Por Valter M. Azevedo-Santos, Philip M. Fearnside, Marlene S. Arcifa, Lívia H. Tonella, Tommaso Giarrizzo, Fernando M. Pelicice, Angelo A. Agostinho, Anne E. Magurran e N. LeRoy Poff
Projetos de lei tirando restrições ambientais sobre pequenas barragens para irrigação implicam em impactos importantes para a biodiversidade aquática. Publicamos um trabalho [1] na conceituada revista Environmental Management, disponível aqui explicando estas consequências. A seguir apresentamos essas informações em língua portuguesa.
Resumo
O Brasil está entre os principais contribuintes para a biodiversidade global, que, por sua vez, fornece enormes serviços ecossistêmicos. A agricultura é uma das atividades mais beneficiadas por esses serviços ecossistêmicos. No entanto, essa atividade tem contribuído para a degradação dos ecossistemas aquáticos e terrestres e para a erosão da biodiversidade brasileira. Esse conflito está crescendo, pois. propostas legislativas insustentáveis estão surgindo para beneficiar o setor agrícola provavelmente aumentarão o declínio da biodiversidade. Por exemplo, uma dessas iniciativas (Projeto de Lei 1282/2019) pretende alterar o “Código Florestal” (Lei 12.651/2012) para facilitar a construção de barragens de irrigação em Áreas de Proteção Permanente; esta última inclui faixas (com vegetação ou não) ao longo das bordas dos cursos d’água. Além disso, outros dois projetos de lei semelhantes estão em andamento na Câmara dos Deputados. Aqui detalhamos esses três projetos de lei e discutimos — se aprovados — suas consequências para a biodiversidade do Brasil. Os impactos negativos esperados com mudanças na legislação incluem, por exemplo, aumento do desmatamento, assoreamento, fragmentação de habitat, introdução de espécies não nativas, reduções na disponibilidade de habitats aquáticos e mudanças no processo biogeoquímico. Essas propostas colocam em risco a biodiversidade e podem comprometer as negociações para um acordo entre o Mercosul e a União Europeia.
Introdução
O Brasil está entre os principais contribuintes para a biodiversidade global [2]. Estimativas anteriores sugeriram que há cerca de 210.000 espécies conhecidas no país [3] — mas acredita-se que esse número seja maior atualmente. A biodiversidade do Brasil fornece vários serviços ecossistêmicos, incluindo aqueles classificados como reguladores, de suporte, de provisão e culturais (por exemplo, [4, 5]). Essa biodiversidade tem sido cada vez mais ameaçada pela expansão das atividades humanas (por exemplo, [6-9]), inclusive por meio de políticas oficiais(por exemplo, [10, 11]).
As atividades agrícolas têm gerado impactos negativos nos ambientes e na biodiversidade brasileira [12, 13]. Nos últimos 50 anos, a área irrigada no Brasil aumentou em aproximadamente um fator de 10, e em 2015, essa área totalizou ~7 milhões de hectares, com projeções indicando que atingiria 10 milhões de hectares até 2030 [14]. A irrigação ocorre em diferentes sistemas (por exemplo, pivôs centrais, gotejamento) com água retirada de reservatórios hidrelétricos, lagos e, também frequentemente, rios e córregos. Os córregos também podem ser represados para fornecer água para irrigação, embora essas represas sejam em vários casos ilegais e afetem negativamente a biodiversidade [15]. A expansão dos campos irrigados pode acelerar ainda mais com a legislação recente favorecendo — de forma insustentável — o setor agrícola.
O atual “Código Florestal” do Brasil (Lei número 12.651/2012) exige a manutenção de Áreas de Preservação Permanente (APPs), que incluem faixas de floresta ao longo das bordas dos cursos d’água [16]. Intervenções em APPs são permitidas apenas em casos específicos quando os impactos são “baixos” [16]. No entanto, três projetos de lei atualmente avançando em comissões na Câmara dos Deputados e no Senado facilitariam a construção de barragens para irrigação nessas áreas. Aqui explicamos por que essas leis propostas ameaçam a biodiversidade. [17]
A foto que abre este artigo mostra a barragem da Pequena Central Hidrelétrica Retiro (PCH Retiro), localizada no rio Sapucaí, na divisa entre Guará (SP) e São Joaquim da Barra (SP). A imagem captura a mata ciliar, plantações e estradas rurais. (Foto: Raylton Alves Batista/ANA).
