impactos do projeto. O licenciamento da BR-319 concentra-se em uma estreita faixa de terra ao longo do próprio traçado da rodovia, ignorando os planos para cinco rodovias estaduais do Amazonas que conectariam à BR-319, incluindo a AM-366, que se estenderia por 574 km a oeste, abrindo a vasta região Trans-Purus para o desmatamento [12-14]. Considerando o enorme estoque de carbono nesta área [15], esse desmatamento, em combinação com o estresse climático previsto para esta área [16, 17], provavelmente desencadearia o colapso da floresta nesta parte da Amazônia, o que emitiria gases de efeito estufa suficientes para levar o clima global além de seu ponto de inflexão [18].
A aprovação do projeto petrolífero da Foz do Amazonas demonstra como as decisões são tomadas na prática. Tanto no projeto petrolífero quanto no projeto de reconstrução da BR-319, o IBAMA sofreu intensa pressão durante anos para aprovar os projetos (por exemplo, [19, 20]). No caso do projeto da Foz do Amazonas, a realização da “simulação” de uma resposta a um derramamento de óleo serviu de pretexto para a pressão final pela aprovação do projeto, apesar do resultado negativo da simulação. Para a BR-319, espera-se que a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) desempenhe um papel semelhante, independentemente do conteúdo do relatório [21, 22]. A história do projeto Foz do Amazonas demonstra claramente que a lógica dos membros do grupo Agroeco do INPA em sua recusa de participar da AAE é correta [23]. A maneira em que o projeto na Foz do Amazonas foi aprovado representa uma lição sombria para a BR-319.
Notas
[1] Guimarães, A.L. Y. Telles, A.C.F. Aguiar, A.M. Batista, F.R. Scarano & P. Moutinho. 2025. Green royalties: Keeping offshore Amazon free of oil. Perspectives in Ecology and Conservation 23: 70–76.
[2] Rodrigues, M. 2023. Oil from the Amazon? Proposal to drill at river’s mouth worries researchers. Nature 619: 680–681.
[3] Duarte, H.O.B., K. Mustin, C.E.C. de Campos, S.V. Costa-Neto, I.J. de Castro, H.F.A. Cunha, A.C. da Cunha, R.R. Hilário, F. Pedroso‐Santos, J.C.E. Vilhena, P.M. Fearnside & W.D. Carvalho. 2025. Ameaças da nova fronteira de petróleo do Brasil. Amazônia Real, 08 de outubro de 2025.
[4] IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). 2023. Parecer Técnico nº 128/2023-Coexp/CGMac/Dilic: Processo número 02001.013852/2023-87.
[5] Borges, A. 2024 Técnicos do Ibama recomendam rejeição de licença de perfuração na Foz do Amazonas. Folha de São Paulo, 29 de outubro de 2024.
[6] ClimaInfo. 2025. Petrobras é reprovada em plano de resgate de animais na Foz do Amazonas. ClimaInfo, 28 de setembro de 2025.
[7] ClimaInfo. 2023. Pedido de licença de petróleo na Foz do Amazonas prevê impacto em 8 países. ClimaInfo, 13 de novembro de 2023.
[8] ClimaInfo. 2025. Licença para Petrobras na foz do Amazonas abriria “porteira” na região. ClimaInfo, 04 de abril de 2025.
[9] IEA (International Energy Agency). 2021. Net Zero by 2050: A Roadmap for the Global Energy Sector. IEA, Paris, França. 222 p.
[10] Fearnside, P.M. 2025. O Lula acordará para a crise climática? Amazônia Real, Série completa.
[11] Fearnside, P.M. 2025. Por que o Brasil deveria abandonar seus planos de gás e petróleo na Amazônia. Amazônia Real, 21 de maio de 2025. https://amazoniareal.com.br/por-que-o-brasil-deveria-abandonar-seus-planos-de-gas-e-petroleo-na-a
[12] Fearnside, P.M. 2024. Impactos da rodovia BR-319. Amazônia Real, Série completa.
[13] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020. Região Trans-Purus, a última floresta intacta. Amazônia Real, série completa.
[14] Yanai, A.M., M.A. Isaac Júnior, J.N. da Silva, M.A. dos Santos Junior, P.M.L.A. Graça & P.M. Fearnside. 2025. Modelagem do impacto de rodovias planejadas no desmatamento e na ocupação ilegal de terras em uma área crítica da Amazônia brasileira: A região Trans-Purus [tradução de Regional Environmental Change 25: art. 120].
[15] Nogueira,E.M., Yanai, A.M.; Fonseca, F.O.R.; Fearnside, P.M. 2015. Carbon stock loss from deforestation through 2013 in Brazilian Amazonia. Global Change Biology 21: 1271–1292.
[16] Flores, B.M., E. Montoya, B. Sakschewski, N. Nascimento, A. Staal, R.A. Betts, C. Levis, D.M. Lapola, A. Esquível-Muelbert, C. Jakovac, C.A. Nobre, R.S. Oliveira, L.S. Borma, D. Nian, N. Boers, S.B. Hecht, H. ter Steege, J. Arieira, I.L. Lucas, E. Berenguer, J.A. Marengo, L.V. Gatti, C.R.C. Mattos & M. Hirota. 2024. Critical transitions in the Amazon forest system. Nature 626: 555–564.
[17] Fearnside, P.M. 2025. Última chance para a floresta amazônica brasileira? Amazônia Real, Série completa.
[18] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2023. A seca na Amazônia em 2023 indica um futuro desastroso para a floresta tropical e seu povo. The Conversation, 06 de novembro de 2023.
[19] Santiago, L. 2025. Licença na Foz do Amazonas é resultado de pressão do setor energético e ‘frustra’ ala ambiental do governo. Brasil de Fato. 21 de outubro de 2025.
[20] Pamplona, N. 2025. Petrobras recebe licença para perfuração de poço na bacia da Foz do Amazonas. Folha de São Paulo, 20 de outubro de 2025.
[21] Fearnside, P.M. 2025. Rodovia BR-319: O novo “acordo” de licenciamento como porta de entrada para a destruição. Amazônia Real, 21 de julho de 2025.
[22] Fearnside, P.M. 2025. BR-319: O papel perverso da Avaliação Ambiental Estratégica. Amazônia Real, 17 de setembro de 2025.
[23] Fearnside, P.M., P.M.L.A. Graça, A. Yanai, R.A. Silva, B.F. Cabral, F.M.B. Romero & L.G. Ziccardi. 2025. A Avaliação Ambiental Estratégica da BR-319. Amazônia Real, série completa.
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