Débora Silva dedicou 7 anos de sua vida para cuidar de Mateus, um dos raros sobreviventes da raiva humana no Brasil, que faleceu aos 21 anos devido a complicações após contrair o vírus em surto de morcegos no rio Unini, no Amazonas (Foto: João Paulo Machado/Amazônia Real/2019).
Manaus (AM) – Mateus Santos da Silva, de 21 anos, o segundo sobrevivente de raiva humana no Brasil, morreu no último dia 11 de março, após lutar contra as sequelas deixadas pela rara doença. Mas sua história vai além do aspecto médico de um caso extraordinário. É, acima de tudo, um testemunho do amor materno e da força que surge quando tudo parece perdido. Débora Silva não tinha recursos, nem formação acadêmica, mas se tornou enfermeira, cuidadora e guerreira para dar ao seu filho a dignidade que ele merecia por mais de sete anos.
“Eu acho que chegou a hora dele, a hora de se recolher, o Senhor leva”, afirma ela, com uma serenidade que só quem conheceu o sofrimento de perto consegue expressar. “A missão do Mateus simplesmente se cumpriu aqui na Terra.”
O que torna a história de Mateus emblemática não é apenas seu desfecho, mas o fato de que chegou até aqui. Aos 14 anos, em 2017, ele se tornou o segundo brasileiro a sobreviver à raiva humana, uma doença com taxa de mortalidade próxima a 100% dos casos. Os especialistas não hesitam em usar a palavra “milagre” ao descrever a sua sobrevivência.
Na comunidade do Tapiira, situada na Reserva Extrativista (Resex) do rio Unini, entre os municípios de Barcelos (AM) e Novo Airão (AM), na região do rio Negro, uma onda de pânico se espalhou oito anos atrás quando morcegos da espécie Desmodus rotundus, conhecidos como morcegos-vampiros, atacaram 270 pessoas.
O que poderia ter sido prevenido com campanhas de vacinação transformou-se em uma tragédia para a família Silva. As pessoas mordidas pelos morcegos não foram vacinadas pela Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), ligada à Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM), nem pela Prefeitura de Barcelos. Devido à falta de imunizantes na Resex do rio Unini, uma denúncia foi formalizada na época contra os órgãos de saúde do Amazonas e do município de Barcelos no Ministério Público Federal.
Apesar dos esforços dos pais de Mateus, Levi e Débora Silva, para proteger a família e solicitar vacinas às autoridades de Barcelos, o primeiro a ser contaminado pelo vírus da raiva foi Lucas, o filho mais velho, que desenvolveu paralisia nas pernas. Ele foi transferido para Manaus e os médicos, inicialmente, suspeitaram de síndrome de Guillain-Barré. Mas após manifestar os sintomas clássicos, Lucas foi diagnosticado com raiva humana. Em 16 de novembro de 2017, ele morreu.
A tragédia estava apenas começando para a família. Enquanto Lucas estava internado, a pequena Miriam, de 10 anos, irmã de Mateus e Lucas, também apresentou sintomas semelhantes. Ela morreu em 2 de dezembro daquele ano, sem sequer reconhecer a mãe Débora que a velava à sua cabeceira.
O Instituto Evandro Chagas, em Belém (PA), confirmou que as mortes dos filhos de Levi e Débora Silva foram causadas por encefalite viral (inflamação no cérebro), causada pelo Lyssavirus, da família Rhabdoviridaeque, o agente da raiva humana. Desde o século 19, já existe vacina efetiva contra a doença, mas ela precisa ser administrada em tempo hábil. Não foi o que aconteceu com os três filhos de Débora, nem com as outras vítimas da Resex.
Foi então que Mateus, o terceiro filho, começou a apresentar os mesmos sintomas aterradores que mataram Lucas e Miriam. Para Débora e Levi, era como reviver o pesadelo pela terceira vez.
Uma mãe contra o impossível
Com Mateus, porém, algo diferente aconteceu. Submetido a um tratamento experimental com supervisão de especialistas norte-americanos, ele conseguiu sobreviver à infecção. Em 2018, ele foi declarado curado da raiva humana, mas as sequelas neurológicas eram irreversíveis. Ele não podia se mover ou falar. O protocolo de Milwaukee, tratamento que salvou a vida de Mateus, foi criado pelo médico norte-americano Rodney Willoughby, responsável pela primeira cura da raiva humana no mundo, em 2004, em Milwaukee, nos Estados Unidos. O tratamento consiste na sedação profunda do paciente, que recebe um antiviral (Amantadina) e uma droga chamada Biopterina.
Em 2009, Willoughby participou da equipe que fez o primeiro tratamento bem sucedido da doença no Brasil. No Recife, Marciano Menezes da Silva, na época com 16 anos, contraiu a doença após ser mordido por um morcego. O paciente sobreviveu após ser atendido no Hospital Oswaldo Cruz. Mateus Silva se tornou o segundo paciente a ser curado da doença pelo protocolo de Milwaukee no Brasil, e o primeiro no Amazonas.
“Eu, como mãe, aprendi muito com Mateus. Eu falei para ele que deixou uma mãe forte aqui nessa Terra. Eu me sinto feliz por ele ter saído do sofrimento, mas a dor está grande”, confessa Débora, revelando o paradoxo de seu luto – a dor da perda misturada ao alívio pelo fim do sofrimento do filho.
A morte de Mateus foi em decorrência de uma pneumonia, no hospital público Fundação de Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), em Manaus. Nos últimos anos, a saúde do sobrevivente de raiva foi marcada por um ciclo constante de complicações. A doença, após sua internação, trouxe um acúmulo de secreções, febres constantes e convulsões, mesmo com o uso de medicamentos para controlar os sintomas. “Ele tinha dias em que ficava muito abatido, com muitas convulsões e secreções. Mas, de maneira geral, a gente conseguia manter os cuidados”, conta Débora.
Luta pela vida


