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ToggleRepressão de polícias ao Acampamento Terra Livre (ATL) em Brasília revolta indígenas e entidades. Gás lacrimogêneo e balas de borracha atingiram crianças, idosos e a deputada Célia Xakriabá durante protesto pacífico por direitos e participação na COP 30 (Foto: Tukumã Pataxó/ Cobertura Colaborativa Apib).
Manaus (AM) – Bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha atingiram crianças, mulheres, idosos, lideranças tradicionais indígenas e até a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG) na tarde de quinta-feira (10). A Polícia Militar do Distrito Federal e o Departamento de Polícia Legislativa atacaram a marcha pacífica do Acampamento Terra Livre (ATL) assim que os indígenas se aproximaram do prédio do Congresso.
A deputada federal não só teve seu acesso ao Congresso impedido como negaram atendimento médico a ela e a outras lideranças indígenas – ela foi uma das atingidas pelos efeitos do gás pimenta. Em coletiva de imprensa, Célia Xakriabá afirmou que foi vítima de racismo por parte dos agentes que faziam a segurança do evento. Nesta sexta-feira, ela encaminhou uma ação ao Supremo Tribunal Federal (STF) solicitando a investigação da conduta dos policiais.
Com a presença de mais de 7 mil indígenas de 200 povos diferentes, o ATL 2025 cobrou a participação efetiva dos povos originários na COP 30, marcada para novembro de 2025, em Belém (PA), e o fim da exploração de combustíveis fósseis. Mas a repressão policial desproporcional acabou por desviar a atenção sobre essas reivindicações.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) emitiu uma nota de repúdio. “Temos evidências de que os atos fazem parte de um contexto de violência institucional disseminada contra os povos indígenas”, afirmou. Segundo a organização, durante uma reunião convocada pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) para discutir sobre a organização da marcha, um participante não identificado proferiu uma fala de teor racista e de incitação à violência. “Deixa descer logo…deixa descer e mete o cacete se fizer bagunça”. A declaração foi registrada em áudio e obtida pela Apib após solicitação formal.

Vários indígenas ficaram feridos na frente do Congresso após a repreensão da Polícia Legislativa (Fotos: @richard_wera_mirim / Cobertura Colaborativa APIB).
O que causou revolta nos indígenas é que não houve qualquer ato de vandalismo no protesto pacífico “A Resposta Somos Nós”, que fazia parte da programação do ATL. O acesso ao gramado do Congresso foi feito pelos indígenas de forma espontânea e pacífica, sem confrontos. “A mobilização teve como objetivo a defesa de direitos constitucionais e o fortalecimento do diálogo com os Poderes da República. O Acampamento Terra Livre é realizado há mais de 20 anos na capital federal, sempre com forte organização, compromisso e respeito às instituições democráticas. Ao longo dessas mais de duas décadas, o movimento indígena sempre colaborou e continuará colaborando para garantir que o evento ocorra de forma tranquila e segura”, diz outro trecho da nota da Apib.
Rosimere Arapaço, ativista indígena do povo Arapaço e coordenadora da Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas (MAKIRA-ËTA), afirmou em entrevista à Amazônia Real que, apesar do discurso democrático do governo brasileiro, a repressão ainda age com a mesma força do período militar. “Em pleno século 21, onde falamos da democracia, vemos a repressão ainda como se fosse da época do governo militar”, disse. “Se o governo, os braços do governo, a segurança do governo, hostiliza o povo indígena, que segurança o Brasil tem? Como tem atuado nas faixas de fronteira? Como está atuando seu governo nos últimos anos, nas últimas décadas? Isso é muito preocupante.”
A ativista Rosimere destacou que a marcha, embora pacífica, foi marcada por tensões e tentativas de silenciamento. “A hora que precisar estaremos voltando. Homens, mulheres, juventude, crianças, adolescentes, anciões, nós não desanimamos. Nós resistimos. O nosso lema sempre foi: resistir para existir.”
Segundo ela, a mobilização não é apenas para denunciar, mas também para reafirmar a existência dos povos indígenas como sujeitos de direito e de sabedoria. “Nós estamos no governo da oposição, no governo da direita. Esse é o grande desafio do Brasil. Se o governo brasileiro não entender que os povos indígenas são os únicos que podem fazer a diferença para abrir os olhos da sociedade, para que a mudança climática pare ou amenize. A sociedade precisa aprender com os povos indígenas”, afirmou.
Outras organizações e lideranças indígenas e indigenistas condenaram o ataque e exigiram responsabilização das autoridades. “O Congresso, além de aprovar leis inconstitucionais, ataca os povos indígenas e seus próprios deputados”, repudiou em sua rede social a Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). A entidade lembra que o Congresso “deveria ser a casa da democracia”.
A ministra dos Povos Indígenas (MPI), Sonia Guajajara, em um post nas redes sociais, também criticou a atuação das forças policiais. “Meu repúdio total à inaceitável violência que vimos hoje no Congresso. Os povos indígenas merecem respeito”, disse.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também manifestou repúdio. Em nota, classificou o uso de gás de pimenta e da força policial como desnecessário e desmedido, exigindo a apuração imediata dos fatos e a responsabilização dos envolvidos. A entidade se declarou solidária aos povos indígenas, à Apib e à deputada Célia Xakriabá. “Reafirmamos nosso compromisso com os povos originários, em sua legítima luta pela vida e por seus direitos fundamentais, contribuição imprescindível para a defesa da democracia em nosso país”, disse o texto.
Protagonismo no debate climático

