Escrevi este artigo em 2003, 20 anos atrás. Republico-o agora, em dois capítulos, devido à sua extensão. Ofereço este texto à apreciação do leitor por considerá-lo atual. O que previu de ruim aconteceu. O que imaginou de bom se frustrou. Retóricas e promessas à parte, a tendência à devastação dos bens naturais do bioma amazônico prosseguiu, de leste para oeste, do sul para o norte
Esse resultado trágico não foi alterado por dois mandatos seguidos de Lula, um e meio de Dilma Rousseff e o primeiro ano do terceiro mandato de Lula. Quase 18 anos de governos do PT, o partido político que por mais tempo ocupou a presidência da república. O artigo que reproduzo foi escrito em 2003, quando o líder petista iniciava o seu primeiro mandato. Lido hoje, ele parece de certa forma profético. Continuará assim sob Lula3 – e Lula4?
Imediatamente depois do segundo pronunciamento presidencial sobre a Amazônia, veio um choque de realidade. O Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de São Paulo, anunciou o crescimento, de 40%, do desmatamento na Amazônia em 2001/2002, em relação ao biênio anterior, passando de 18.166 quilômetros quadrados para 25.476 km2. Segundo dados de satélite, as regiões leste e sul da Amazônia, conhecidas como “Arco do Desmatamento”, concentram 75% da área desmatada total. Esse arco abrange os Estados de Rondônia, Mato Grosso, Tocantins, Pará e Maranhão, nos quais as atividades agrícolas e pecuárias são apontadas como os principais responsáveis pela devastaçã o da floresta.
Abalado por esses números, o governo federal anunciou, de imediato, uma série de providências para tentar controlar o avanço da ocupação humana em áreas pioneiras da região. O próprio Inpe tomou iniciativas. O instituto decidiu colocar à disposição do público, em seu novo site, novas imagens de satélite das áreas desmatadas a cada 15 dias.
A idéia é informar exatamente onde estão ocorrendo as derrubadas e queimadas na floresta, facilitando a pronta ação da fiscalização e do controle. O Inpe também divulgará um relatório das principais causas da degradação ambiental e a situação atualizada de cada localidade.
Outra iniciativa é a Rede de Geoinformação e Modelagem Ambiental da Amazônia (Geoma), criada pelo governo federal para fazer prognósticos sobre a região. Diversos institutos de pesquisas, como o Inpe e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), de Manaus, participam do projeto, que receberá três milhões de reais do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Os pesquisadores envolvidos irão desenvolver um banco de dados que servirá de base para um mapa econômico e ecológico da Amazônia com base na previsão dos futuros problemas. Um outro banco de dados da região está sendo desenvolvido pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para auxiliar os estudos voltados para a conservação da Amazônia. O material poderá ser acessado gratuitamente pela Internet.
Mas novamente se apresentou a ambiguidade oficial. Três dias depois de ter considerado a área de influência da BR-163 (Cuiabá-Santarém) “Zona Especial de Gestão Territorial” do programa de combate ao avanço do desmatamento na Amazônia, o governo federal voltou atrás e republicou o decreto, assinado pelo presidente Lula, que havia dado prioridade a essa área.
Apesar de justamente através desse eixo rodoviário estar avançando uma agressiva frente pioneira, com perspectivas de incremento da ocupação humana em territórios ainda virgens, no vale do rio Tapajós, Brasília decidiu rever o ato para não comprometer o processo de privatização da BR, já em pleno curso.
Um consórcio de empresas privadas foi organizado para complementar a aplicação de recursos necessários à conclusão do asfaltamento da estrada, ainda inexistente em metade do seu percurso, todo dentro do Pará, onde o tráfego é difícil, lento e caro. A iniciativa foi adotada depois que o governo federal declarou não dispor de verba para executar a obra, orçada em 200 milhões de dólares.
Justamente por isso provocou impacto o decreto presidencial do dia 3 de julho, que instituiu um Grupo Permanente de Trabalho Interministerial sobre o Desmatamento na Amazônia, como reação ao anuncio, pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de que a taxa de desmatamento na região havia crescido 40% entre 2001 e 2002. O decreto original considerou prioridade do grupo interministerial a região de influência da BR-163, de 1.800 quilômetros, entre Cuiabá, a capital de Mato Grosso, e Santarém, a terceira mais populosa cidade do Pará. Os grupos ambientalistas vinham advertindo para o poderoso fator de indução ao desmatamento da estrada, a ser incrementado por seu asfaltamento.