Mateus dos Santos Silva (Foto: arquivo pessoal da família) e a comunidade Tapiira, banhada pelo Rio Unini (Foto: Josângela Jesus/ Facebook da Resex Unini)
A vida da família Silva teve de se transformar por completo. Do interior da floresta amazônica para a capital manauara, Débora e Levi abandonaram tudo para acompanhar o tratamento do filho. Mateus permaneceu 3 anos e 7 meses internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Manaus recebendo cuidados intensivos – o Amazonas só conta com UTIs na capital. A família passou a viver com dificuldades financeiras. O suporte do Estado foi mínimo, limitando-se ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), concedido apenas na quinta tentativa, após uma exaustiva batalha burocrática.
“Foi uma luta conseguir o BPC. Tivemos que apresentar um relatório detalhado dos nossos gastos para provar que precisávamos do benefício”, explica Débora, exemplificando como, além do desgaste emocional com a doença, a família ainda precisava provar sua necessidade às instituições.
Um lar transformado em UTI

Em 2021, os médicos recomendaram que Mateus fosse cuidado em casa – uma orientação que parecia impossível de ser seguida. “Se levássemos ele para casa sem estrutura, ele não resistiria”, relembra Débora. A realidade de viver no interior do Amazonas, sem infraestrutura adequada ou transporte disponível, tornava o retorno para casa um risco à vida do jovem.
Foi quando a solidariedade humana escreveu um novo capítulo. Com a ajuda de amigos, a mãe de Mateus organizou uma campanha de arrecadação que mobilizou pessoas solidárias ao sofrimento dos Silva. A família pode comprar uma casa no município de Novo Airão, e montou uma estrutura de UTI domiciliar, com todos os equipamentos necessários: motor de luz, aspirador, cama hospitalar e ar-condicionado.
No dia 21 de julho de 2021, Mateus finalmente deixou o hospital. Por 3 anos e 8 meses, ele viveu nesta casa sob os cuidados dedicados da família. Mesmo quando o benefício foi suspenso por dois anos após a mudança, Débora encontrou forças para continuar.
“É juntamente com amigos e parentes que eu consegui cuidar dele, porque sozinha não podia fazer isso, não tinha condições financeiras. A gente fazia rifas, as pessoas ajudaram doando dinheiro. Eu sou grata a Deus pela vida de cada um que amou e cuidou do Mateus”, diz a mãe, emocionada.
O legado de uma luta silenciosa

A dedicação integral ao filho afetou profundamente a vida profissional da família. Levi, antes agricultor, passou a viver de bicos. “Nós deixamos tudo para trás. Eu passei a viver para o Mateus”, revela Débora. Sua única renda fixa foi seu trabalho como merendeira em uma escola pública, onde conseguiu flexibilidade – compreensão e solidariedade – para se ausentar quando o filho precisava.
“Eu não me arrependo de nada. Larguei tudo para cuidar dele, tudo mesmo. E cuidaria de novo, se fosse preciso. Só quem estava perto sabe como eu cuidava daquele menino. Eu digo assim, que chegou a hora do Senhor levar ele. Porque ele estava bem, só tinha sequelas, mas da maneira dele, ele estava bem”, afirma Débora, com a certeza de quem fez tudo o que poderia ter sido feito.
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