No mesmo dia da repressão policial, os movimentos indígenas celebravam avanços políticos obtidos nesta edição do ATL, que celebra 21 anos de existência da assembleia e 20 anos desde a criação da Apib. Llideranças indígenas do Brasil, Canadá e Pacífico entregaram à presidência da COP 30 uma carta que exige o fim da era dos combustíveis fósseis e a implementação de uma transição energética justa e equitativa.
A carta, coordenada pela organização internacional 350.org, recebeu o apoio de 180 organizações indígenas, ambientais e de juventudes de diferentes países. O documento foi entregue ao presidente da COP 30, André Corrêa do Lago, em uma cerimônia simbólica, com a presença da ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva, e da ministra Sonia Guajajara.
Além da carta, a Apib lançou uma proposta de NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) Indígena, elaborada a partir do acúmulo de propostas de suas organizações regionais e de base. A NDC é uma meta que cada país estabelece em relação ao seu compromisso para combater o aquecimento global. Já o indicador indígena reforça que o debate climático precisa considerar a equidade, a autodeterminação e a participação efetiva dos povos indígenas e comunidades tradicionais na implementação da meta brasileira, no âmbito do Acordo de Paris.
O MPI anunciou, na mesma ocasião, a criação de uma Comissão Internacional para a COP 30 para que os povos originários não sejam apenas consultados, mas estejam à frente das negociações climáticas. As lideranças pedem a co-presidência indígena no evento. A comissão será presidida por Sonia Guajajara e composta pela Apib, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), o G9 da Amazônia Indígena, a Aliança Global de Comunidades Territoriais (GATC), e o Fórum Permanente da ONU sobre Assuntos Indígenas (UNPFII). É prevista a participação de outras organizações e fóruns internacionais indígenas.
Na carta final do 21º ATL, a Apib destaca a criação da Comissão Internacional Indígena para a COP-30 como “a expressão concreta do reconhecimento de um movimento que há séculos resiste, que é a contribuição indígena para o equilíbrio da Terra”. Para a organização, a comissão é mais do que um espaço institucional, porque representa uma conquista histórica dos próprios povos indígenas que há anos cobram por mais reconhecimento e espaço para participação efetiva nos fóruns globais.
A meta da comissão é credenciar mil lideranças indígenas na Zona Azul da COP 30 como símbolo de um processo de retomada, de presença e de poder indígena. “Com sabedoria ancestral, articulação política e coragem histórica, o movimento indígena mostra ao mundo que não há saída para a crise climática sem a demarcação das terras indígenas”, apresentou a carta.
Para a liderança Rosimere Arapaço, ações como essas indicam que o ATL continua sendo um espaço privilegiado de incidência política, principalmente para as mulheres indígenas. “É muito importante no contexto político, nacional e internacional, onde o mundo volta aos olhares para a Amazônia. A pauta importante para a gente são as questões ambientais. Todos os povos estão com muita preocupação diante do rumo que as questões da mudanças climáticas estão afetando. A solução para tudo isso são os povos indígenas”, declarou.
Conciliação forçada

O ATL deste ano aconteceu em meio ao impasse da comissão de conciliação sobre o marco temporal, coordenada pelo ministro do STF Gilmar Mendes. A comissão terminou sem acordo entre representantes do agronegócio e do governo. Nesta semana, após solicitação da Câmara e do Senado, o governo federal acatou o pedido de prorrogação dos trabalhos da Câmara de Conciliação.
Ao longo da semana, os indígenas marcharam pela Esplanada dos Ministérios carregando uma réplica da estátua da Justiça, exigindo que seus direitos sejam respeitados. A imagem virou símbolo da campanha por dignidade, demarcação e reparação histórica. A pauta da conciliação é central nas falas nos debates do ATL, em um contexto classificado por lideranças indígenas como “desconstitucionalização” de seus direitos e uma tentativa de reconfiguração da política indigenista no Brasil.