O novo decreto foi publicado no Diário Oficial do dia 7 de julho como sendo mera correção do texto anterior, mas na realidade buscou atender a objeções anteriormente feitas pelo ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, e por políticos e empresários dos dois Estados abrangidos pela rodovia.
Todos querem a conclusão do asfaltamento da BR-163, que, segundo o estudo de viabilidade da obra, reduzirá o tempo de viagem de Manaus para São Paulo de nove para cinco dias, com uma economia de 300 milhões de reais por ano em frete para a Zona Franca de Manaus. São Paulo concentra 85% das operações da zona.
O asfaltamento deverá gerar também uma economia de R$ 96 milhões anuais para os empresários da soja que produzem grãos em Mato Grosso. A economia será de 38 dólares por tonelada de soja. Atualmente são comercializados cinco milhões de toneladas anuais do produto. A recuperação da estrada daria ainda para expandir os cultivos agrícolas por mais três milhões de hectares, proporcionando a produção de mais 10 milhões de toneladas de milho, soja, arroz e algodão.
Preso a uma política de geração de superávits fiscais no orçamento público e de controle da economia para que o Brasil possa continuar contando com entradas de divisas estrangeiras, o governo Lula parece estar se enredando numa contradição insolúvel. Manifesta a intenção de corrigir os erros das políticas públicas dirigidas para a Amazônia, responsáveis (senão como indutoras, ao menos como coadjutoras) pelo descompasso entre crescimento e desenvolvimento, e pelo agravamento da pobreza, confirmado pelo IDH. Mas, ao mesmo tempo, quer que esse modelo continue a gerar seus efeitos, o principal deles sobre a balança comercial.
Mesmo com sua pouca expressão econômica geral, o Pará é um dos maiores exportadores do país, assegurando todos os anos um saldo líquido médio de dois bilhões de dólares. Esse volume representa 15% de todos os ingressos de divisas no país. Já é bastante se comparado ao peso do Estado no PIB nacional, que não vai além de 2%.
Mas é pouco diante dos incrementos que o Estado pode ter se os projetos em implantação entrarem em atividades e outros surgirem, aproveitando as riquezas minerais do subsolo paraense, o potencial de energia dos seus rios e a significativa extensão de terras razoavelmente férteis.
Não haverá, entretanto, resultados imediatos, como os que o governo Lula persegue, se toda a engrenagem, que se baseia na cultura do desmatamento, tiver que ser substituída pela cultura da floresta, um modo não só novo e desafiador, mas sobre o qual, de verdade, ainda pouco se conhece. A mudança de eixo é profunda, mas seus resultados só aparecerão a longo prazo, uma perspectiva que está fora da consideração no Brasil de hoje (e provavelmente de sempre).
A hesitação e a dubiedade do governo, de encarar consequentemente as tarefas que ele próprio se impôs, podem ter efeitos desastrosos nas muito estendidas e tensas frentes de expansão na Amazônia. Mais desmatamento ao invés de mais controle. Mais conflitos no lugar de maior harmonia. Mortes em maior número. Concentração. Pobreza.
Esses efeitos negativos poderão crescer paralelamente à existência de mais informações, maior conhecimento e maiores possibilidades de promoção de um desenvolvimento qualitativamente melhor se o governo, balançando entre o polo da retórica e o da realidade, não conseguir convencer a opinião pública de que é uno, tem um pensamento bem definido e levará seus atos às últimas consequências na Amazônia, buscando um novo modo de desenvolver a região, diferente do que foi posto em prática até hoje.
Nada indica, porém, que esteja próximo dessa meta. Muito pelo contrário. Porque a realidade a mudar é esmagadora e os meios de que dispõe o governo para enfrentá-la e, em seguida, transformar em realidade o que promete fazer, mesquinhamente pequenos. Sem falar na convicção do agir.
Um ciclo de grandes projetos, que se prolongou e se manteve mesmo depois que o poder central voltou ao controle dos civis, em 1985, só resultou em empobrecimento relativo da Amazônia, vis-à-vis os supostos parceiros do seu desenvolvimento. No entanto, outro ciclo já começa, com cobre, alumínio, ferro gusa, aço, caulim, pecuária e soja, prometendo as mesmas coisas, carregando as mesmas origens e os mesmos defeitos.