Notas
[1] Azevedo-Santos, VM, Fearnside PM, Arcifa MS, Tonella LH, Giarrizzo T, Pelicice FM, Agostinho AA, Magurran AE, Poff NL (2024) Irrigation dams threaten Brazilian biodiversity. Environmental Management 73(5): 913–919.
[2] Agostinho AA, Thomaz SM, Gomes LC (2005) Conservation of the biodiversity of Brazil’s inland waters. Conservation Biology 19: 646–652.
[3] Lewinsohn TM, Prado PI (2005) How many species are there in Brazil? Conservation Biology 19: 619–624.
[4] Ellwanger JH, Nobre CA, Chies JAB (2022) Brazilian biodiversity as a source of power and sustainable development: A neglected opportunity. Sustainability 15(1): 482.
[5] Pelicice FM, Agostinho AA, Azevedo-Santos VM et al (2023) Ecosystem services generated by Neotropical freshwater fishes. Hydrobiologia 850: 2903–2926.
[6] Loiselle BA, Graham CH, Goerck JM, Ribeiro MC (2010) Assessing the impact of deforestation and climate change on the range size and environmental niche of bird species in the Atlantic forests, Brazil. Journal of Biogeography 37(7): 1288–1301.
[7] Fernandes GW, Goulart FF, Ranieri BD et al (2016) Deep into the mud: ecological and socio-economic impacts of the dam breach in Mariana, Brazil. Natureza & Conservação 14(2): 35–45.
[8] Fernandes LFL, Paiva TRM, Longhini CM et al (2020) Marine zooplankton dynamics after a major mining dam rupture in the Doce River, southeastern Brazil: Rapid response to a changing environment. Science of the Total Environment 736: 139621.
[9] Garcia LC, Szabo JK, Roque FO et al (2021) Record-breaking wildfires in the world’s largest continuous tropical wetland: Integrative fire management is urgently needed for both biodiversity and humans. Journal of Environmental Management 293: 112870.
[10] Fearnside PM (2016) Brazilian politics threaten environmental policies. Science 353: 746–748.
[11] Pelicice FM, Azevedo‐Santos VM, Vitule JRS et al (2017) Neotropical freshwater fishes imperilled by unsustainable policies. Fish and Fisheries 18(6): 1119–1133.
[12] Hepp LU, Milesi SV, Biasi C, Restello RM (2010) Effects of agricultural and urban impacts on macroinvertebrates assemblages in streams (Rio Grande do Sul, Brazil). Zoologia 27: 106–113.
[13] Pelicice FM, Agostinho AA, Akama A et al(2021) Large-scale degradation of the Tocantins-Araguaia River basin. Environmental Management 68: 445–452. https://doi.org/10.1007/s00267-021-01513-7
[14] ANA (2019) Levantamento da agricultura irrigada por pivôs centrais no Brasil (1985-2017). Levantamento da agricultura irrigada por pivôs centrais no Brasil / Agência Nacional de Águas, Embrapa Milho e Sorgo. – 2. ed. Agência Nacional de Águas. Brasília, DF. 47 p.
[15] Maffra MA, de Souza DC (2018) Barragens para irrigação: Aspectos jurídicos e ambientais da sua construção, operação e remoção. Revista do CNMP (7):146–166.
[16] Brasil (2012) Lei Nº 12.651, de 25 de maio de 2012.
[17] Esta é uma tradução de Azevedo-Santos, V.M., P.M. Fearnside, M.S. Arcifa, L.H. Tonella, T. Giarrizzo, F.M. Pelicice, A.A. Agostinho, A.E. Magurran & N.L. Poff. 2024. Irrigation dams threaten Brazilian biodiversity. Environmental Management 73(5): 913–919. O PMF foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (2020/08916-8), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (0102016301000289/2021-33), FINEP/Rede CLIMA (01.13.0353-00). O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) concedeu bolsas de pesquisa à PMF (Processo 312450/2021-4), FMP (Processo 312256/2020-5) e AAA (Processo 312549/2021). O Leverhulme Trust (RPG-2019-402) concedeu bolsas de pesquisa à AEM.