Apesar de o STF ter declarado inconstitucional a tese do marco temporal, em setembro de 2023, o tema voltou a circular no Congresso na forma de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 48/2023), imposta pela bancada ruralista, que pretende incluir na Carta Magna o “marco temporal”. Em julho de 2024, diante da iminência da aprovação da PEC na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), dominada por ruralistas e bolsonaristas, um acordo selado pelo então líder do governo Jaques Wagner e os senadores propôs a criação da Câmara de Conciliação.
Para as organizações indígenas, a conciliação é usada como forma de travar direitos fundamentais dos povos indígenas previstos na Constituição Federal de 1988. O alerta é ainda maior para uma minuta de um anteprojeto proposto por Gilmar Mendes que cria instrumentos como a indenização por terra nua, o uso da Polícia Militar em ações de reintegração de posse e a flexibilização do processo de consulta livre, prévia e informada às comunidades. A posição do movimento indígena é clara e reivindica pelo fim da mesa de conciliação do STF e a revogação da Lei 14.701/2023. As entidades se retiraram da Câmara de Conciliação ao perceberem que não havia diálogo possível e equilibrado.
“Em pleno ATL, o Congresso juntou nesse processo um pedido para que a Câmara de conciliação se mantenha. E recentemente, a União também se manifestou para que essa conciliação continue. Até quando vamos esperar? Para os povos indígenas, esse tempo é de décadas, de séculos, com um custo muito alto, de sangue sendo derramado”, relatou o advogado Maurício Terena, assessor jurídico da Apib, durante a plenária intitulada “O Acordo sem Voz: A Câmara de Conciliação no STF e a Reconfiguração da Política Indigenista no Brasil”.
Resistência LGBTQIAPN+

O movimento de indígenas LGBTQIAPN+ também se fez presente no ATL 2025. O ato “Memória, Justiça e Resistência Indígena LGBTQIA+”, organizado pelo Coletivo Tybyra na tenda principal do acampamento na quarta-feira (9), foi um manifesto em homenagem às pessoas indígenas LGBTQIA+ que já ancestralizaram, incluindo o indígena Tybyra Tupinambá, que foi assassinado em 1614, no Maranhão.
Entre os homenageados estão: Brenda Kogue, do povo Bororo, Ana Karoline, do povo Kariri, Jorge, do povo Dessano, e Raquel Pitaguary, do povo Pitaguary, entre outros indígenas LGBT+ vítimas de violência.
O Coletivo Tybyra foi criado em 2019 e é referência nacional na defesa dos direitos das pessoas indígenas LGBTQIA+. No terceiro dia de ATL, o movimento organizou o Seminário “Indígenas LGBTQIA+ contra o fim do mundo: pela preservação da Mãe Terra e de nossas vidas” na tenda da Mídia Indígena.
“Neste ano, organizamos um ato que vai além da homenagem. Será também uma forma de denúncia. Vamos relembrar as pessoas indígenas LGBTQIA+ que foram assassinadas e suicidadas nos últimos anos”, afirma Danilo Tupinikim, cofundador do Coletivo Tybyra.

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) lançou na terça-feira (8), o Manual do Programa Bem Viver+, uma iniciativa voltada para o enfrentamento da violência contra pessoas LGBTQIA+ em territórios rurais e tradicionais, como comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. O lançamento ocorreu durante o Seminário Bem Viver e Direitos Humanos LGBTQIA+ Indígenas, em Brasília.
O programa Bem Viver+ baseia-se no conceito de “bem viver”, promovendo relações de solidariedade e harmonia entre os seres humanos e com o meio ambiente. Seus objetivos incluem a formação de defensores e defensoras de direitos humanos LGBTQIA+, a construção e o fortalecimento de redes de proteção, o incentivo a práticas de autocuidado e o apoio a iniciativas de autoproteção contra violências motivadas por preconceito à identidade e expressão de gênero, características e orientação sexual.
Além do lançamento do manual, foi instituído o Comitê de Monitoramento e Avaliação do Programa Bem Viver+, e apresentada uma agenda interministerial de ações para 2025. Essa agenda inclui cinco escutas-seminário regionais para LGBTQIA+ indígenas e atividades com comunidades quilombolas, povos de terreiro e ciganos, com o objetivo fortalecer as políticas de proteção e promoção dos direitos dessas populações.
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