Ao contrário do que diz a retórica, a Amazônia, de fato, não é prioridade nacional no Brasil (continua “esquecida”, como registra o relatório da ONU). Apesar de tudo o que dizem os discursos e as mensagens publicitárias. Infelizmente, os brasileiros ainda desconhecem o que é a Amazônia (mais desgraçadamente ainda, nem os habitantes da região têm essa consciência). Parece improvável – para não dizer impossível – que a nação se convença de algumas premissas fundamentais da “questão amazônica”, que já são consideradas como verdades pela ciência.
Se essa cultura tivesse sido incorporada, os defensores do desmatamento como fator de desenvolvimento se tornariam tão anacrônicos quanto um finlandês defender a destruição de suas florestas (de produtividade notavelmente superior à brasileira, embora com um recurso natural incomparavelmente inferior).
Qualquer colegial, em qualquer parte do mundo, perguntado sobre o que é o Egito, responderá sem vacilação: um produto do Nilo. A frase está em todos os manuais, desde as primeiras letras. Criou um refrão universal sobre um país que tem relevância planetária há milhares de anos.
Se a pergunta fosse sobre a Amazônia, qual seria a resposta? Para ser convincente, à maneira do conceito fixado à civilização egípcia, a resposta devia vincular a região a dois dos seus elementos naturais: a água e a floresta.
São duas esmagadoras evidências físicas. Um terço das florestas tropicais que sobrevivem na Terra estão concentradas na Amazônia, um território equivalente ao dos Estados Unidos quando se considera a massa vegetal contínua, independentemente das fronteiras nacionais dos nove países latino-americanos que a contêm. Um quinto da água drenada pelos rios do planeta para os mares circula pela bacia amazônica, numerosos afluentes que contribuem para formar o mais extenso e mais caudaloso de todos os rios do planeta, o Amazonas.
Quantos seriam capazes de associar a essência amazônica à combinação de vegetação e água? Os resultados da terceira edição de uma pesquisa nacional de opinião pública realizada desde 1992 pelo Ibope, sob encomenda do Ministério do Meio Ambiente e do Instituto de Estudos de Religião (Iser), indicam como crescente a proporção de pessoas que percebem a relação, valorizando, por isso, o patrimônio natural do país.
Das duas mil pessoas entrevistadas pelo instituto, em outubro de 2001, 28% consideraram as florestas como o principal motivo do orgulho nacional, o plus que valoriza o Brasil no cenário mundial. Os rios, ou, mais diretamente, a quantidade de água doce em circulação por seu território, são o segundo patrimônio mais lembrado, embora por um número muito menor de pessoas, 4%.
Água e floresta, portanto, constituem a vantagem brasileira no concerto das nações para 32% dos entrevistados; acrescidos outros componentes naturais, o índice sobe para 39%, contra 30% apurados na segunda pesquisa, de quatro anos antes.
A evolução, de 30% no período (1997-2001) é significativa. Daí o otimismo dos responsáveis pela consulta com o quadro de melhoria da consciência ecológica nacional. Mas a pesquisa também fornece dados para preocupação.
Se o brasileiro está mais atento à natureza, ainda não passou de uma fase estática para uma postura dinâmica. A natureza é considerada sagrada para 67% dos brasileiros, atitude partilhada por 57% em 1992. Ou seja: a visão é idílica, edênica. A natureza está ali, representa uma grandeza dada, e deve continuar assim. Mas não depende de nós.
Não se passa ao momento seguinte, de entendê-la para poder fazer parte dela. Só quem vive na Amazônia sabe que a natureza não é um museu, um quadro na parede, um cartão postal, um escaninho na memória ou um adorno na consciência, porque a vê encurtar a cada ano, sem, de fato, saber o que ela é. E sem poder fazer qualquer coisa para que continue a ser o que é, até poder ser compreendida e manejada.
É exatamente por isso que a proporção de pessoas que incluem seres humanos entre os elementos naturais foi maior (40%) na região Norte, acima da média nacional e muito acima de uma região que, sendo uma extensão dela, ou a mais próxima de sua fisionomia, tem o menor índice, de 23%, segundo a pesquisa MME/Iser, de inclusão do homem no ecossistema.