Sobre os autores
Valter M. Azevedo-Santos possui graduação em ciências biológicas pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e mestrado e doutorado em ciências biológicas (zoologia) pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Tem interesse em conservação da biodiversidade aquática. Ele é docente permanente na Universidade Federal do Tocantins-Porto Nacional e é membro do Grupo de Ecologia Aquática, Espaço Inovação do Parque de Ciência e Tecnologia Guamá (PCT Guamá), Belém, Pará.
Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador 1A de CNPq. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 800 publicações científicas e mais de 750 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui: http://philip.inpa.gov.br.
Marlene S. Arcifa possui graduação em história natural e mestrado e doutorado em ciências biológicas (zoologia) pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professora sênior no Departamento de Biologia da USP, Ribeirão Preto. Tem experiência na área de ecologia, com ênfase em ecologia de ecossistemas. Estuda cladocera, ciclomorfose e eutrofização.
Lívia H. Tonella possui doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR. É afiliada ao Departamento de Biologia, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, São Paulo.
Tommaso Giarrizzo possui graduação em ciência agrária tropical e subtropical pela Universidade de Firenze (Itália) e doutorado em biologia marinha pela Universidade de Bremen (Alemanha). Ele é professor visitante no Instituto de Ciências do Mar, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza e é membro do Grupo de Ecologia Aquática, Espaço Inovação do Parque de Ciência e Tecnologia Guamá (PCT Guamá), Belém, Pará. É pesquisador do CNPq Nível 1D. Estuda a dinâmica nos ecossistemas aquáticos, inclusive peixes em mangues na costa do Pará e o acúmulo de microplástico em peixes de água doce na Amazônia.
Fernando Mayer Pelicice possui graduação em ciências biológicas e da saúde pela Universidade Metodista de São Paulo, e mestrado e doutorado em ecologia de ambientes aquáticos continentais pela Universidade Estadual de Maringá. Atualmente é professor adjunto no Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade, Ecologia e Conservação, Núcleo de Estudos Ambientais, Universidade Federal do Tocantins, Porto Nacional, TO. Suas pesquisas são na área de ecologia e conservação da biodiversidade, com foco especial nos peixes de água doce, impactos de hidrelétricas, ecologia e manejo de reservatórios, espécies invasoras, e fatores que determinam padrões de diversidade em ecossistemas aquáticos.
Ângelo Antônio Agostinho possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Londrina, mestrado em Zoologia pela Universidade Federal do Paraná e doutorado em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos. Aposentou-se como professor titular da Universidade Estadual de Maringá, onde mantém o vínculo como professor voluntário, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais. É pesquisador 1A do CNPq. Atua na área de Ecologia, com ênfase em Ecologia de Ecossistemas, com abrangência para os seguintes temas: ictiofauna, pesca, limnologia, manejo e conservação de recursos ictiofaunísticos em reservatório e áreas úmidas.
Anne Elizabeth Magurran tem doutorado em ecologia e evolução pela Universidade de Ulster, Irlanda do Norte e um doutorado honorário da Universidade de Bergen, Noruega. É professora no Centro de Diversidade Biológica, Escola de Biologia, Universidade de St Andrews, Escócia. Ela tem mais de 200 publicações científicas, inclusive quatro livros. Ela investiga a evolução, medição e conservação da diversidade biológica usando abordagens experimentais e de modelagem para examinar a estrutura e a função de peixes de água doce. Colabora com pesquisadores em vários países, incluindo o Brasil.
N. LeRoy Poff possua graduação em biologia pela Hendrix College em Arkansas, EUA, mestrado em ciências ambientais pela Universidade de Indiana, e doutorado em biologia pela Universidade Estadual de Colorado, onde ele atualmente é professor no Programa de Pós-Graduação em Ecologia. Ele também tem uma cadeira professoral distinguida no Centro de Ciências Aplicadas da Água, Universidade de Canberra, Austrália. Ele pesquisa a estrutura de habitats e a variabilidade ambiental em múltiplas escalas em ecossistemas aquáticos com o objetivo de fornecer uma base para prever atributos da comunidade aquática e respostas ecológicas a alterações no uso da terra e mudanças climáticas regionais.
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