A cada ano o que vem abaixo de floresta na Amazônia equivale, na melhor das hipóteses, a dos anos de desmatamento menos intenso, ao território de Chipre, onde vivem 800 mil pessoas. A área já alterada na região, se formasse um país, constituiria o maior país da Europa Ocidental, com seus quase 600 mil quilômetros quadrados.
Se considerada a Amazônia Legal, um conceito administrativo para efeito de concessão de incentivos fiscais públicos, que inclui partes do Centro-Oeste e do Meio-Norte, o desmatamento já alcançou 12% do total. Se tomada como referência apenas a floresta densa, a hiléia, a área submetida a desmatamento estaria chegando a 20% dessa região, que resulta da rara combinação de floresta com água. Sua integridade já está sujeita a uma alta taxa de risco, quase mortal.
Quando fez suas heróicas viagens pelo Pantanal matogrossense, no início do século XX, a Comissão Rondon calculou que 500 mil quilômetros quadrados desse paraíso bastariam, no futuro, para alimentar todos os brasileiros. É provável que o positivismo, a matriz mental desses militares pioneiros, cheios de otimismo, os tenha impedido de atentar devidamente para a fragilidade daquele ecossistema se exposto a um esforço produtivo mais intenso, como aquele que propunham.
A Amazônia, contudo, já oferece (não voluntariamente, é claro, mas em função de um processo de ocupação compulsória, imposto de fora para dentro) uma área despojada de sua cobertura vegetal original 20% maior do que aquela que sustentaria produção agropecuária suficiente para matar a fome de uma população continental.
Numa das levas de interesse intelectual sobre a região, a proposta de “recuperação de áreas degradadas” se tornou um refrão, da mesma maneira como, antes, na época da “ocupação pela pata do boi”, com a qual os colonizadores se armaram para pôr abaixo floresta e em seu lugar formar pastagens para incertos bois, a ladainha era de que o desmatamento não ia fazer mal porque se fazia em áreas de “cerrado, cerradão e mata fina”.
Aproveitar áreas já desmatadas para a produção de gêneros pecuários e agrícolas, ao invés de continuar a desmatar, parecia o óbvio ululante. Mas só parecia. Os pioneiros, estimulados ou constrangidos a integrar as frentes de penetração para “amansar a terra” (não só a destruindo, mas também expulsando o habitante nativo), contavam com generosos e permissivos incentivos fiscais do governo para “abrir fazendas”, a primeira atitude do bandeirante.
Hoje, não há mais esses recursos, mal aplicados ou simplesmente desviados a rodo, como prova a triste história da extinta Sudam. Há, em contrapartida, a crescente consciência ecológica, nacional e internacional, profunda ou superficial, mas um dado inexistente ou desprezível nos tempos pioneiros.
Quem queria fazer avançar sua atividade econômica tinha que continuar a usar a floresta como um estoque de capital. Para que o pasto ou a lavoura crescessem, a reserva florestal encurtava. Os que tentaram voltar sobre os próprios passos constataram que a tal de “recuperação de áreas degradadas” saía mais caro do que a formação da área desmatada original. Às vezes, muito mais caro.
Então, depois de ligeira hesitação, todos voltaram a pôr a mata abaixo para conquistar novos espaços ou fazer capital. É o que estamos a assistir neste momento: o incremento do desmatamento, em valores absolutos e em taxas. Mais algumas espécies nativas desaparecerem antes de serem satisfatoriamente conhecidas, ou mesmo identificadas.
Não é melhor o destino que se dá ao outro elemento fundador da Amazônia real: sua imensa rede de drenagem fluvial. Um dos grandes rios da região, o Tocantins, já sustenta com suas águas aquela que, ao ser concluída, com a duplicação da sua potência, a partir deste ano, será a quinta maior hidrelétrica do mundo. Até o final da década, o Xingu estará cedendo águas para a quarta maior usina de energia, a de Belo Monte.
Mesmo com a pressão crescente sobre as águas da região, nenhum dos comitês de bacia recomendados pela recente legislação sobre esses recursos foi criado até hoje na região. A visão que predomina sobre eles é compartimentada: os barragistas só pensam em água na forma de energia; os armadores, enquanto meio de transporte; e os agricultores, para irrigação.
Não há um planejamento global e integrador dos diferentes usos, muito menos de antecipação de situações e de prevenção dos problemas. Por incrível que possa parecer, em alguns pontos da Amazônia a água já é problema e em outros, seu uso está se aproximando da saturação.
Assim, se no futuro, graças a políticas públicas competentes e a uma campanha nacional de conscientização, o colegial for capaz de conectar água e floresta à razão de ser da Amazônia da forma tão imediata e espontânea como a que o faz dar sua resposta sobre o Egito como produto do Nilo, talvez esse estado de saber resulte em uma grande conquista do ponto de vista museológico, paisagístico ou espiritual.
Mas para a Amazônia real não será nem consolo. Quando descobrir a verdade, talvez só reste ao colegial apreciá-la no papel, em gravuras, em fotografias ou num filme de sabor arqueológico. A Amazônia viva e verdadeira já será um doloroso retrato na parede.
Para que esse futuro negro não se materialize é preciso mudar radicalmente a forma de ocupar a Amazônia, estabelecendo novos pressupostos ou corrigindo as premissas erradas. Um desses pressuposto é encarar por outro prisma os 570 mil quilômetros quadrados já desmatados, que constituem uma área mais de duas vezes superior à do São Paulo, na qual a característica especificamente amazônica desapareceu: os solos estão expostos à lavagem da chuva e à laterização provocada pelos elementos naturais, sem a reciclagem natural de nutrientes derivada da massa vegetal e sem seu guarda-chuva protetor.
Desses 570 mil km2 que, paisagisticamente falando, se tornaram semelhantes ao restante das áreas tropicais brasileiras, 160 mil km2 estão abandonados. O rendimento dessas áreas decresceu, enquanto os investimentos necessários para mantê-las em produção subiram em progressão diametralmente inversa. É o retrato do que acontecerá com o remanescente da área que ainda tem sua floresta nativa.
Em 50 milhões de hectares de terras na Amazônia podem caber 15 bilhões de árvores, se tomado como parâmetro a densidade média de uma mata fechada na região, ou 5 bilhões de árvores, reduzindo o cálculo a um terço do valor inicial, para incorporar as áreas de vegetação mais aberta.
É esse o saldo principal de menos de quatro décadas da mais intensa frente pioneira da história brasileira, que avança célere e feroz em busca da “integração” da última fronteira do país, a Amazônia, à economia nacional – e também o maior capítulo de destruição florestal da história da humanidade.
Em 50 milhões de hectares de terras ocupadas pelo colonizador, do final da metade dos anos 60 a este início de década/século/milênio, de 5 bilhões a 15 bilhões de árvores foram postos abaixo ou simplesmente queimados. Uma fração desse total foi transformada em produtos. A esmagadora maioria foi simplesmente destruída, ou porque não eram conhecidas suas propriedades naturais (e, por conseqüência, não possuíam valor comercial) ou porque o objetivo, imediato e categórico, era substituir florestas por qualquer outro tipo de paisagem (campos de pastagem, cultivos agrícolas, reflorestamento com espécies exóticas, garimpos, mineração, hidrelétricas, estradas ou cidad es).
Na linguagem econômica de sentido mais imediato, tomando como base para um cálculo arbitrário os elementos mais conservadores, a ordem de grandeza monetária da devastação florestal alcança alguma coisa em torno de 1,5 trilhão de reais (três metros cúbicos por árvore, ou 15 bilhões de metros cúbicos na soma, multiplicados por 100 reais o metro cúbico), só de árvores já aceitas no mercado internacional e na forma de comercialização como madeira sólida. O valor é equivalente a mais de cem vezes o PIB (Produto Interno Bruto) do Pará, o principal Estado da região.
Conquanto seja um cálculo por baixo e meramente especulativo, esse valor diz pouco sobre o alcance da perda. A avaliação se restringe a apenas uma das faces que a floresta pode assumir diante das necessidades humanas, a de madeira, e num certo estágio do conhecimento que tem o homem sobre esse potencial, infelizmente ainda muito atrasado.
Mesmo estando na escala inicial da geração de informações sobre a floresta amazônica, o homem já sabe que precisa encará-la de um prisma – como agora se diz – holístico, ou qualquer expressão ou conceito que traduza a amplitude de possibilidades dos ecossistemas amazônicos, sua ação interativa e sua sinergia. Ao invés de examinar árvores isoladas, considerar o ambiente no qual ela se situa, enquanto parte de um organismo harmônico. Biodiversidade é a pedra de toque dessa nova alquimia.
Um modo sustentável de intervenção do homem nesse cenário complexo e frágil só poderá surgir de um conhecimento mais profundo que puder ser criado e aplicado na Amazônia. A ciência e a tecnologia só se desincumbirão desse desafio com eficácia se tiverem recursos para agir, gente para mobilizar e matéria prima para observar.
Reduzindo-se a ser expedidora de atestados de óbito, a ciência sempre virá atrás do desbravador para registrar o dano que ele causou. Não poderá estar à frente dele, fornecendo-lhe régua e compasso para agir, ou reprimindo suas agressões e corrigindo seus erros. O descompasso entre as frentes econômicas e científicas (ou, de um modo mais amplo, do saber) é e continuará a ser fatal para a Amazônia.
Há esplêndidos estudos de caso na região, magníficos surveys, interessantes experiências de laboratório ou projetos-piloto, e até inteligentes referências em programas de governo, o de Lula sendo a sua forma mais bem elaborada. Mas a brutal diferença de meios e de ritmos entre os que agem para depois se perguntar pelo significado do que fizeram e os que tentam encontrar formas de penetrar na floresta sem destruí-la, atuando preventivamente, responde pelo saldo negativo no balanço entre a destruição e a construção.
Um exame ponderado e corajoso da situação levará a uma conclusão óbvia: a penetração no que ainda é a hiléia amazônica precisa ser feita de forma diversa do padrão da colonização realizada até agora. É a maneira de não reduzir o que era (e será cada vez mais) um potencial de riquezas fantástico num acervo empobrecido, dilapidado. O problema para difundir essa percepção está na própria lógica dessa máquina de destruição: como a recuperação de uma área degradada na Amazônia é cara, prefere-se expandir a fronteira econômica, que sai mais barato. Num raciocínio de curto prazo, é claro.
Sai mais “em conta” porque o Brasil se recusa a aceitar que a floresta vive num ciclo fechado com os demais elementos do ecossistema, sendo o seu principal componente, do qual dependem todos os demais, embora vivam em conjunto numa sinergia sofisticada e sutil, intimamente mutualista. Essa impressionante máquina da natureza garante a vida de árvores de 40 a 50 metros sobre um solo quimicamente pobre, com uma camada de nutrientes fina, de poucos centímetros, incapaz por si mesma de alimentar aqueles enormes seres vegetais.
Uma exploração econômica inteligente não pode ser desenvolvida na Amazônia causando curto-circuito nesse ciclo fechado de água-luz-floresta. O preço é provocar incêndios devastadores, em sentido real (como têm mostrado os satélites de informação) e, por enquanto (até que a ciência conclua cada um dos seus processos investigativos), em sentido figurado, a figuração de um desenvolvimento tão inovador que pensar nele agora parece coisa de profetas, loucos e poetas.
Os estrangeiros, com seus ciclos de produção de conhecimento mais adiantados, sabem que não é assim. Posicionam-se tentando extrair – legalmente ou clandestinamente, não importa muito – as informações, sobretudo genéticas, contidas no ecossistema amazônico, enquanto elas estão disponíveis. Gostariam que tudo parasse na região até terem podido inventariá-la.
Como isso não parece factível, apressam-se a juntar o que podem e a tentar instalar-se nas áreas de maior interesse. Nessa busca podem chegar a conceber planos de anexação ou subtração? Essa é sempre uma hipótese a considerar, mas a melhor atitude não é a de negar os pressupostos de tal atitude, mas incorporá-la e sair na frente.
Apesar das declarações de intenção do atual governo, é pouco provável que as políticas públicas consigam livrar a Amazônia da cultura do desmatamento, que constitui sua camisa-de-força desde o final da década de 1950, pela combinação de grandes vias de penetração (sobretudo rodoviárias), projetos de enclave e vinculação a mercados externos. A dependência brasileira de recursos de capital externos deverá continuar a falar mais alto, na manutenção do modelo de enclave exportador da região, do que os sonhos de progresso da sua população.
A imagem que abre este artigo mostra a floresta sendo queimada na região da Amacro (Amazonas, Acre e Rondônia), em uma área com cerca de 8.000 hectares de desmatamento, a maior em 2022. (Foto: Nilmar Lage/Greenpeace/30/08/22).
Leia o primeiro artigo:
Amazônia: aquém do paraíso prometido (1)
Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:
* lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.A
* valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.
* amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.
* cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor